domingo, 20 de fevereiro de 2011

Descobri que te amava


Um resquício de saudade visitou meu peito tormentoso, nessa manhã. Alguns eventos viraram poeira no meu mural de memórias, outros se acenderam feito estrela reluzente no fundo escuro da noite. Gostos se dependuraram na ponta da língua que tocava o céu da boca como quem toca a boca do céu. O café posto à mesa lembrava aqueles ruídos estranhos da água fervente e do pó solúvel cheirando esperança no coador de pano. Acordar era renascer. Um pássaro pousando no fio, sem levar um choque e a borboleta que assistia as flores mimadas do jardim vizinho: cenário que fincava no canto da alma. Saudade de amar outra vez.

À noite, o travesseiro foi premiado com um sorriso sonso de alguns breves minutos, enquanto os ouvidos cuidavam de repetir baixinho suas bobeiras diárias. Descobri então que te amava. O indiscreto mexilhar dos pés descalços no lençol estampado e a música-ambiente vinda da casa do vizinho serviam de distração ao sono que demorava vir. Mais alguns minutos em pensamentos era como ter-te ao lado, tocando meus dedos e atrasando meus passos de estarem longe de você.

Qualquer dois- mais- dois era operação matemática complicada. Os sentidos pareciam ter sido embaralhados, sem qualquer marcação de naipe. Os olhos, enviesados, calculavam no relógio o tempo de você passar aqui em casa e se demorar na minha sala de estar.

Meu medo, percebo, é não poder nunca tirar o frisado do seu vestido ou amparar seus passos tortos no meio-fio, enquanto brinca de equilibrista. Meu medo, moça, é não poder te entregar nunca aquela flor plantada em rimas do nosso quintal-comum. Vai ver eu tenho muitos planos. Vai ver eu tenho uma baita sorte. Vai ver você me ama também.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Entre nós


- Pai, o monstro do armário existe?

- Não existem monstros, filho. Só aqueles que a gente mesmo cria.

- O Daniel falou que viu um embaixo da cama dele, na noite passada. Mas ele é um pouco mentiroso. Ele sempre diz que na casa dele tem um disco voador. Isso é mentira, não é?

- Creio que sim. As pessoas têm a mente muito fértil. Basta ver quantas coisas são criadas.

- O que é uma mente muito fértil?

- É uma mente criativa.

- Ah. E por que não inventaram ainda um remédio contra a morte?

- Porque ninguém tem controle sobre a morte, só Deus.

- E se Deus ensinasse aos homens?

- Aí os homens se julgariam deuses.

- Eu pensei que eles já se julgavam. Outro dia eu escutei o pai do Alfredo dizer que Deus não existe.

- Muita gente não consegue enxergar os sinais de Deus.

- A professora explicou que cada coisa na natureza tem o seu papel, como se fôssemos todos obra de um inteligentíssimo arquiteto.

- Sua professora tem razão. A inteligência da criação de Deus é de deixar qualquer um de queixo caído.

- Deus tem a mente muito fértil, não é?

- Tem sim.

- Pai?

- Oi.

- Sabe por que eu gosto de ficar doente?

- Não sei. Você gosta?

- Gosto, porque é quando você vem no meu quarto e faz a febre passar.

- Será que ela foi mesmo embora? Vamos ver.

- Foi sim. Já estou bem melhor.

- A temperatura abaixou.

- Se eu fosse médico, receitaria uma conversa de pai pra poder passar a febre. Parece que funciona.

- Funciona quando os laços são muito estreitos e fazem nó. Não há qualquer distância entre um nó. Entre nós.

- Uma coisa estreita é uma coisa apertada?

- Sim.

- É que eu queria um abraço estreito, agora.

- Pois tome um abraço estreito e um beijo largo.

- Pai?

- Hum?

- Antes de você sair, não se esqueça de fechar o armário. É que aquelas roupas, às vezes, parecem um monstro.