quinta-feira, 22 de julho de 2010

Poltrona 23


Entro no ônibus para uma viagem de quase cinco horas. Poltrona 23. Coloco minha mala no bagageiro superior e me assento. Ao meu lado, uma moça que sorri displicentemente, como se alegria fosse um mero descuido. Sorrio de volta, num sorriso sem dentes. Penso que a vida, às vezes, é muito dura. Que o sofrimento quebra a gente por inteiro, como se fossemos um vaso nas mãos de uma criança que, sem querer, tropeça e o deixa cair. Os cacos são atirados para todo o canto da casa, alguns entram pra debaixo da cômoda, outros vão pra debaixo do tapete e ainda outros escorregam pra porta dos fundos, sumindo de vista. E aí aparece a boa, sempre boa Maria. Com aquela cara de indignação, dizendo que o menino só sabe é fazer arte. O menino pede que não conte pra mãe, com uma cara lambida. Maria diz “ai, ai” e começa a varrer os cacos do vaso. Debaixo da cômoda, debaixo do tapete, na porta dos fundos, tem um ali na escada. Maria é engraçada; ela resmunga o tempo inteiro. Depois, com os cacos todos entulhados na pá de lixo, ela pensa num jeito de safar o menino e se pergunta se tem como colar os pedaços. Ela acha que sim e vai tentar com aquela cola que tem o nome do apresentador do jornal nacional, o bonitão. Gasta mais de uma hora colando e consegue. As peças, porém, ficam remendadas, com aquela cara de serviço mal feito, apressado, desajeitado.


Fico rindo da situação, pensando que o sofrimento é mesmo tudo isso aí, só que sem as graças da Maria. A moça do meu lado me olha, me achando muito estranho por rir sozinho. Eu me volto pra ela e pergunto as horas, só pra que ela sinta, na minha voz, que sou um cara normal. Ela olha pro meu pulso e talvez não entenda porque eu faço aquela pergunta se meu relógio está funcionando perfeitamente. Ela responde “são uma e quinze”. E eu corrijo-a, em pensamento, “é uma e quinze”. Penso que a moça é muito esperta e bonita. Prende o cabelo num rabo-de-cavalo, deixando à mostra uma nuca muito branquinha e frágil. Não usa alianças, nem brincos, nem colar. Percebo que ela talvez seja uma daquelas moças com milhares de sonhos. Que quer terminar os estudos, arrumar um emprego, ganhar muito dinheiro, descobrir o amor e ter uma família feliz. Uma vida sem sofrimentos. É o que todo mundo quer, afinal. Tenho vontade de perguntar o que ela faria se todas as pessoas que ela amasse brigassem umas com as outras e sobrasse só ela, amando. Abro a boca pra perguntar, mas minha garganta começa a fazer cócegas e eu espirro. “Saúde”, diz a moça, muito educada. “Obrigado”, respondo com os olhos cheios d’água. Eu encosto meu braço no apoio central da cadeira, sem perceber que ela faz o mesmo, quase instantaneamente. Nossos braços se chocam e ficamos rindo da situação. Afasto o meu, dizendo “Pode apoiar”. Ela agradece, acomoda o seu braço, reclina a cadeira e fecha os olhos. Eu fico olhando, querendo um terço daquela paz.


Ao fechar os meus olhos, com o propósito de encontrar algum pensamento menos dolorido do que os que vinham pululando em minha mente, acabo por enxergar Maria, catando os cacos. Ali, atrás dela, o menino pede que ela jogue tudo fora, porque ele havia comprado um vaso novo e igual, com todas as suas economias juntadas da mesada. Maria sorri aliviada e até para de resmungar. O menino coloca o vaso novo no mesmo lugar onde estava o velho. Igualzinho ao anterior e sem nenhum arranhão. Maria e o menino sorriem cúmplices. Abro os olhos e vejo a moça dormir, virada pro canto. Continuo achando a nuca dela bonita e me pergunto se ela já sofreu alguma vez na vida. Concluo que sim, que todos sofrem à sua maneira. Que sempre somos remendados por uma cola (com o mesmo nome do apresentador do jornal nacional) ou acabamos por jogar os cacos fora e comprar um novo vaso. Volto a fechar os olhos e durmo. Talvez a moça tenha mesmo me dado aquele um terço de paz.