quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Essas coisas de cachorro


Quando pequeno, não era muito fã de animais. Ainda hoje tenho minhas resistências, embora admita peixes em aquários. No meu aniversário de seis anos, meu pai apareceu com um dálmata envolto em um laçarote vermelho. Meu presente. O sorriso amarelo que me brotou dos lábios fez minha mãe entender que aquele não era o presente mais esperado. Aceitei o animal, sem sequer conseguir ficar a dois passos de proximidade dele.

Passei a observá-lo de longe. Quando lambia as patas, quando procurava o próprio rabo, quando corria atrás das andorinhas no quintal, quando virava o prato de ração e rodava três vezes em cima da mantinha de dormir, antes de deitar. Vez ou outra nossos olhos se cruzavam e ele me encarava, sem piscar, com a cabeça tortinha, procurando me decifrar. Peguei carinho por ele.

Do cafuné, passei para as brincadeiras no quintal. Corríamos e rolávamos juntos na grama, feito amigos de longa data. Houve dias em que o fantasiava de pirata, amarrando um lenço entre as suas orelhas e prendendo um tapa-olho que sempre escorregava para o focinho. Outro dia, ensinei-o a catar as bolas de meia, depois de lançá-las o mais longe possível e a roubar as roupas que a vizinha implicante pendurava no varal. Certa vez, julgando-me um exímio nadador, quis jogar o dálmata na piscina para treiná-lo. Qual foi a minha decepção ao descobrir que ele nadava melhor que eu.

Levou um tempo para eu batizá-lo com um nome. Berinjela, por causa de uma mancha no pescoço que tinha esse formato. Como Berinjela é um nome comprido e não muito amistoso, virou Bê. Tamanha foi nossa amizade que à noite, depois que meu pai trancava a porta da varanda, eu pulava a janela e levava o cão para deitar na minha cama. Era nosso segredo. Foi assim até quando Maria começou a estranhar os pêlos branco-preto no meu lençol.

Berinjela se enrabichou com a cadela da esquina. Uma toda empinada que desfilava com a dona todo dia de manhã. Senti-me traído e jurei não dar mais espaço na cama ao dálmata. A partir desse dia, passei a ouvir uns uivos baixinho debaixo da minha janela. Eu tinha pena. Mas não dei o braço a torcer.

Meu pai começou a reclamar do comportamento rebelde do Berinjela. O jardim amanhecia esburacado e as bromélias da minha mãe mordiscadas, quando não arrancadas. Os sapatos sumiam e eram encontrados no quintal três dias depois, cheios de terra. Berinjela passou a implicar com as andorinhas, latindo imprudentemente durante toda a tarde. Por fim, estranhando Maria, rosnava toda vez que ela batia o tapete para tirar o pó.

A velhice de Berinjela nos rendeu muitos incômodos. Já cego e moribundo, resmungava da ração e latia até para os conhecidos da casa. A decisão do meu pai, na época, foi levar o animal para longe, onde poderia morrer em paz. Quando o plano me foi contado, solucei no meu travesseiro, sentindo a perda de um amigo.

Berinjela nunca mais voltou. O silêncio passou a imperar no quintal. E, por muito tempo, confesso, ainda pude ouvir o uivo do dálmata debaixo da minha janela. Ainda hoje, ao fechar os olhos para dormir, vejo a cabeça dele tortinha e as orelhas se mexendo timidamente enquanto me pesquisa. É sua forma eterna de se despedir de mim.


terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Miguelzim

“Miguilim não tinha vontade de crescer,

De ser pessôa grande,

A conversa das pessôas grandes era sempre

As mesmas coisas secas, com aquela necessidade

De ser brutas, coisas assustadas ”.

Manuelzão e Miguilim (Guimarães Rosa)



- Miguelzim?

- Que susto! Por que você está sussurrando?

- Não quero que ninguém me veja aqui.

- O que aconteceu? Não consegue dormir?

- Não. Posso te contar um segredo?

- Pode. Senta aí na beira da cama.

- Miguelzim... você é meu irmão mais velho. O pai diz que eu tenho que ser corajoso feito você.

- Você é corajoso. Você salvou a mãe daquela barata voadora, lembra?

- Eu sei. Mas é que quando chove assim, que nem hoje, me vem um arrepio por dentro. Esse barulho todo é Deus que fica bravo com a gente?

- A vó diz que é. Que quando cai o trovão perto do nosso ouvido, é porque precisamos arrepender dos nossos pecados.

- Eu tenho medo, Miguelzim. Você acredita em assombração?

- Assombração não existe.

- Mas a Martinha já viu. Ela jura que já viu.

- A Martinha é mentirosa. Ela diz isso pra você ficar com medo. Eu não acredito nela.

- Mas ela é mais velha que você.

- Não acredito e pronto.

- Miguelzim?

- Oi.

- Não conta pro pai que eu vim pro seu quarto?

- Não vou contar.

- Nem se a gente brigar feio um dia e você ficar com muita raiva de mim?

- Isso eu não posso garantir. O que você faria pra gente brigar feio?

