sábado, 25 de outubro de 2014

Houve um tempo


Houve um tempo de carência. Quando as pernas bambas e trôpegas já não se sustentavam sem razão. O jeito era aceitar carinhos estranhos, olhares vazios, peitos abarrotados de convites vãos. Houve um tempo em que a poesia se perdeu ou se converteu a alguma religião ortodoxa de ritos estranhos e comportamentos excêntricos. Houve choros silenciosos e soluços histéricos. Porque a carência produz solidão. E solidão mata, porque não se mantém.

Houve um tempo em que o coração corria afoito para qualquer amor, qualquer jeito, qualquer elogio. Era um mero toque de pele para fazer brotar um gostar insano ou uma paixão ensandecida. Era como se o amor não escorresse com calma, não pingasse com precisão, não florescesse sem querer. Era como se todo o peito pudesse ser preenchido de qualquer coisa e isso bastasse. Mendigar sentires, tempo de se enganar.



Houve um tempo, porém, em que os planetas se alinharam. Os recados deixados em bilhetinhos coloridos colados na geladeira reproduziam sons de serenidade. As horas vagas eram agora preenchidas com carbono e giz. O tempo era de fazer a poesia adormecer nas pálpebras para que, quando se pestanejasse, voassem trocadilhos em versos. Era como se a gente sentisse a alma do outro tocando apenas os dedos, trocando todos os medos, alternando os momentos de crença e de total falta de fé. O que é o amor senão essas luzinhas escondidas dentro da sua boca que só aparecem quando você sorri pra mim?