sábado, 30 de agosto de 2008

Despedida


Veio você com esse olhar de despedida e, na face, um tormento que, sem sucesso, tentava esconder. Abraçou-me. Eu senti sua garganta embargada e ouvi sua foz fraquinha balbuciar um “adeus” no meu ouvido. Apertou-me contra o peito e os corações uniram-se numa nota só, num lirismo inquietante que se pôs a pulsar sem controle.


- As estrelas. – você me disse, assim, com a voz cheia de candura.


- O que tem as estrelas?


- Será minha forma de visitá-lo todas as noites.


E ficamos num silêncio impróprio, você cantando pra mim, dizendo que meu perfume ia ficar como presente daquele último encontro. Lembrou-se do nosso pé de amora e da nossa brincadeira de sujar o nariz um do outro com a fruta. Rimos da sua mãe desconfiadíssima de um possível namoro entre nós dois. E o primeiro beijo, iniciativa sua, dado dentro do banheiro masculino.


- Cante uma canção pra mim. – você pede com um tom irrecusável.


- Eu não canto bem.


- Não ligo. Quero a sua voz ressoando no meu ouvido quando eu entrar no avião.


E eu cantei qualquer coisa que você adorou. Seus olhos tão miudinhos se encheram dágua e a despedida nunca doeu tanto como naquele momento. E rimos. Rimos da cena e daquela vontade implícita de jogar tudo pro alto e ir morar na lua, eu e você com nossos doze filhos e as doze babás. Sonhar ao seu lado tinha um quê de brincadeira, era como pegar um lápis colorido e sair pintando a felicidade. Interessante a forma como eu sabia amar você.


- Eu já vou. – e você se soltou de mim, pegou uma mala e me apontou a outra.


- A gente se fala? – eu perguntei e você sorriu.


- Você tem meu telefone.


E fomos de mãos dadas, eu já pensando em um pedido de casamento ali, naquele momento. O coração inquieto, a tristeza de imaginar o porvir, a certeza de que as poesias não seriam mais as mesmas. É que sua leitura pausada despertava todos os meus prazeres e causava-me sensações alucinógenas que pareciam não ter fim. E os seus dedos, passeando pelos meus cabelos, me despertavam pra singeleza dos seus atos tão inesquecíveis.


- Quer vir comigo? – suas brincadeiras sempre foram de mau gosto.


- Eu fico aqui olhando você voar.


- Se mudar de idéia, você me alcança. Sei das suas asas.


E o último aceno foi como quando você me cumprimentou pela primeira vez. Meu estômago borbulhava. É a forma como eu sabia amar você.



Que tal uma passadinha em Paquetá? Tem texto novo da Jaya!



quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Indomesticáveis



A luz apagada e o armário abarrotado de medos. Medos antigos já empoeirados. Medos novos também. Cada vez que se abre uma porta vem aquela dúvida persistente: “Qual eu vou levar hoje?”. São todos cinzas, birrentos, ciumentos. Querem ocupar espaço, sair, expandir pra onde bem entenderem. São cheios de si. Há quem goste, porém, de colecioná-los. Esquisitice é algo que ronda o ser humano. Alguns chegam, assim, devagarzinho. Vêm trazendo qualquer aspecto de bondade, tem uns que até riem no primeiro contato. E trazem um friozinho inquietante na barriga, um suor no canto da testa e um tremor nas mãos. Conseguindo terreno, vão fazendo morada. Escolhem um cabide e já vão se pendurando, se entendendo com os outros que também habitam ali. Fazem jogos, forjam conflitos, criam situações que perturbam a mente. São rivais, vilões e, na maioria das vezes, nos vendam os olhos para impedir a visão lateral. Vivem nas sombras, são sutis e impertinentes. Viram e reviram, dão cambalhotas e soltam foguetes que explodem em lágrimas. O medo faz chorar. Diante da aflição, resta o desejo de libertação, a consciência dos grilhões que eles trazem consigo, resta a iniciativa de acender a luz. Diante do clarão, eles se aquietam e recuam. São covardes. Mas não perdem a iniciativa e a gula. São indomesticáveis animais de estimação.

sábado, 23 de agosto de 2008

Inquietude


Carregava nos olhos o cansaço de quem já viveu um mundo. A tez enrugada era castigada pelo sol que lhe piscava agradável todas as manhãs. Os pés descalços iam pisando o chão de pedras, arranhando o calcanhar calejado, trincando, sangrando, doendo. Mas o sorriso balançava no canto da boca de onde, discretamente, ia nascendo uma canção. Seguia subindo o caminho para casa, segurando em uma mão um balde de água que acabara de tirar do rio e na outra um pouco de esperança. O vestido surrado que a mãe fez há cinco anos na velha máquina de costura agora perdeu o encanto. Ficava tão bonita dentro dele, sentia-se donzela. Mas o pano desbotou, o viço da pele desbotou, o mundo foi ficando mais cinza. O marido ainda lhe dizia que era bela, que tinha as pernas bonitas e que seu beijo era como pedaço de céu. De vez em quando ainda pedia o batom emprestado pra vizinha. É que seu marido merecia umas bonitezas. Os cabelos soltos eram varridos pelo vento forte que também derrubava algumas flores das árvores. A natureza pintava-lhe como uma rainha quando algumas flores da ameixeira caiam-lhe na cabeça. E ela sorria encantada com o frescor e com a brincadeira do vento. Seus olhos cansados, empapuçados, denunciavam noites de sono mal dormidas. É que rezava a Deus pelos seus filhos enquanto eles dormiam na madrugada fria da casa onde viviam. Pedia a Deus que cobrisse seus filhos com um véu quentinho e, depois de beijá-los, um a um, deitava-se ao lado do marido. Cochilava e o galo já ia cantando ao longe. Hora de acordar e buscar água. O dia começava cedo. E ela descia ao rio depois de pentear os cabelos. Ia pintando o cinza de todas as cores que encontrava pelo trajeto. E, sem saber, era acompanhada de anjos que tocavam lira. É por isso que ela escutava uma música que vinha, assim, dos ares. É por isso que seu peito trazia aquela inquietude que acomete alguém cheio de esperança. Esse era o seu segredo: fazia do ruído a mais pura poesia.