- Não sei. Você é meu melhor amigo.

- Então pronto. Seu segredo estará bem guardado.

- Miguelzim?

- Oi.

- Você, quando era assim mais pequeno, que nem eu, tinha medo de trovão?

- Tinha. Eu me cobria todo até o alto da cabeça e ficava encolhidinho na cama, até o barulho passar.

- Você era mais corajoso que eu.

- Não era não. Eu nunca matei uma barata voadora.

- Posso segurar sua mão só um pouco?

- Pode.

- Amanhã o pai vai me dar uns trocados pro lanche. Te compro um refrigerante no recreio.

- Não precisa.

- Você é o melhor irmão, Miguelzim.

- Agora fica quieto. Não há jeito melhor de perder o medo de trovão do que ouvi-lo indo embora. Percebe como o barulho vai ficando cada vez mais raro?

- É verdade.

- Acho que você já pode ir pro seu quarto. Não há mais perigo.

- Tá bom.

- Fecha a porta.

- Miguelzim?

- Oi?

- É tão mais fácil ser corajoso ao seu lado.


sábado, 11 de dezembro de 2010

Essas coisas de primeiro amor


Comecei a escrever aos doze, quando as gotas de chuva na minha janela visitaram meus ouvidos em uníssono. Andava lendo muito romance policial e, naquele momento, muito possivelmente, larguei a Agatha Christie e busquei um papel e uma caneta. Na minha imaturidade, cuspi algumas palavras desajeitadas, uma poesia meio torta e inconvincente. Foi meu primeiro parto.

Depois disso, os versos passaram a me fazer visitas noturnas. Eram espasmos de dor no peito que se transformavam em coceira na palma da mão. Apalpava o bloco de notas que vivia na cabeceira da cama e, ainda em transe por causa do sono, rabiscava minhas rimas adormecidas.

Levava meus papéis às meninas da escola que conheciam bem essas coisas de sentimento. Queria que elas dessem algum sentido para aquelas letras desajeitadas e para aquelas escritas forçadas de quem lia romance policial. Sei que elas amavam. Ou fingiam amar, para me dar qualquer incentivo amador, como eu mesmo era. De todas elas, Fernanda merecia minha melhor atenção. Queria que ela amasse todas as poesias, que sentisse todas elas, que soubesse da minha admiração guardada em cada palavra. Ela foi meu primeiro amor.

Anos depois, sentado em uma cafeteria no centro da cidade, tomava meu expresso enquanto lia Dostoievski e rascunhava algumas ideias inspiradas pelo autor. Espiei por cima do livro e vi Fernanda entrar numa calça jeans surrada e numa blusa de frio listrada. Na mão direita, uma sombrinha molhada que denunciava a tempestade que caía do lado de fora. Na certa, ela entrou ali pra se esconder da chuva. Nossos olhos se encaixaram. Ela sorriu, sem demora. Foi se aproximando. Meus olhos eram só dela.

Perguntou se poderia assentar. Eu fechei o livro, sem me lembrar de marcar a página em que havia parado a leitura, e disse que sim, que poderia se assentar. Ela continuava a mesma. Conversamos sobre os anos passados, sobre o tempo de colégio, sobre os professores e colegas. Depois falamos da faculdade, tempo em que ficamos sem ver um ao outro. Me perguntou dos meus escritos, se eu havia encarado a profissão de escritor. Eu ri, envergonhado. Ela lia meus poemas, lembrei. Lia e fingia amar todos. Menti, respondendo que não continuei a escrever. Ela fez cara de espanto e disse que sempre adorou o que eu escrevia. Que via em mim um futuro brilhante. Eu agradeci e mudamos de assunto.

A chuva ficou mais branda. Ela se levantou e me deu um beijo no rosto. Nossas mãos se tocaram por cima da mesa, quase sem querer. Eu disse que fora bom tê-la visto. Ela sorriu e disse que torcia para um dia ter um livro meu na estante. Depois, pegou a sombrinha e saiu da cafeteria.

Não me concentrei mais na leitura. Meus pensamentos fugiram pra algum lugar distante, de sorte que eu bebi a xícara vazia três vezes, sem me dar conta de que não havia mais café. Depois, rabisquei algumas palavras no meu bloco de notas. O primeiro amor é como um livro fechado desatentamente.

Paguei a conta e enfrentei a chuva durante o meu caminho de volta para casa. Havia um livro a ser colocado na estante.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Em cima do muro


Em cima do muro, o moço equilibra seus dois pés. Os braços abertos no ar lembram aqueles aviões de brinquedo que nunca voam. O medo é visível nos olhos, nas pernas que tremem, no jeito que tenta tirar um pé e colocar o outro.


É que lá embaixo tem uma roseira. O medo é cair em cima dos espinhos. De altura nunca teve medo, sempre gostou de subir nas árvores mais altas pra se esconder da mãe que vivia com a correia na mão, pra lhe dar uns “coros”. Naquela hora ele ri, lembrando da mãe com a cinta numa mão, a outra mão na cintura, parada de frente pra árvore, olhando lá pra cima com os olhos de uma fúria sem fim. “Quando você descer, vai levar uma surra pra ninguém botar defeito”. Aí o menino passava o dia todo lá, até a mãe esquecer da surra, ou até o pai chegar em casa e defendê-lo.


