quarta-feira, 30 de outubro de 2013
Na estante
“Tanto mar” nasceu em 2008, quando, nas ociosas férias de janeiro, resolvi criar "O mundo de sofisma" para publicar contos. A ideia era ser lido por alguém, ter um público que abraçasse minhas palavras. E deu certo. Foram mais de cento e setenta textos escritos e mais de trinta e quatro mil visualizações.
Logo veio o desejo de compilar alguns desses contos em um livro, em uma obra que concretizasse toda essa trajetória criada e assistida virtualmente. E que virasse um desaguar de palavras. Tanto mar, pra fazer chegar aos olfatos apurados “algum cheirinho de alecrim”, como queria Chico (o Buarque).
Lançamento em DEZEMBRO.
Quer reservar um exemplar? Escreva para filiperodriguesg@gmail.com
Velejemos!
quarta-feira, 21 de agosto de 2013
Lugar de declaração amorosa é no bar
Ela chegou, sentou no balcão e me
pediu um drinque. Devia ter seus vinte e poucos anos, cabelos entre o liso e o
cacheado, olhos expressivos, boca inquieta, sorriso despudorado. Já havia
notado que ela sempre chegava sozinha, bebia dois, três copos de qualquer coisa e ia embora. Não falava com ninguém, não dava bola pros rapazes que
arrastavam asa, não flertava.
Naquele dia ela me notou, elogiou
minha camiseta, falou que eu tinha pinta de artista de filme de quinta
categoria. Riu da própria piada. Mexeu o gelo com os dedos, todos eles, e
chupou um a um, me encarando nos olhos. Suei. Ela perguntou se eu já tinha ido
em algum lugar perigoso, se eu gostava do perigo. Eu falei que não, geralmente.
Que eu preferia lugares tranquilos. Ela gargalhou e perguntou se eu estava
ficando louco.
“Gosta de lugares tranquilos e
trabalha num bar como este? Tá de sacanagem”.
Eu pensei em explicar que nem
sempre eu estava em lugres que gostaria de estar, mas desisti. Ela parecia
interessada em me tragar feito um cigarro, fazer de mim fumaça e me tornar
cinza. Os olhos dela, aqueles olhos de analisar fotografia, me causavam
distúrbio. Meu coração já engatinhava rumo à garganta. Perguntei se ela estava
acompanhada. Ela suspirou.
Arrebitou-se toda por cima do
balcão, debruçou-se sobre os cotovelos, e me encarou firme, com olhos
alcóolicos, os mais sóbrios que já vi. De repente, disparou alguns versos, como
se quisesse me fazer engolir uma comida: “E
eu quero te servir a poesia numa concha azul do mar ou numa cesta de flores do
campo. Talvez tu possas entender o meu amor. Mas se isso não acontecer, não
importa. Já está declarado e estampado nas linhas e entrelinhas deste pequeno
poema, o verso; o tão famoso e inesperado verso que te deixará pasmo, surpreso,
perplexo. Eu te amo, perdoa-me, eu te amo”.
Já não sentia mais meus pés, meus
braços, minha nuca. Eu estava inteiro nela, dentro dela. Ela me puxou pela
camiseta – a mesma que há pouco havia elogiado – e me beijou com quinhentos e
cinquenta volts. A descarga elétrica foi ouvida em forma de um estalar arrítmico
no céu da boca. Foi preciso uma fração de tempo para eu entender o que havia
acontecido, pra retomar o controle das minhas mãos e puxá-la pra mais perto,
fazendo-a sentir meu coração ensandecido que não queria saber de amor
verdadeiro.
Ela se recompôs. Ajeitou os
cabelos, amarrando-os em um coque malfeito. Sorriu, pegou a jaqueta que havia
encostado na cadeira ao lado e foi embora. Sem olhar pra trás.
