domingo, 31 de maio de 2009

Conversa legendada


Ele sabia dela, da menina estranha que usava cabelos sempre em tranças e uma maquiagem discreta no rosto, só pra não ficar muito pálida. Sabia que ela, numa solidão exagerada, ia pro Café Viena às três da tarde, todos os dias, sentava sempre na mesma mesa (perto do balcão), pedia um capuccino com chantili e ficava, até às cinco, escrevendo em um caderno brochurão.


Ele foi tomado de uma amargura grande por ela. Sentimento indesejado e obtuso, verdade. Nada coerente. Desejou uma conversa. Dessas conversas caladas, em que as palavras escapam de uma pupila a outra, numa sincronia assustadoramente complexa. Sabia não existir palavras em comum. Nem vida em comum havia. Eram totalmente estranhos um ao outro.


Vestiu-se de coragem e passou um perfume, duas borrifadas. Olhou-se no espelho com um desatino admirável. Recitou Bilac, em voz alta: “Tudo ao meu triste olhar se desenrola”. Colocou um trevo no bolso. Não era supersticioso, mas não custava.


Chegou às três em ponto e a viu na mesma mesa. A trança ajeitada no canto direito do ombro, o semblante sério, sempre concentrado. A caneta Bic, quase ao final, trabalhava numa pressa afoita, num ritmo de quem não quer perder um pensamento sequer. Ele sentou-se na cadeira em frente, sem pedir. Ela largou a caneta, fingiu um susto. Olhou-o detidamente. Ele ficou sem ar, sentiu o rubor encapar a face inteira e as pernas tremerem. Ela escrevia dentro dele, impressionante.


O medo que lhe ocupou nos dois primeiros minutos, se esvaiu quando ela, sem perceber, deixou escapar um pequeno sorriso. Começou com uma leve puxadinha no canto dos lábios, pro lado esquerdo. Depois entornou pro lado direito, permitindo o mostrar de dentes impecavelmente brancos, embora não muito uniformes. Nos olhos, um inconformismo com aquela presença inesperada. Uma incoerência notável se fazia perceber nela.


Ele deixou os olhos fugirem pro caderno aberto em frente a ela. Espantou-se por não encontrar nenhuma palavra escrita. Era tudo uma paisagem branca. A amizade com a caneta e o papel não passava de um fingimento amador. De repente se deu conta de que ela era uma armação. Ela toda era aquilo que ele outrora buscava na vida: um ruído. Um mero roçar de presença. Um segredo impróprio que ele queria tomar pra si.


Deixou um sorriso seu escapar, em retribuição. Sem dizer, chamou-a pra um filme qualquer. Ela, um tanto decepcionada, respondeu que aquilo era o filme: eles. Então ele pediu desculpas e recebeu de volta os olhos dela atravessados de candura. Depois, foi pegar as pipocas pra continuarem.


Na volta, sem conseguir se conter, perguntou o motivo do papel em branco. Ela espreguiçou-se, em resposta. Entregou a caneta a ele e fez-se entender. Ele segurou a caneta por um tempo. As palavras vieram em torrente, mas não couberam no papel. Aquilo lhe pareceu incômodo. Largou a caneta, enfim. Não precisava. Se precisavam. E só.


quarta-feira, 20 de maio de 2009

Sorte sua que sou romântico


A você, que me procura.



Seus olhos eram embriagados de uma loucura que eu desconhecia. Havia um magnetismo nas pupilas dilatadas; destiladas. Delatadas. Você nunca conseguiu esconder um segredo de mim. Por mais insignificante que fosse. Era sua raiva. Meu triunfo.


- É o fim. – eu disse me referindo ao nosso romance. Você entendeu.


- O que se há de fazer? Tudo já nasce condenado. – conformismo nunca te alcançou de forma tão contundente.


- Você esperava? – minhas palavras vinham aos lábios como flechas, sem eu perceber ou controlar.


Seu consentimento foi tácito. Percebi enquanto você rodava o copo com o dedo indicador na borda, fazendo o objeto se inclinar de forma perigosa, suicida, quase.


- Disseram que nenhum homem é uma ilha. Eu acho que sempre foi. – foram suas palavras, num discurso péssimo, pessimista.


Então me encarou com saudade, de tempos que ainda não tínhamos vivido.


- Os laços se desfazem facilmente, não percebe? Esquecemos que, para deixar firme, é preciso dar um nó. – sua boca continuou. Você não. Você era distante das próprias palavras.


- O amor, pra ser amor, não precisa de toque. – eu deixei escapar, numa insensibilidade que me assustou.