Ele sempre achou que enfrentar o medo era uma forma de demonstrar amor. De forma inexplicável, o amor afasta o medo. É como se, em dois tempos, se ganhasse uma capa voadora e um poder intergaláctico destruidor. Porque, de fato, se preocupa não com o caminho, mas com o fim dele. O que tem do outro lado é suficiente para enfrentar qualquer roseira com espinho.


Em cima do muro, ele só consegue ver a luzinha acesa da casa dela. As cortinas estão fechadas, mas as sombras o deixam prever que, lá dentro, ela se penteia. Sorri ao lembrar que ela nunca mais prendeu os cabelos desde que ele, numa brincadeira, soltou suas presilhas e disse que a preferia assim: sem amarras. Naquele dia, ela sorriu de volta, encabulada.


Uma rajada de vento espalha o perfume das rosas, fazendo-o esquecer dos espinhos. Não há mais medo. Ele está pronto pra chegar na janela, surpreendê-la e arrancar-lhe um sorriso assustado. Pra ele, aquilo é amor.


Mais dois passos e já estaria lá. Pronto. Bate à janela. Alguns segundos até que ela afasta as cortinas. Ele aguarda ansioso, tentando se esconder debaixo do parapeito. Escuta o ranger das janelas se abrindo e aparece, querendo impressioná-la.


Pro seu azar, pro seu mais eterno azar, não é ela quem aparece. E sim a mãe, com rolinhos coloridos na cabeça e um semblante não muito amistoso. Ele despenca lá de cima, desacreditado. O susto maior é dele que jurava tê-la visto penteando os cabelos. Cai em cima das rosas espinhentas. O medo agora era dor, fincando sua pele. Tenta se erguer com dificuldade. Lá em cima, a janela é fechada e a luz apagada.


Flechado por um zilhão de espinhos, escala o muro novamente e pula para o lado da rua. Com a última esperança que lhe resta, lança os olhos para a janela. Está tudo escuro, mas consegue perceber a sombra dela, debruçada no parapeito, tentando alcançá-lo com seus sinais silenciosos. Ele havia percebido. Trocam um aceno e ela aponta pro braço dele, onde vê um espinho cravado. Cúmplices, sorriem da cena.


Por graça, ele abre os braços no ar e, equilibrando sobre o meio-fio, vai jogando um pé e depois o outro. Ela entende a farsa e aceita o gesto, encantada. Depois, fecha a janela e some no escuro do quarto.



quarta-feira, 8 de setembro de 2010

O explorador de galáxias e a motosserra



A história do explorador de galáxias começa aqui.


O explorador de galáxias, com seu foguete ultramegapotente, resolveu conhecer outros lugares do planeta Terra. No entanto, julgou que seria sensato de sua parte ter uma espécie de guia, alguém que pudesse lhe dizer aonde ir.


- Você quer fazer um passeio? – perguntou o explorador à menina, sua amiga de dez minutos atrás.


- Não posso demorar muito. Meus pais chegam em casa às cinco horas. Preciso estar aqui antes deles. – ressaltou a menina, já aceitando o convite.


O explorador pegou a menina pelas mãos e disse que assim ela ficaria invisível. A menina riu da bobagem.


- Por que está rindo? – perguntou o explorador, um tanto ofendido.


- Não existe isso de ficar invisível. – sorriu a menina.


- Não existe? – provocou o aventureiro. – Então tente chamar a atenção de alguém. Faça isso e veja se você está certa.


A menina fez careta para a primeira pessoa que caminhava pela rua. Não houve qualquer reação por parte do pedestre que, realmente, parecia não ter notado nada. A boca da menina fez um grande “O”.


- Meu Deus! Eu estou invisível! – ela disse isso e foi a vez do explorador sorrir.


Chegaram até o local onde o foguete estava estacionado. Entraram e a menina estava maravilhada com tantas luzes, botões e cores diferentes.


- Para onde vamos? – perguntou o aventureiro.


- Tem um lugar que você iria gostar de conhecer. Meus avós moravam lá, quando eram vivos.


- Tudo bem. Mentalize o local e encoste seus olhos bem aqui. – disse o explorador, apontando para uma espécie de olho-mágico.


Assim a menina fez. O foguete zuniu e ultrapassou a barreira das nuvens. A menina só sabia sorrir. Por fim, aterrisaram em um campo muito verde. Desceram e foram caminhando por uma trilha coberta de árvores. O explorador escutou um barulho estranho e perguntou o que era.


- É o barulho de uma motosserra. - disse a menina.


O aventureiro puxou a menina e ambos correram em direção ao barulho que se tornava cada vez mais alto e infernal.


- Oh! Você não pode fazer isso! – gritou o explorador ao ver um homem manejando um grande instrumento que cortava as árvores ao meio. – São árvores! Você está acabando com o silêncio!