[os versos citados são de Cora Coralina]
sábado, 3 de agosto de 2013
Terapia
Foi a conta de eu pagar meu
lanche na Colombo e eu logo a vi passando pela rua, despropositadamente. Eu a
persegui com os olhos, depois com os ombros, depois com o corpo inteiro. Segui
seus passos numa discrição de um elefante. Eu estava afoito, nervoso, suando
pelas têmporas. Naquela ambição, acabei esquecendo o troco e a ligação que eu
precisava fazer para o médico. Era só ela que eu queria. Tocá-la por detrás
para que ela, surpresa, girasse em minha direção com um sorriso que fosse
se abrindo à medida que ela detectasse em mim traços de um romance
quase-pronto. Eu não sei o que é isso, não, Aurélio. Eu tenho dessas coisas: fissura,
urgência, supetão. Minha pretensão era chamá-la para tomar um sorvete de
duzentos sabores, impor-lhe um beijo muito gelado que travasse a língua no céu
da boca, apertando o meu peito contra os dela pra depois deixar cair algumas
sacanagens em seus ouvidos. Ela dobrou a esquina e a minha coragem dobrou
junto. Apressei os passos, limpei o suor da testa, tentei recitar rapidamente
um poeminha que eu havia escrito para momentos como aquele. Era preciso abordá-la
com um poema. Naquele instante, naquele exato instante, eu notei uma folha de
árvore cair sobre a cabeça dela. Folha miúda, seca, inexpressiva. Fiquei aguardando
para ver como ela haveria de tirar o negocinho dos cabelos. Não tirou. Sequer
notou que algo havia caído sobre ela. Continuou sua marcha, com um enfeite
pouco amistoso agarrado nos lindos cachos. Minhas pernas, então, travaram. Uma
pena, pensei. Uma pena ser tão linda, mas tão distraída. Dei meia volta e
passei na Colombo pra buscar meu troco. Em tempos de crise não é bom perder
nenhum tostão, né não, Aurélio?
quarta-feira, 31 de julho de 2013
Pra você saber
Eu queria te
dizer que a vida é muito curta pra gente brincar de bem-me-quer-mal-me-quer.
Que, antes de buscar a certeza de qualquer sentimento, a gente tem que ter a
vontade de senti-lo, de tê-lo pulsando dentro do peito, ardente. Que antes da
meia-noite todo mundo se posa de maduro e sensato, mas ao encostar a cabeça no
travesseiro, todos os medos insistem em retomar a visita da noite anterior.
Eu queria te
dizer que eu nasci amando. Que eu só sei fazer isso: amar. E que eu não
acredito em amores diferentes: amor, pra mim, é igual em qualquer direção. Que
eu nunca te amei de verdade porque eu nunca li o amor nos seus olhos. A gente
não ama sem querer, como você já supôs em uma conversa de botequim. A gente ama
é no dia-a-dia, quando o som dos passos da outra pessoa, chegando devagarinho,
é capaz de beliscar qualquer ponto da alma, numa insensata alegria. A gente
descobre que ama quando não faz mais sentido viver sem. Os ares pedem aquela
pessoa, os risos são daquela pessoa, os pensamentos furtados, durante uma reunião
de negócios importante, são daquela pessoa. O amor é a certeza quase absurda de
que não é apenas o coração que chama pelo outro. É o corpo inteiro que funciona
como imã, zoom, capaz de buscar a
melhor resolução. Tudo se torna extremamente possível.
Eu queria dizer
que eu gostei de você, você gostou do João, que gostou da Amanda, que gosta do
José. Ninguém gostando reciprocamente de ninguém. E que vai ser sempre assim.
Porque a gente vai gostando até descobrir o dedinho torto do pé direito ou a
letra de garrancho ou a gagueira no momento de ansiedade. Gostar é pouco, é
rápido, é só simpatia. Das vezes que busquei um mar profundo em você, só
consegui colocar os pés na margem, deixando meu tornozelo enxuto e meus pés
tocando pedrinhas pontiagudas. Isso nunca foi suficiente. Talvez, por isso, eu
não tenha insistido em suas profundezas e, talvez pela minha timidez em ir
fundo você tenha se aberto pouco. Eu só queria te dizer que não gosto desses
jogos. Eu nunca sei jogar e, quando faço isso, sem saber, sempre derrubo as
peças do tabuleiro.
Eu só queria que
você soubesse que eu procurei um sorriso que não desbotasse, um abraço que não
me largasse, um gesto macio que me fizesse querer escrever poemas de madrugada
e decorar as letras de música que falassem de nós dois. E que, a tardinha,
quando o sol viesse se pôr na nossa janela, eu pudesse te buscar para tomar um
chá gelado e, segurando suas mãos, dizer que meus compromissos todos seriam
você.
