Aquele dia em que você saiu de casa, eu demorei algumas horas pra entender o que havia
Aí eu chego, você me abraça, impregna em mim seu perfume de duzentos e tantos reais, amarra na minha boca alguns sorrisos enquanto conta suas aventuras, seus sonhos, suas poesias. Você, aos poucos, me devolve a certeza de que ainda posso amar, posso gostar de alguém profundamente sem ser dramático, sem ser meloso, sem ser brega e exagerado. Eu me deleito com suas palavras e expressões pausadas, seu jeito de tocar meu ombro, gargalhar com o corpo inteiro, desarrumando os arranjos que ficam sempre nos devidos lugares. Você me desarruma.
Passamos a noite toda acordados, eu querendo dormir, você me beliscando de dois em dois minutos. Eu te amando. Você me enchendo de perguntas, de encantos, de piadas. Eu digo que quero muito dormir, porque a viagem foi longa e tinha uma mulher com seu bebê no colo sentada na poltrona ao lado. O bebê chorava e minha cabeça explodia. Você não quer nem saber. Quer minha atenção, ainda que sonolenta. Então eu tomo duas xícaras de café amargo e sento naquela cadeira dura. Fico te olhando, com os olhos empedrados nos seus cabelos. Eu quero dormir.
Na manhã que nasce, eu entro para o banho e demoro de vinte a trinta minutos. Depois disso, sempre tomávamos o café e comíamos o pão com ricota. Mas não naquele dia. Naquele dia você saiu de casa. Deixo o chuveiro, cantando aquela música que marcou a nossa infância por ser a que tocava no rádio do carro quando fomos juntos conhecer o museu das múmias. Não sinto o cheiro do café, nem do pão tostando na torradeira. Não sinto seu perfume, nem escuto seu barulho. Sei lá por que, me sobrevém uma onda eterna de inquietação. Nunca fui de ter sexto sentido. Naquele dia eu tive. Deito na cama e fecho os olhos. Queria abri-los e ver você ao meu lado, sorrindo da peça que me pregara. Riríamos juntos, eu ficaria aliviado, tomaríamos o café e tudo estaria bem.
Abro os olhos e o silêncio retumba
Na cozinha, seu batom desenhado no guardanapo é minha certeza de que houve você ali, momentos antes. Meu peito apertado é a resposta à sua pergunta da noite anterior: “Somos um par?”. Meu problema é querer que você sempre leia meus pensamentos, adivinhe sempre os sentimentos que me visitam. Sempre me achei um quadro óbvio demais, fácil de decifrar. Talvez eu poderia ter dito, ainda que com palavras parcas e porcas. É que sou feito dos amores que se equilibraram à minha margem. Você, de todos eles, é o maior. Registre isso, se puder? É o maior.