O menino tinha ficado mesmo revoltado. Sua amiga apertou-lhe forte a mão direita e disse, baixinho:


- Tá tudo bem. Estas árvores virarão móveis bonitos.


- Mas não serão mais árvores. – lamentou o aventureiro; e havia uma lágrima solta em seu olho. – Elas são tão silenciosas, ao contrário dos carros que são muito irritantes. Se não houver mais árvores, restarão só os carros para fazerem todo tipo de barulho.


- Existem muitas árvores. – a menina tentou amenizar, embora visse que o explorador estava muito, muito chateado.


- Sim, e existem muitos carros. – retrucou o menino, já cansado de discutir. – Eu quero voltar.


O homem da motosserra olhava para as duas crianças, sem entender o que se passava. Ligou o instrumento e voltou a realizar o seu trabalho.


- Isso deve doer muito nelas, eu imagino. – disse o explorador, puxando a menina pro caminho de volta.


Entraram no foguete ultramegapotente e partiram rumo ao céu. Logo estavam de frente à casa da menina. Despediram-se com um abraço e o aventureirozinho soluçou.


- Cuide bem da Silêncio, sua árvore. – ele disse com a voz embargada.


- Cuidarei.


- Obrigado por ter sido minha guia. Eu gostei de você.


A menina corou de vergonha, nem conseguiu sorrir, nem dizer mais nada. O explorador descobriu que ela era tímida e achou graça. Parecia com as meninas da sua idade, aquelas do seu planeta. Da janela do foguete ultramegapotente, viu sua amiga correr de volta para casa. Logo depois, o foguete zuniu e sumiu por entre as nuvens.



imagem por isip-bata



sábado, 28 de agosto de 2010

Interior


Vai diminuindo a cidade
Vai aumentando a simpatia
Quanto menor a casinha
Mais sincero o bom dia

(Simplicidade - Pato Fu)



Dona Ana senta nos degraus da varanda para fumar seu primeiro cigarro. A xícara de café fumegante repousa ao lado, como um amuleto. Ela acena para Dona Elvira que sai da casa vizinha com os três cachorros barulhentos para um passeio matinal. Os animais se atropelam numa euforia incontida e Dona Elvira, magrinha, parece que vai ser arrastada. Mas não vai, não.


- Vamo chegar, Dona Elvira! – grita Dona Ana lá da varanda.


- Outra hora, Dona Ana. Vou levar os meninos pra passear.


Dona Elvira é viúva e não tem filhos. Vive sozinha, porque já desistiu de amar. No entanto, guarda certa admiração pelo vigilante da pracinha, Seu Nestor. É pra lá que ela leva a cachorrada.


- Bom dia, Seu Nestor. – ela cumprimenta, um tanto tímida.


- Bom dia, Dona Elvira. – ele responde com a voz grave que causa uns tremeliques nela, toda vez.


Seu Nestor cuida da praça porque, de uns tempos pra cá, a meninada tem pisado no jardim e destruído as plantas. Além disso, tem uns rapazinhos que, na calada da noite, gostam de pichar os bancos. Seu Nestor tem cara de bravo, mas se derrete pelas crianças. Sempre quis ter filhos, mas se julga sem vocação pro casamento.


- Chegou cedo, Seu Domingos. – repara o vigilante, ao ver o jornaleiro abrir sua banca.


- Cedo nada. Esse pessoal da cidade madruga. Se chegam na minha banca e a encontram fechada, vão comprar na banca do Hélio.


Seu Domingos mora na cidade há trinta e cinco anos. É casado com Dona Sebastiana, que faz doces como ninguém. Quem vende os doces é o Toninho, um rapazinho que gosta de ganhar uns trocados para poder jogar na loto. Ele é um menino esperançoso e tem o sonho de se tornar um milionário. O que Seu Nestor nem desconfia é que Toninho é um dos que picham os bancos da praça. Toninho não tem nada na cabeça, não.


- Vai levar o de sempre, Seu Gervásio? – pergunta o jornaleiro.


- O de sempre. – responde Seu Gervásio, conhecido por ser o melhor barbeiro da região.


Seu Gervásio senta em um dos bancos da praça pra ler seu jornal, como de costume. Uma rolinha vem visitar seus pés e ele olha, curioso, com certo carinho. Depois volta a ler o jornal. O sino da igreja toca, anunciando que são sete horas. As janelas das casas começam a se abrir, como que espreguiçando. As mães acordam as crianças para a aula, mas elas resmungam, pedindo mais cinco minutos. O moço do biscoito começa a gritar “Olha o biscoito fresquinho!” e a cidade vai despertando.


Dona Ana se levanta dos degraus, segura a xícara de café vazia nas mãos e entra pra casa. Ela gosta é daquilo: de ver o dia acontecer.


sábado, 21 de agosto de 2010

O explorador de galáxias e o bolo de milho


O explorador de galáxias era um menino de cem anos. No seu planeta, a contagem do tempo se dava de trás pra frente e era como se ele tivesse dez anos terrestres. Os anos não lhe acresciam, e sim diminuíam.


O explorador de galáxias desceu na Terra com o seu foguete ultramegapotente e olhou em volta. Muita gente e um zumbido infernal de objetos que corriam muito rápido, em cima de quatro rodas. Nesse momento ele era invisível, porque no seu planeta as pessoas já tinham inventado a fórmula da invisibilidade. Ele escolhia ficar assim pra poder observar melhor.


Entrou numa livraria e devorou a gramática. Aprendeu a língua. No seu planeta, ensinavam um método instantâneo de aprendizado. Resolveu caminhar pelas ruas e achou aquela gente muito desinteressante. Encontrou uma menina escornada na janela e resolveu ficar visível para conversar com ela. Tinham a mesma idade.


- Oi. – ele disse.


- Oi. – ela respondeu. – Você é o vizinho novo?


- Não. Eu sou um explorador de galáxias. Estou de passagem. – ele explicou.


- O que é um explorador de galáxias? – a menina parecia ter se interessado.


- É um aventureiro que anda pelo espaço sideral, conhecendo toda sorte de planetas. Eu tenho um foguete ultramegapotente também.


A menina riu, desacreditada.


- Quantos anos você tem? – ela perguntou, se julgando superior a ele, por não ter uma mente tão fantasiosa.


- Eu tenho cem anos. E você?


- Você é louco. – ela riu mais uma vez. O explorador de galáxias não entendeu a resposta, mas logo ficou satisfeito com o que ela disse. – Eu tenho dez anos. Gosta de bolo de milho?


- Nunca provei.


A menina entregou um pedaço de bolo pro explorador e comeu outro pedaço. Eles riam enquanto os farelos caíam pelo canto da boca.


- É muito bom. – o explorador disse. – Acho que é a minha comida predileta.


- Onde estão seus pais? – a menina perguntou, curiosa.


- Eles estão em casa, cuidando das coisas deles. Quando as pessoas completam dez anos, sempre têm muita coisa para cuidar.


- Eu cuido de uma árvore que plantei no fundo do meu quintal. – disse a menina, se sentindo importante porque o explorador havia dito sobre as pessoas de dez anos, e ela tinha dez anos. – Você quer ver?


- Eu adoraria.


A menina saiu da janela e foi abrir a porta pro explorador de galáxias entrar. Conduziu-o para o quintal, onde estava uma muda de pé de manga.


- É uma arvorezinha. Coloquei o nome dela de Silêncio. – contou a menina.


- É um lindo nome. E veja como ela é silenciosa.


A menina riu da piada. Na verdade, não era uma piada. O explorador de galáxias lembrou de todo o zumbido provocado pelos objetos de quatro rodas, os carros. As árvores, sem dúvida, eram silenciosas.


- Eu acho que as árvores são muito interessantes. – ponderou o explorador. – Mais interessantes que essa sua gente.


- Eu também acho. – concordou a menina.


- Você tem mais daquele bolo de milho?


- Sim. Você quer mais?


- Quero. É a comida que mais gosto.


E o explorador descobriu que as árvores e o bolo de milho eram as coisas mais interessantes daquele planeta.


quinta-feira, 22 de julho de 2010

Poltrona 23


Entro no ônibus para uma viagem de quase cinco horas. Poltrona 23. Coloco minha mala no bagageiro superior e me assento. Ao meu lado, uma moça que sorri displicentemente, como se alegria fosse um mero descuido. Sorrio de volta, num sorriso sem dentes. Penso que a vida, às vezes, é muito dura. Que o sofrimento quebra a gente por inteiro, como se fossemos um vaso nas mãos de uma criança que, sem querer, tropeça e o deixa cair. Os cacos são atirados para todo o canto da casa, alguns entram pra debaixo da cômoda, outros vão pra debaixo do tapete e ainda outros escorregam pra porta dos fundos, sumindo de vista. E aí aparece a boa, sempre boa Maria. Com aquela cara de indignação, dizendo que o menino só sabe é fazer arte. O menino pede que não conte pra mãe, com uma cara lambida. Maria diz “ai, ai” e começa a varrer os cacos do vaso. Debaixo da cômoda, debaixo do tapete, na porta dos fundos, tem um ali na escada. Maria é engraçada; ela resmunga o tempo inteiro. Depois, com os cacos todos entulhados na pá de lixo, ela pensa num jeito de safar o menino e se pergunta se tem como colar os pedaços. Ela acha que sim e vai tentar com aquela cola que tem o nome do apresentador do jornal nacional, o bonitão. Gasta mais de uma hora colando e consegue. As peças, porém, ficam remendadas, com aquela cara de serviço mal feito, apressado, desajeitado.