Eu só queria que
você soubesse que você me devolveu a liberdade. E que você, um dia, me
encontrará na fila do cinema sem a menor pretensão de ser seu. De te fazer ser
minha. Porque o amor, infelizmente, não aconteceu pra nós.
quinta-feira, 27 de junho de 2013
Uma oração
Peço a Deus um amor ajeitado
E que ela seja bonita, que me deixe coisado
Que ela seja poesia e que me fure num abraço
Que ela me beije na boca, com muito amasso
Que ela deixe as aulas de francês e venha me ver agora
Sem demora
E que os dedos dela se escondam nos meus
Apresse os passos dela, meu Deus
Apresse os passos dela.
sábado, 15 de junho de 2013
Ele escrevia cartas de amor para as prostitutas
Ele acordou às 10h40 de um domingo chuvoso. O colchão de solteiro denunciava sua desordem interior: camisas, calças e cuecas pareciam ter sido sua companhia na noite passada. No criado-mudo, uma taça de vinho pela metade e um cigarro intacto ao lado de um isqueiro sem fogo. Levantou da cama arrastando os pés, lavou o rosto, o corpo, a alma. Sentia-se vazio de tudo, incrivelmente só.
Lembrou-se de quando foi, pela
primeira vez, a um bordel. Tinha quinze anos recém-completos. Foi levado por um
tio velho e promíscuo que o incentivava a isso desde seus doze anos. Escolheu
uma moça novinha, cabelos malcuidados, batom vermelho, unhas pretas. Ela o
pegou pela mão e o convidou para uma intimidade que ele jamais poderia
esquecer. Chorou no colo dela, dizendo que a amava. A moça, desnorteada, o
abraçou com carinho e disse que a primeira vez era assim mesmo e que o amor não
existia, que ele ficasse despreocupado. No dia seguinte, ele escreveu uma carta
de amor, com as melhores palavras, e voltou ao bordel para entregar à moça.
Encontrou-a nos braços de outro e isso foi o suficiente para ele desamar.
Olhou de relance para o celular e
se lembrou da ex-namorada. De como ela sabia preparar o melhor arroz com feijão
e ainda sabia ser linda quando dançava em cima da cama, só de calcinha e sutiã.
De como tinham sido felizes em curtos cinco meses de namoro. Dos planos futuros
que fizeram, dos nomes que dariam aos filhos, da gorda poupança que lhes
permitiriam viajar pra Paris uma vez ao mês. Pegou o celular e ligou para ela.
Saudade. Saudade, era o que ele escutava enquanto o tu tu do telefone indicava que, muito provavelmente, ela não iria
atender. E não atendeu.
Lembrou-se também da antiga
professora de inglês. Olhos vivos, usava um decote que deixava à mostra dois
seios muito bonitinhos de se ver. Ele nunca fora bom com idiomas, mas fez de
tudo para aprender a língua dela. Chamou-a para sair, disse que estava
apaixonado, que não dormia a noite, que perdera a fome, que só pensava em ir
pra Nova Iorque e colocá-la dentro de um daqueles taxis amarelos, pra poderem
se embolar no banco de trás. Ela se assustou com a declaração indiscreta e
pediu um tempo, mas não deu mais sinal. Isso porque as aulas eram particulares e
ela nunca mais atendeu o telefone.
Escovou os dentes e trocou de
roupa para ir comprar o jornal. No elevador, cruzou com a senhora do 504,
aquela que tinha uma filha jornalista, ruiva, com covinhas que apareciam sem
precisar sorrir. Ele perguntou pela filha e a mulher disse que ela estava na
Turquia, fazendo um passeio com o namorado. Ele sentiu ciúmes, muito ciúmes.
Mas se controlou e despediu-se da senhora do 504, que era sempre muito
agradável.
Abriu o guarda-chuva e caminhou até
a banca de jornal. Comprou o periódico de costume e ainda levou mais duas
revistas que traziam, na capa, atrizes que ele tinha muita vontade de conhecer
pessoalmente. Recortaria as fotos e guardaria na sua gaveta, pra poder fazer
juras de amor a elas, nos dias de solidão. Marchou de volta para casa,
sentou-se em frente à televisão, comeu as unhas, tirou as calças, bocejou. Ele não
gostava de ser só, mas já havia se acostumado. Solidão é hábito, é anestésico.
