terça-feira, 15 de novembro de 2011

Daquilo que sabemos ser


É doce sua maneira de falar das flores, do céu e das coisas simples às quais ninguém dá importância. Eu recebo suas palavras com um sorriso dormente, que insiste em me dar papel de bobo. Sou bobo. Porque ninguém te percebe, como eu.

Assim, de longe, vejo duas dúzias de borboletas se enrolando em seus cabelos. Sua presença entorna pó de candura e eu prevejo duas eternidades ao seu lado. Seu jeito meio romântico, essas fitas coloridas, a saia rodada e o cabelo em tranças, seus olhos dançando valsa, suas mãos apertando meu peito. Peito que dói, de tanto sentir.

Você pega meus dedos, em um ato próprio de quem quer me contar alguns segredos. Despeja com os olhos algumas ternurinhas que eu saio catando, enquanto penso em recitar juras de amor. E que você me jure exageros, impossibilidades, loucuras, pra eu te chamar de muito louca, de muito minha e te propor meu melhor amor.

Confessaria que, antes de você me notar, eu já te percebia nos braços de outros. Guardei todos os seus sorrisos na minha caixinha de lembranças, busquei informações detalhadas a seu respeito, de sorte que eu sabia até o horário do seu primeiro ônibus. Eu queria mesmo era só te ver de longe, pro meu coração ficar apertado de saudade.

Usei meus melhores jeans, meu tênis novo e meu perfume importado. Criei esbarrões, pra que você sentisse parte de mim, em você. Decorei seus vestidos e concluí que você fica mais linda quando veste vermelho. O que houve, porém, foi que você me descobriu com um olhar distraído.

Depois, nossas tretas. Eu tocando seus pés, por debaixo da mesa. Nossos risinhos calados e a certeza petulante de que não havia lugar tão lindo pra caber o nosso amor. Você passava a me destrinchar em música, me fazia versos, me prometia uma serenata moderna: você na sacada, cantando pra mim, lá embaixo.

E as nossas noites insones, você passando a mão nos meus cabelos, arrancando de mim suspiros manhosos e um pedido piedoso: que todas as suas dívidas comigo fossem pagas em cafunés. Então, cansados das palavras e enrolados no cobertor já descorado de tanto ouvir nossas pieguices sobre amor, fazemos um voto de silêncio. A lua atravessa nosso quarto e seus olhos, empapuçados de uma esperança bonita, provocam minha insensatez repentina.

Seguimos de mãos dadas, nas avenidas sinuosas que nos contornam. Você para, vez ou outra, pra pedir um café ou um chá gelado. Respiramos e seguimos. Sempre fomos juntos. Sempre fomos um.

Caminhada serena, essa nossa. É que não vivemos de outra coisa, que não de amor.

sábado, 12 de novembro de 2011

Miguelzim

“Miguilim não tinha vontade de crescer,

De ser pessôa grande,

A conversa das pessôas grandes era sempre

As mesmas coisas secas, com aquela necessidade

De ser brutas, coisas assustadas ”.

Manuelzão e Miguilim (Guimarães Rosa)

- Miguelzim?

- Que susto! Por que você está sussurrando?

- Não quero que ninguém me veja aqui.

- O que aconteceu? Não consegue dormir?

- Não. Posso te contar um segredo?

- Pode. Senta aí na beira da cama.

- Miguelzim... você é meu irmão mais velho. O pai diz que eu tenho que ser corajoso feito você.

- Você é corajoso. Você salvou a mãe daquela barata voadora, lembra?

- Eu sei. Mas é que quando chove assim, que nem hoje, me vem um arrepio por dentro. Esse barulho todo é Deus que fica bravo com a gente?

- A vó diz que é. Que quando cai o trovão perto do nosso ouvido, é porque precisamos arrepender dos nossos pecados.

- Eu tenho medo, Miguelzim. Você acredita em assombração?

- Assombração não existe.

- Mas a Martinha já viu. Ela jura que já viu.

- A Martinha é mentirosa. Ela diz isso pra você ficar com medo. Eu não acredito nela.

- Mas ela é mais velha que você.

- Não acredito e pronto.

- Miguelzim?

- Oi.

- Não conta pro pai que eu vim pro seu quarto?

- Não vou contar.

- Nem se a gente brigar feio um dia e você ficar com muita raiva de mim?

- Isso eu não posso garantir. O que você faria pra gente brigar feio?

- Não sei. Você é meu melhor amigo.

- Então pronto. Seu segredo estará bem guardado.

- Miguelzim?

- Oi.

- Você, quando era assim mais pequeno, que nem eu, tinha medo de trovão?

- Tinha. Eu me cobria todo até o alto da cabeça e ficava encolhidinho na cama, até o barulho passar.

- Você era mais corajoso que eu.

- Não era não. Eu nunca matei uma barata voadora.

- Posso segurar sua mão só um pouco?

- Pode.

- Amanhã o pai vai me dar uns trocados pro lanche. Te compro um refrigerante no recreio.

- Não precisa.

- Você é o melhor irmão, Miguelzim.

- Agora fica quieto. Não há jeito melhor de perder o medo de trovão do que ouvi-lo indo embora. Percebe como o barulho vai ficando cada vez mais raro?

- É verdade.

- Acho que você já pode ir pro seu quarto. Não há mais perigo.

- Tá bom.

- Fecha a porta.

- Miguelzim?

- Oi?

- É tão mais fácil ser corajoso ao seu lado.





[Em 14/12/2010]

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Segura, Berenice!


Berenice era uma daquelas loiras de entortar o pescoço. Como se não bastasse, gostava de andar sempre bem arrumada e lia o dicionário Aurélio que era pra ampliar o vocabulário. Era linda e inteligente. Ainda por cima, tinha um sorriso pecaminoso. Ela ria e os anjos despencavam lá do céu, puro descuido. Era simpaticíssima e fazia piada com suas próprias desgraças.


“Dizem que eu sou bonita, sabe? Mas quando perguntam o meu nome, neguinho inventa até dor de barriga pra poder ir ao banheiro e fugir de mim.”


Berenice era um tanto louca. Tinha idéias estranhas na cabeça. Andou lendo Sartre e Nietzsche nos dois primeiros períodos da faculdade.


“A gente podia acabar com a corrupção dos políticos.”, ela sugeriu certa vez.


“Ah, é? Como?”


“A gente pode plantar baobás ao redor do Planalto. Daí os políticos vão achar aquilo muito estranho.”


“Sim. E a corrupção acaba?”


“Acaba em dois tempos. Plantando baobás todos os dias, eles terão com o que se preocupar. Imagine só: quem estaria plantando tanta árvore? Precisamos dar um jeito nisso, dirão os ministros.”


“Quanto tempo leva pra crescer um baobá?”


“Eu sei lá.”, e ela encerrava o assunto.


O sonho de todo homem era levar Berenice pra cama. Rezava a lenda que só o Tomás do nono período tinha conseguido tal proeza.


“O que ele tem que nós não temos?”, nos perguntávamos embasbacados.


“Dizem que ele mora num bairro de luxo.”


“Não. A Berenice não é mulher de se comprar com dinheiro.”


Certa vez ela disse que tinha dois sonhos na vida: fazer sexo selvagem com um caubói e sofrer um acidente de carro. Numa dessas festas à fantasia, metade dos homens da sala foi vestido de peão. Mas Berenice não era muito de festas; ela não foi.


“Você me dá uma carona?”, ela me pediu uma vez.


Meu coração faltou sair pela boca. O que diriam os meninos quando soubessem que Berenice entrou no meu carro? Eu precisava pensar em alguma coisa. Precisava ter uma história pra contar pra eles. Berenice entrou no veículo e o perfume dela recendeu o lugar. Então ela destrambelhou numa conversa de que homem que é homem precisa entender as mulheres. Dizia e mexia nos cabelos. Eu não sabia se olhava pras pernas dela ou pro volante.


“Ando cansada de homem meia-sola. Quando chegam pra mim com nhem nhem nhem eu logo digo meu nome: Berenice, viu? Meu nome é Berenice! Daí eles correm. Quero distância de homem assim.”


E ela ria. Eu ria junto. Pernas, volante. Pernas ou volante?


“Você não é assim, é?”, ela me perguntou.


“Eu?!”, me engasguei.


“Sim. Se uma mulher de quem você gosta pintasse na sua frente, você lhe negaria um desejo? Qualquer que seja?”


“Claro que não. Eu faria qualquer coisa.”


“Pois você é raro. Está mesmo dizendo a verdade?”


Pernas e volantes, pernasouvolante. Eu iria provar a ela que dizia a mais pura verdade. E seria ali, naquele momento.


“Segura aí Berenice, segura que nós vamos bater!”


[Publicado em 29/07/2008]