Fico rindo da situação, pensando que o sofrimento é mesmo tudo isso aí, só que sem as graças da Maria. A moça do meu lado me olha, me achando muito estranho por rir sozinho. Eu me volto pra ela e pergunto as horas, só pra que ela sinta, na minha voz, que sou um cara normal. Ela olha pro meu pulso e talvez não entenda porque eu faço aquela pergunta se meu relógio está funcionando perfeitamente. Ela responde “são uma e quinze”. E eu corrijo-a, em pensamento, “é uma e quinze”. Penso que a moça é muito esperta e bonita. Prende o cabelo num rabo-de-cavalo, deixando à mostra uma nuca muito branquinha e frágil. Não usa alianças, nem brincos, nem colar. Percebo que ela talvez seja uma daquelas moças com milhares de sonhos. Que quer terminar os estudos, arrumar um emprego, ganhar muito dinheiro, descobrir o amor e ter uma família feliz. Uma vida sem sofrimentos. É o que todo mundo quer, afinal. Tenho vontade de perguntar o que ela faria se todas as pessoas que ela amasse brigassem umas com as outras e sobrasse só ela, amando. Abro a boca pra perguntar, mas minha garganta começa a fazer cócegas e eu espirro. “Saúde”, diz a moça, muito educada. “Obrigado”, respondo com os olhos cheios d’água. Eu encosto meu braço no apoio central da cadeira, sem perceber que ela faz o mesmo, quase instantaneamente. Nossos braços se chocam e ficamos rindo da situação. Afasto o meu, dizendo “Pode apoiar”. Ela agradece, acomoda o seu braço, reclina a cadeira e fecha os olhos. Eu fico olhando, querendo um terço daquela paz.


Ao fechar os meus olhos, com o propósito de encontrar algum pensamento menos dolorido do que os que vinham pululando em minha mente, acabo por enxergar Maria, catando os cacos. Ali, atrás dela, o menino pede que ela jogue tudo fora, porque ele havia comprado um vaso novo e igual, com todas as suas economias juntadas da mesada. Maria sorri aliviada e até para de resmungar. O menino coloca o vaso novo no mesmo lugar onde estava o velho. Igualzinho ao anterior e sem nenhum arranhão. Maria e o menino sorriem cúmplices. Abro os olhos e vejo a moça dormir, virada pro canto. Continuo achando a nuca dela bonita e me pergunto se ela já sofreu alguma vez na vida. Concluo que sim, que todos sofrem à sua maneira. Que sempre somos remendados por uma cola (com o mesmo nome do apresentador do jornal nacional) ou acabamos por jogar os cacos fora e comprar um novo vaso. Volto a fechar os olhos e durmo. Talvez a moça tenha mesmo me dado aquele um terço de paz.


terça-feira, 15 de junho de 2010

A pedra de Drummond


* Em coautoria com a Mari que esboçou as ideias.


Drummond deixou uma pedra no caminho de todo mundo. Há tempos seus versos vêm se repetindo feito mantra. É que, como se sabe, no meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho. O fato é que existem diversas teorias sobre esse poema. Dizem que pedra é um percalço, um obstáculo. Quem nunca teve uma dificuldade na vida? Drummond teria traduzido esse sentimento coletivo, de forma simples. Pedra também, à vista de alguns, seria uma arma. Sim, Davi matou o Golias com três pedrinhas, pra quem não sabe. Uma pedra no caminho, às vezes, pode ser muito útil para derrubar o gigante. Outros ainda insistem que Drummond queria mesmo era brincar de ser bobo, juntou algumas frases e criou um embaraço na cabeça das pessoas que nunca mais pararam de pensar na tal da pedra.


E eis que, na sexta série, Tia Vânia, a mais amável das professoras, pediu à minha turma que montasse um seminário. Sim, garotos e garotas de doze anos teriam que explicar o que seria a pedra. “Oi, que pedra, Tia Vânia?” Ninguém conhecia Drummond. De famosa, aquela pedra não tinha nada. Fomos ler, pois. A cabeça coçava, surgiam piadinhas, pedra é uma coisa muito abstrata, sabe? “Coisa chata esse Drummond”, repetíamos nas nossas cabeças até o dia da apresentação. Há quem repetisse também que no meio do caminho tinha um Drummond, tinha um Drummond no meio do caminho. Ele estragou tudo. Ninguém mais conseguiu brincar de esconde-esconde, de pula corda, de amarelinha. Tudo na vida passou a ser a pedra. Tínhamos sido coisados pelo poder do poema.


O fato é que, querendo agradar Tia Vânia, pensei que ela adoraria ouvir que a sua aula era uma pedra no meu caminho. Afinal, pedra também era sinônimo de segurança, de solidez, de fortaleza. Estufei o peito e apresentei meu seminário dizendo com a boca cheia de paixão: “A pedra, tia Vânia, é essa aula aqui”. Terminei a apresentação e me sentei na carteira, me achando o máximo. Só eu tinha tido aquela brilhante ideia. Qual foi a minha surpresa ao receber a nota: eu havia sido o único de quem a professora subtraíra três pontos. Odeio você, Drummond, e essa sua pedra esquisita que pode ter tantos significados.


Hoje penso no poder das palavras e de suas possíveis interpretações. É que a leitura é tão repelida e odiada. Fizeram das letras um verdadeiro obstáculo, ou, como queria Drummond, uma pedra. Uma rocha gigante no meio do caminho do conhecimento. Ler passou a ser uma penosidade, uma triste tarefa diária, uma obrigação das mais chatas. E concluo que muito disso não é culpa da pedra em si, mas do caminho que leva até ela. Porque não se esqueçam, havia um caminho também. Então de onde essa fonte que ensina o desprazer pelos livros e poemas? De onde essa inimizade com a escrita? Lembro-me então da minha avó professora. Educadora nata que ensinava a arte dos números e das vogais. Dizia ela que educar é um constante parto. O primeiro deles seria o físico, o esforço natural da gestante. Depois vem o esforço para ensinar o filho ou o aluno a criar as próprias ideias, a inventar as próprias palavras. E assim seria possível ensaiar os próprios partos. Não há leitura sem ideia, não há palavras sem olhos atentos, não há poema sem inquietação, não há aprendizado sem esforço. Hoje, o parto explica-se por um verbo. Partir. É que estamos indo todos para um tempo em que a literatura não faz mais sentido. Ninguém mais odeia Drummond e continua lendo assim mesmo, porque foi cativado. Odeia-se e desiste-se. A pedra agigantou-se. Se fosse uma arma, de nada serviria. Arma pesada demais ninguém carrega. A pedra, nesse caso, seria a própria derrota.


Que o partir seja em direção a um caminho onde a pedra se esfarelou. Que seja a pedra, na verdade, uma arma colocada nas mãos de quem quer paz. Usar palavras pra falar daquilo que é bom. Usar palavras para fazer como Drummond que nos prendeu em versos muito simples, mas muito profundos. Para falar de acontecimentos inesquecíveis, como aquele dia em que havia uma pedra no caminho, quando as retinas já estavam tão fatigadas...


terça-feira, 8 de junho de 2010

Depois que você se foi


Depois que você se foi, eu fiquei alguns meses sem nem saber que você ainda morava em mim. Tudo ia muito bem e a decisão parecia ter sido a mais acertada. O problema foi quando veio a certeza de que eu havia perdido um amor muito bonito. Aí doeu. Veio saudade e vontades instantâneas de chamar você de volta. Escrevi um texto, até. Era uma despedida, porque não tivemos uma. Escrevi meu todo ali, dizendo que seria muito bom guardar nossas lembranças. Inevitável foi concluir que eu não poderei jamais falar de amor sem mencionar você.


Depois que você se foi, escutei todos os CDs de Los Hermanos. Passei a traduzir Chico e a buscar as poesias que você abraçava nos dois. Julguei muito injusto não podermos dividir o que eu vinha aprendendo. Injusto também eu não falar das outras músicas que nos traduziriam muito bem. “Tudo diferente”, cantada por Maria Gadú, conhece? Diz assim: Todos caminhos trilham pra a gente se ver/ Todas as trilhas caminham pra gente se achar. É isso que eu teria te dito, talvez. Isso e coisas bregas que você sempre me fazia dizer. Sempre.


Depois que você se foi, fiquei me perguntando como você estaria. Se doía em você também. Quanto tempo doeu. Se houve esperança. Se houve outros caras interessantes. E aí eu quis muito que você se libertasse primeiro. Que me esfregasse na cara um romance muito mais lindo do que aquele nosso, embora eu julgasse difícil essa parte. Mas é que eu precisava saber de você feliz.


Depois que você se foi, eu tive que fazer terapia e tomar medicamentos para depressão. É mentira. Hehe. Mas eu não consegui andar sozinho, algumas vezes. Faltava uma parte grande: era essa a sensação. Daí que fui dando meus passos trôpegos e, hoje, seis meses depois, ainda me pergunto se tá tudo bem aqui dentro. Não sei. Parte de mim já desistiu desse negócio de amor. Pra mim só existiu uma vez: você. Outra parte ainda tem a esperança de haver algo parecido, equiparado. Não igual.


Também coloco um ponto final aqui. Prolongar despedidas sempre foi a nossa cara, mesmo. Mas não estamos mais em tempo disso. Tempo de brigar só pra ter que retornar aos seus braços. Tempo de sumir só pra você ter que me achar. Era assim antes e era muito bom. Vamos deixar esse retrato intocável. Relicário, como você bem disse. Eu respeito também. Ao longe, já vejo nossos dedos se soltando. E o coração atenta praquilo que há de vir; não há caminho melhor: nós abrigamos o amor.


sábado, 29 de maio de 2010

Nonada


Chovia. Uma chuva fininha e desorganizada que distribuía pingos para todos os cantos, de forma que o guarda-chuva não adiantava de muita coisa. Meus passos eram lentos e arrastados, como se eu quisesse fazer o tempo me acompanhar em um ritmo de eternidade. Guardava comigo as impressões das pessoas que caminhavam às pressas e não queriam se molhar. Apenas uma chuva, pensei. As pessoas têm medo. Evitam a água com medo do resfriado, evitam o amor com medo de decepção. Invejo a coragem dos homens das cavernas. Sim, às vezes sou radical nesse ponto.