Eu e a Jaya estamos em Paquetá. Peguem o passaporte e deixem por lá alguns rastros!


domingo, 17 de agosto de 2008

Café Expresso


Não me pergunte por que vejo seu sorriso em cada canto. Não entendo seu jeito de me mimar com os olhos, embora goste dessa sua mágica. É que você aparece, de repente, trazendo pro meu peito milhares de astros empoeirados, milhares de versos desfeitos, inacabados. Você é tal qual uma poesia que emendo dia após dia. Eu escrevo você.


Já tomei três xícaras de café. A cafeína me vicia. Ando nervoso. Você me traz irritação com esse seu jeito de menina displicente que não tem hora pra nada, não se importa em me fazer esperar. Mas é tão bom ouvir seus passos chegarem de mansinho. E ver seu sorriso se abrir devagarinho como uma melodia que vai brotando, assim, sem querer. Tão bom olhar seus olhos tímidos e fazê-los desviar, fazê-los se esconder debaixo da sua aurora e dos seus beijos implícitos. É que você me beija com os olhos.


O que diz o restinho de café no fundo da xícara? É possível ler o futuro nessas gotas aglomeradas? Será que você vem, cheia de flores, trazida pelo vento, com os cabelos desarrumados e o passo desajeitado? Não me encanta mais seus pecados. Sei todos de cor. Encanto é descobrir sua pureza ao despir seu mundo e sua poesia inenarrável.


- Cheguei atrasada? – você, às minhas costas.


- Não. – respondo já inebriado por suas formas.


- Mentiroso. Tomou três xícaras de café. Me desculpa? – seu dom é este: fala como quem se arrepende de um ato escabroso.


- Eu li nosso futuro aqui na xícara. – eu conto, mas você não acredita.


- É? E o que diz aí? – seu ceticismo é insistente.


- Diz que você vai se lembrar de mim enquanto durar nossa valsa.


E você ri. Ri desconcertada. Você também tem outra vantagem. Escuta qualquer bobagem como se ouvisse a mais pura sonata.


- Não é bem aí na xícara que isso tá escrito, seu bobo. – é seu comentário. Pertinente, por sinal.


- É, eu sei.


Você abraça minha mão.


É o seu jeito de me convidar pra mais uma dança.


quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Como não conquistar uma mulher




O que ele faria para conquistar Aninha? Linda daquele jeito, nunca olharia pra ele com aquela cara de nerd explícita. Seus óculos fundo de garrafa e o cabelo penteado metodicamente para o lado esquerdo denunciavam seu estilo de vida. Além do mais, Aninha deveria ser daquelas meninas que gostam de caras musculosos, cheirosos e que andam com camiseta regata e bermuda de praia. Mas esses caras costumam não ser interessantes e ele sabia que Aninha gostava de homens inteligentes. Quem lhe contou foi Fernando, seu vizinho. Fernando era rapaz confiável, não mentia pra mãe e cuidava da avó duas vezes por semana. Fernando não estaria mentindo, claro que não!


Entrou na fila do restaurante universitário. Quando é que o reitor vai notar esse monte de gente se amontoando por um prato de comida? Um absurdo não haver outro restaurante com preço acessível. Apostava como Aninha não almoçava ali. Ela tinha cara de comer naqueles restaurantes chiques da cidade. Não que ela fosse metida, não, longe disso! Aninha era simpaticíssima. Andava bem arrumada, mas não era de se exibir que nem a Simone. Simone, só porque foi a Paris quando tinha três anos de idade, achava que sabia falar francês e se gabava toda de ter uma miniatura da Torre Eiffel no quarto. Grandes coisas! Aninha não era assim.


Sentou-se em uma mesa vazia com seu prato e pôs-se a devorar a comida. Não era das melhores, mas estava com fome. Conquistar Aninha não deveria ser fácil. Precisaria chegar, galanteador, puxar uma prosa boa, elogiar o sorriso dela. Mulheres gostam de elogio, dizia o seu pai. Então elogiaria o sorriso e perguntaria se ela gosta de cinema. Daí pra convidá-la seria um pulo. Mas e se ela não gostasse?


Uma menina pediu licença para se sentar com ele na mesa. Ele fez que não ouviu, não queria conversa com ninguém. Que ela se sentasse, oras! Pra que pedir licença? Não tinha ninguém nas cadeiras desocupadas e era mais do que costume sentar-se com desconhecidos na hora do almoço. Isso que dá não ter dinheiro pra comer em um restaurante decente. Tinha que se sujeitar ao da universidade. Ano que vem daria um jeito de pedir aumento de mesada ao pai.


Ah, sim, a Aninha! Bom, se ela não gostasse de cinema, perguntaria se ela gosta de teatro. Teatro é bom. Havia umas comédias em cena. Isso! Teatro é certo, as pessoas gostam. Se bem que a Tia Augusta odiava teatro, ela reclamava que as pessoas riam alto demais. Mas cinema também é assim. Até fila de banco, se bobear, tem uma ou outra escandalosa que ri alto. Tia Augusta era doida, a opinião dela não deveria ser levada tão a sério.


Mas como se aproximaria de Aninha? