segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Dessas conversas de ônibus


O ônibus estava quase cheio, quando entrei. Havia um único assento livre, ao lado de uma moça compenetrada em alguma leitura. Sentei. Tentei olhar discretamente pra ela, pra dizer qualquer coisa amistosa, mas ela não tirou os olhos da revista. Era uma revista daquelas de noiva, com vestidos de casamento dos mais variados. Ela olhava as gravuras como quem se derrete por uma casquinha de sorvete. Ela queria muito.

Coloquei meu fone e liguei o mp3. Fechei os olhos pra começar o longo trajeto até a minha casa. Alguns minutos depois, notei que a moça estava inquieta e abri os olhos. Ela chorava, discretamente. Mas o corpo todo se mexia, com os soluços. Tentei fingir que não via. Não queria me intrometer, pousar de conselheiro. Nunca obtive sucesso com essas coisas. Mas não pude ignorar a situação por muito tempo. Ela começou a choramingar alto, chamando a atenção daqueles que estavam por perto.

- Moça? – chamei, tirando o fone do ouvido.

Ela me olhou com uma firmeza assustadora, um par de olhos insistentes, invasivos, perdidos em meio a lágrimas que apontavam sentimentos muito confusos.

- Você está bem? Quer que eu aperte pra você descer?

- Não, obrigada. – ela parou um instante. Me encarou. – Como você sabe?

Balancei a cabeça, confuso. Ela percebeu que eu não havia entendido a pergunta.

- Como você entra nesse ônibus, senta ao meu lado, usando o mesmo perfume dele?

- Dele quem?

- Você pode esconder essa revista na sua pasta? Leve pra sua namorada.

- Eu não tenho namorada.

- Leve, apenas. Tem palavras cruzadas. – e ela me estendeu a revista de noiva, com a capa úmida das lágrimas que lhe caíram do rosto.

- Obrigado. – agradeci e guardei a revista.

- Eu o amo, sabe? De um jeito insano. Me faz mal.

- Sei como é. Já amei igual. Não é amor, isso. Amor não faz mal a ninguém.

- Ele me disse exatamente assim, com essas palavras. Você é uma espécie de bruxo?

- Não. – eu sorri, ante o espanto dela. – Já lhe ocorreu que, em todo lugar, as pessoas vivem coisas muito parecidas? Eu só usei as minhas palavras, que, coincidentemente, foram as dele.

- E como você deixou de amar? – ela interrogou, mostrando muito interesse na minha vida particular.

- Eu escrevia. Depois apagava tudo. Me expus ao máximo até me esvaziar dela.

- Eu não sei escrever. Só sei chorar.

- Também é uma forma de escrever.

- É? – ela perguntou, fascinada.

- Me parece que sim.

Ela apertou minha mão, me olhou fundo nos olhos, como se fosse me tragar. Me senti fumaça, desintegrei.

- Eu vou passar a escrever. Todos os dias. Me passa seu endereço, vou te mandar. Quero um leitor, alguém que acompanhe meu jornal diário.

Mulher louca, pensei. Tá achando que me interesso por cartas de amor mal resolvido? Tenho meus próprios romances. Inclusive, há dois meses tenho tentado concluir “Crime e castigo”. E agora essa história de jornal diário? Fiz cara de desentendido.

- Você se importa?

Quis dizer que sim, que me importava. Que se eu gostasse dessas coisas, teria feito psicologia, não direito. Que existem psicólogos aos montes, por conta de gente querendo esquecer um grande amor. Que eu tinha meus problemas pessoais. E não conseguia dar conta de um terço deles. Agora mais essa? Quis parar o ônibus ali mesmo e descer, inventando qualquer desculpa.

- Pode mandar pro meu e-mail. – eu disse e passei meu endereço eletrônico. Ficaria fácil sinalizar os e-mails dela como spam. Problema resolvido!

Ela agradeceu efusivamente e desceu no ponto seguinte. Ao vê-la desvencilhar-se de toda aquela gente do ônibus e me acenar, lá da porta, tive pena. Quis ajudar. Encontrei nela uma normalidade aparente; coisa que parecia não ter. Os olhos, porém, carregavam traços de loucura.

Ela nunca mandou um e-mail sequer. E eu aguardo até hoje, numa ansiedade que, por vezes, me irrita. Profundamente.


domingo, 2 de janeiro de 2011

Te troquei pelos meus filmes favoritos


Ando muito ocupado ultimamente. Tenho me rendido ao barulho da chuva, ao cheiro do café feito no coador de pano (enquanto a água queima o açúcar no fogão), ao roçar do cobertor fino, aos sons dos carros que passam pela rua (indo pra algum lugar onde eu deveria estar), aos filmes de faroeste (aqueles que você mais odiava).

Outro dia tentei dedilhar aquela música no violão. Fiquei espantado ao perceber como hoje desconheço os acordes e me atrapalho com as cordas. Naqueles tempos, você me tapava os olhos e cantava perto do meu ouvido, enquanto meus dedos decoravam o caminho das notas. Suas notas. A madrugada vinha depressa e seu cachecol, sempre posto à mão, era esticado sobre os nossos pés gelados e nosso abraço era estanca para qualquer arrepio.

Eu parei de amar faz tempo. Não encontro mais jeito de inserir suas palavras no meu cotidiano. Houve um tempo - algum curto espaço de tempo - em que você se perdeu de mim. Nos distraímos. Nos atraímos. Um constante jogo de me-leva-e-me-deixa e nossos cadarços se desamarraram. Como quando naquele sábado em que você esperava que eu lhe trouxesse um buquê de flores. Eu esperava um abraço demorado. Não tivemos nem um nem outro. Onde nos perdemos?

Ao lado da minha casa tem uma senhora que conversa todos os dias com a filha ao telefone. Eu ouço porque ela se senta na varanda e tudo chega aos meus ouvidos pelas frestas indiscretas da minha janela. Penso que a mansidão daquela senhora é um amor de milênios. Será que ainda somos capazes de amar assim? De um jeito que o “pra sempre” pareça algo distraído? A conotação do amor hoje me lembra um bolo de aniversário. Muitos vão distribuindo suas fatias, até que restam as migalhas (que ninguém mais quer porque está farto). Você teve minhas melhores fatias.

Aluguei três DVDs pra assistir hoje. Te troquei pelos meus filmes favoritos. Amanhã eu acordo e tenho de lidar com a certeza de que preciso mesmo de pijamas novos. E de um amor que caiba dentro deles. Seus porta-retratos estão todos esquecidos no meu porão, caso você resolva tê-los de novo. Não sinto que são meus, mesmo tendo sido presentes seus. Se quiser, aceito de volta aquele relógio caro que te comprei. Ainda devo sete prestações. A bateria ainda funciona?

Me dói a conveniência dos relacionamentos. Me tortura essa insistência da saudade em apertar a campainha de casa, chamando para uma volta no quarteirão. Restam-me então a água quente do chuveiro e “Os miseráveis” na cabeceira da cama. Talvez você não saiba, (bem quero que desconfie) mas eu tenho uma carta na manga. Assim, entoarei Chico, com o dedo em riste: olhos nos olhos, quero ver o que você faz, ao sentir que sem você eu passo bem demais.

Despretensioso, volto meus olhos pra varanda. A chuva, o café, o cobertor, os carros, os filmes. Ando muito ocupado ultimamente. Amando tudo que não seja você.