Então ela me ultrapassou com uma sombrinha vermelha fluorescente e os pés descalços. Aquilo me chamou a atenção, como aconteceria se uma girafa, solta na avenida principal, fosse motivo de um congestionamento exatamente porque fazia um esforço para mordiscar os fios da rede elétrica pendurados de um poste a outro. Ela tinha passos apressados, mas era descompromissada com o tempo. Caminhava para lugar algum, querendo mesmo aproveitar o chão molhado e as poças de água para fazer afundar os dedos metodicamente pintados de um rosa muito discreto. Pelo trejeito, julguei que ela fosse a personificação de nonada, expressão que Guimarães Rosa empregava muito bem para fazer significar qualquer coisa.


Desacelerei meu ritmo, querendo guardar aquela cena na minha memória já fraca por tanto abarrotamento de informações acadêmicas. Estudar, às vezes, deixa agente alienado da poesia declamada pelo cotidiano. Todo dia ela faz tudo sempre igual, e Chico transformou isso em uma coisa bonita. Pois a moça, com os pés no chão e a sombrinha vermelha fluorescente era a lembrança de que as rimas ainda se operavam debaixo da chuva. Então ela sumiu dentro da multidão que corria dos pingos. Meu coração marchou junto, na certeza de que eu a encontraria dali a alguns dias na praça, comendo pipoca. Ou tocando violão na porta do restaurante cheio de gente granfina. Fato é que ela não fazia tudo sempre igual. E ainda assim era cotidiano. Era nonada, cabendo dentro do tudo que se tem.


terça-feira, 25 de maio de 2010

Na esquina, um amor.



Com ela, a menina do rock.



O amor me apanhou na esquina. Tudo em mim andava distraído, inclusive o cenário à minha volta. A roseira do quintal ao lado parecia ir espreguiçando ao som da água que saía da mangueira. As nuvens, em ar displicente, estalavam os dedos enquanto abriam os olhos ainda pesados de sono. Meu coração pulsava desconfiado, numa marcha esquisita de quem pressente um ruído longínquo de qualquer coisa muito boa. Era assim o sentimento que ziguezagueava no meu peito. Até que quebrei para a esquerda, num despropósito de quem deixa o balão de gás escapar das mãos. Dobrei a esquina e amei. Instantâneo. Não me julgo normal, mas tal fato não foi nenhum indício de demência. Amei com toda a minha razão, com todos meus abraços, beijos e com toda a minha vontade de ser humano. À minha frente, todas as sombras e todos os objetos que surgiam causavam um comichão por dentro. Era o aviso do novo hóspede que, cheio de malas, as abria uma a uma na certeza de que encontraria ali algum presente capaz de me sinalizar para que veio.


E eu aceitei. Aceitei assim como se aceita algo impossível de se recusar. A vida, de fato, estava me presenteando. Não havia como negar, não havia maneira alguma para esquivar. Nossos olhos de caminhos opostos e cheio de fugas acabaram se cruzando. Os pés, por conseqüência do olhar, tomaram um único caminho e se encontraram no mesmo lugar. Parecia, naquele momento, que uma força maior nos movia. Parecia que havia ali, algo que nos impulsionava um para o outro. O universo conspirava ao nosso favor. O destino fazia o seu papel. E a gente, frente a frente, simplesmente mostrava através do mais belo sorriso o que se passava por dentro.


Impossível não ter notado as doze mil borboletas que acompanhavam seus cabelos e que, de forma imprudente, se enfileiravam para adentrar minha boca e fazer caminho no meu estômago. Gestos eram coisas desnecessárias naquele momento. O amor era cena, estado febril dos meus sentires, todos juntos. Eu ia amando como quem rema um barquinho de papel pronto a se esfacelar na água. Tornei-me observador de todo seu brilho, de toda a órbita que te circuncidava como se você fosse uma estrela inaugural. Amar é tão fácil, pensei, enquanto analisava como seria bom tocar seus dedos. Perdi minha desesperança no seu colo e entornei um sorriso bobo para que você amparasse o sentimento que dele escorria. Com os olhos, escrevi algumas cartas simultâneas e deixei que as letras fossem pousar, ousadas, aos seus ouvidos. De tudo, amei seu silêncio. E a forma como ele se portava, tão docemente, dentro de você.


Foi nesse momento que nos conhecíamos mais. O céu, com o sol luminoso e as nuvens que mais pareciam algodão, completava o cenário de um casal apaixonado que não se importava com a rapidez dos fatos e o pouco tempo de contato. De fato, ali, existia algo místico. O encontro de duas almas que, por certo tempo, andaram perdidas pelo caminho da vida. Nosso amor foi pré-mediato, pré-escrito em folha de almaço pela criança mais sonhadora da aula de português. E eu, ali, obedecendo aos desejos da alma mais ingênua, me vi ao seu lado, ouvindo apenas sua respiração. Emoção. Senti, de repente, suas mãos afagando meus cabelos. Olhei para você, bem no fundo dos seus olhos e com os dedos contornei o desenho da sua bela face. Você, notando o que aconteceria na próxima cena, tomou a mesma atitude. Em questão de segundos, o beijo que se anunciava, prenunciava a nossa eterna união, aconteceu. Dividíamos o momento e trocávamos borboletas. Foi assim e sempre será, de janeiro a janeiro. Para o resto de nossas vidas.