Solidão é a cama vazia. O quarto vazio. É a cara pintada de branco-e-preto e um
café feito com duas colheres de pó. Pra um só.
segunda-feira, 27 de maio de 2013
Casamento em Cancún
O metrô não estava cheio, mas não
havia sequer um assento livre. Apoiei minha pasta no chão, enquanto afrouxava a
gravata que me sufocava o pescoço. No ato, derrubei a caneta do bolso que rolou
para perto de um par de sapatos muito distinto. A moça, dona dos sapatos, se
curvou para buscar o objeto. Constatei que alguns gestos me deixavam sem graça.
O fato de a moça ter perdido o seu precioso tempo agachando para pegar a caneta
que eu, estupidamente, deixei cair, me causou vergonha. Eu poderia ajoelhar
naquele instante e pedir mil perdões. Poderia dizer que faria de tudo para corrigir
aquele erro, que ela me desculpasse imensamente por eu ser tão descuidado e tão
estúpido. Poderia pagar-lhe um café, se ela quisesse, e depois recitar algumas
poesias ao pé do ouvido dela, dizendo que o amor a gente descobre assim mesmo,
no de repente.
A moça me entregou a caneta junto
de um sorriso que me espetou a alma. Agradeci timidamente, sem deixar de notar
que ela havia deixado a blusa desabotoada. Seria pra mim? Pensei e me achei
ridículo. Eu poderia ter dito que ela havia sido muito gentil em se preocupar
com uma caneta velha e gasta, que não precisava ter se incomodado, que ela
tinha os tornozelos mais lindos que eu já havia visto e que os olhos dela
pareciam duas luzes ofuscantes de um farol. Eu poderia ter perguntado seu nome,
sua idade, sua profissão. Dizer que ela tinha muito a cara de ser bailarina,
daquelas que dançam em cima das minhas costas, massageando meus ombros e minha
carência. Que, se ela quisesse, eu deixaria ela dançar em mim e me buscar para
uma valsa indecente, daquelas que desnudam-se todos os segredos sem qualquer
pudor. Eu queria amá-la numa cabine de metrô.
Ela coçou a nuca, deixando a
mostra um cordãozinho com um pingente em forma de cruz. Eu poderia ter
perguntado se ela era religiosa. Se rezava três vezes ao dia. Se ela beijava a
santa ou se ela tinha alguém que a beijasse sem escândalo. Se seus beijos eram
mornos, do tipo bossa-nova, ou eram quentes, no estilo rock and roll. Se ela
lia Sartre depois do almoço e se seus poemas preferidos eram os de Fernando
Pessoa. Eu poderia ter dito a ela que aquela sainha justa lhe dava um ar
ocasional de mulher insensata, daquelas que arrancam a roupa como quem quer rasgá-la,
que, se ela quisesse, eu a deixaria me rasgar inteiro.
A moça me olhava desconfiada e,
sem me dizer um adeus, saiu pela porta que, naquele instante acabara de se
abrir. O que ela faria na estação Carioca?
Ela teria algum encontro amoroso? Será que ela gostava de caras mais jovens,
com barbas mal-feitas? Será que ela era casada, mas escondia a aliança na hora
do almoço pra poder se apaixonar até uma hora da tarde? Eu poderia imaginar o seu
perfume e o formato do seu sutiã. Eu poderia alcançá-la antes que a porta se
fechasse e segurá-la pela cintura, dizendo-lhe algumas palavras indecorosas. Eu
poderia dizer que, sim, eu aceitaria me casar com ela em alguma praia de Cancún e que nossos filhos teriam todos
a cara de uma história de amor muito linda.
Esperei para ver se ela olharia
para trás e me acenaria um tchau discreto. Se seus lábios pronunciariam “me-ligue-pra-gente-tomar-um-vinho”.
Se ela voltaria para me dar um beijo muito assanhado. Se ela notaria que eu poderia
fazê-la muito feliz. As portas do metrô voltaram a se fechar e a moça se perdeu
na multidão de gente. O coração acusou inapropriadamente: o destino não é
deixar vir. É fazer vir; com a certeza muito aguda de que a inércia é a pior
das escolhas.
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