sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Luto


Há uma mulher na soleira da porta. Seu vestido é vermelho e ela tem as unhas grandes. É bela – nunca se viu mulher mais bela. Convido-a para entrar. Ela senta-se, como uma dama. Cruza as pernas sutilmente e deixa transparecer as coxas grossas e bronzeadas. Ela me fuzila com seus olhos verdes que me metem medo. Ela sorri. Dentes simétricos e brancos, extremamente brancos. E se põe a falar coisas sem nexo. A voz é aveludada, tem musicalidade e soa como convite a qualquer aventura. As palavras vão cortando meus pulsos e eu vou sangrando, perdendo o fôlego, empalidecendo e chorando feito bebê. E ela mantém sua classe, sua beleza intocável e sua serenidade com as palavras. De repente ela acende um cigarro e se cala. Fica me assistindo. Quero gritar, mas não tenho voz, não tenho vontade, não tenho fé.

“Você quer desistir?” – é o que ouço, mas não sei se ela me diz ou se eu crio isso na minha mente.

E essas palavras entram me rasgando a alma. E não me dou conta que estou morrendo inteiro, que meu corpo e minha alma sangram. E ela me assiste enquanto sopra a fumaça no meu rosto.

“Você quer desistir?” – dessa vez eu vejo a boca dela se abrindo e as palavras sendo pronunciadas sílaba por sílaba.

Eu não tenho forças. Apenas mexo com a cabeça, fazendo que não. Eu não queria desistir seja lá do que fosse. Entendendo o meu recado ela se levanta plácida e apaga o cigarro na mesa. Aos poucos as feridas se fecham, o sangue coagula, e sinto um novo sopro. Percebo que fui esvaziado das minhas escuridões, dos meus tormentos. Já não vivo o luto de antes, já não vejo a mulher na porta.

Olhando em volta á procura de algum resquício de sangue, percebo que tudo está no lugar. Sinto um alívio grande, me olho no espelho. Há algo estranho. Procuro no rosto. As olheiras teriam aumentado? Talvez um pouco de fios brancos... Não, não é nada disso. É alguma coisa nas costas. Viro-me completamente e, no mesmo instante, percebo um par de asas. Sorrio calado. A mulher tinha me deixado um passaporte e, junto dele, a esperança.


Agradeço á Nathalia pelo selo:


Passo para:

Jaya do blog Deixa eu brincar de ser feliz?

Nobre Epígono do blog Imaginação de um nobre

Gabriela do blog Miss Umbrella

J.S. do blog Ópio

Vale a pena visitar!!

14 comentários:

J.S. disse...

Gostei disso...
Não desistir e existir sempre a esperança!!!
obrigada pelo selo...

Um abraço menino

Pushoverboy disse...

Vim aqui agradecer o elogio... você também consegue deixar um rastro de sentimentos... todos muito bem encaixados em metáforas e outras figuras de linguagens!
Abraço

Anônimo disse...

Acho que de todos os textos que li aqui até hoje, esse foi o melhor.
E me lembrou da Clarice, dizendo que a gente precisa morrer, e que dói. Mas que é dor de parto: nasce-se. É-se.
Esse é um daqueles textos que me despertam uma inveja boa, porque eu queria ser capaz de escrever assim, mas, mesmo não conseguindo, sinto-me feliz por ser presenteada com tão belas palavras.
E digo ainda que a estrutura do texto está ótima. Faz a gente pensar uma coisa, depois nos surpreende com outra.
Obrigada, Lipe.

Beijos.

Anônimo disse...

(Posso copiar esse texto e guardar para mim?)

Jaya Magalhães disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Jaya Magalhães disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
pp1993 disse...

Muito legal o texto!
Como leitora assidua de teu blog, e grande admiradora, deixei uma surpresinha pra ti lá no meu blog!
beijão

Camila disse...

Muito bonito.
Viver sem esperança é viver?
Acho que não, né?!

beijos daqui...

Critical Watcher disse...

Prêmios pra você em meu canto.
;)

Renato Ziggy disse...

Lipão, amei a descrição e estrutura do seu texto. Os detalhes muito bem colocados e com uma coerência interna brilhante!

Mas confesso que não consegui captar muito bem sua mesagem. Li e reli e me ative apenas a impressões... Estranho, né? Mas faz parte...

Abração!

Dauri Batisti disse...

ae,

sou visitante de primeira vez.
Gostei do seu blog. do texto também. Esperava outro final, realista, e você optou pelo fantástico. Legal.

Bárbara Matias disse...

"É alguma coisa nas costas. Viro-me completamente e, no mesmo instante, percebo um par de asas. Sorrio calado. A mulher tinha me deixado um passaporte e, junto dele, a esperança."

Vc como sempre.. escrevendo bem demais!!nossa essa parte fechou o texto com chave de ouro!!! amravilhoso... adoro seu par de asas!

Bjinhos, querido...

Proibida disse...

Legal. A gente pensa mesmo que é uma coisa mas acaba sendo outra totalmente diferente. Eu gosto disso. :)

Você é um encanto, garoto. ^^

Beijo

Fernando Locke disse...

Muito bom! sua descrição está muito boa, você consegue transparecer o que os personagens sentem! os detalhes deram um toque especial, ficou muito bom mesmo! abraço!