- Eu sei lá de amor. Quem se dá conta daquilo que transborda do peito? Alguns chamam de amor. E se pra mim for outra coisa? Algo maior?


- Algo maior que o amor? – eu estava confuso, confesso.


O restaurante não estava cheio. Uma moça cantava no palco, enquanto tocava violão. Uma vozinha macia que entrava de um jeito gostoso de ouvir. Você sorriu. Não sei se da minha pergunta, ou da idéia que passou pela sua cabeça. Foi quando você se levantou, seguiu até o palco, cochichou algumas palavras com a moça do violão depois de interrompê-la. Meus olhos cuspiam lágrimas, nem sei por quê.


- “Desculpe estou um pouco atrasada, mas espero que ainda dê tempo...” – sim, era sua voz, vinda do palco, acompanhada do som do violão que você não tocava, e sim a moça.


Daí em diante, foi como se você estivesse cantando ao meu ouvido. Com um pedido de desculpas intrínseco e uma voz amargurada de quem pede um beijo imediato. Eu teria pegado você pelos cabelos, tirado você do palco, brigado por ter me feito passar tamanho vexame.


Mas não o fiz. Meus sentidos eram todo atenção à sua performance. De um jeito inusitado, você me afastou o mau presságio da nossa conversa inicial. Depois do seu show, tão particular quanto nossas conversas de sábado à tarde, sentados descalços em um tapete altamente alérgico da sua sala de estar, você desceu do palco com um emaranhado de estrelas nos cabelos. Aproximou-se de mim.


- Pode me bater, se quiser. Quis ser louca. Sua. Quis te perder em breve instante só pra poder te encontrar de novo.


- Não vou bater. Nem brigar.


- Não?! – sua cara era de desapontamento.


- Não. É que sou romântico. Sorte sua.


Algum bêbado aplaudiu. Nós rimos. A lua, lá fora, atravessava seus olhos, buscando, quiçá, as estrelas dos cabelos. Você estava diferente naquela noite. Eu não soube dizer por quê. Mas havia algo maior. Dentro ou fora, não sei. Um incômodo. Algo que transbordava, insistentemente. Você segurou minhas mãos. E qualquer resposta pareceu pequena, imprópria. Fugaz.


segunda-feira, 11 de maio de 2009

O menino


Ao menino, que não sei o nome, meu freguês.



O menino pede dinheiro na porta do restaurante. “Moço, me dá um trocado?”. Alguns passam e dão moedas. Outros um sorriso. Outros um nariz em pé. O menino não é bobo nada. Diz que vai comprar comida e vai pro bar comprar uma coca de dois litros. O menino quer é prazer.


À tarde ele vai pro supermercado, pedir trocado. Não agüento mais o menino. “Vem cá, meu filho, tá precisando de roupa?”. “Tô!”, ele responde com cara de quem quer dinheiro, e não roupa. E eu arrumo umas blusas que ele passa a usar diariamente, como amuleto.


O menino é filho da moça que mora em bairro pobre e tem mais quatro filhos pra criar. Um dia eu puxo conversa com ele que conta dos irmãos. O menino parece feliz, conversa cheio de gíria, não tem problema se eu falo bonito e estudo na faculdade. Ele gosta mais da simplicidade e me pede um trocado. “Hoje não. Te dei roupa outro dia.” Ele vira com a cara lambida e pede: “E tênis? Tem lá sobrando?”. Eu vou embora rindo e digo que vou dar uma olhada.


O menino gosta da menina, mais alta que ele. É bonita, mas não dá mole. O menino pensa que dá. Quando conversa com ela, muda até o tom, perde as gírias, os olhos ficam piscando, pedindo um beijo que não vem. Vai ver ele fica imaginando que o primeiro beijo vai ser com ela e até sonha com ela à noite, depois de pedir a Deus mais coragem pra declarar aquele sentimento que ele não sabe o nome.


De manhã, ele vai pra escola. Fica atirando bolinha de papel na professora e não quer nada com nada. “Menino! Vou contar pra sua mãe”, ameaça a professora, mas não mete medo nele, não. Estudar ele não estuda, mas tem prosa pra qualquer hora. Sabe de futebol, de bolinhas de gude, sabe de revista em quadrinhos – e até das revistas de mulher pelada. E ele desconfia, porque não tem tempo pra pensar nessas coisas, mas desconfia do amor.


Um dia eu pergunto ao menino o que ele quer ser. Ele vira pra mim, ingênuo e ao mesmo tempo sábio, responde: “Eu não tenho que ser nada. Eu já sou”.


O menino não estuda. Mas sabe das coisas.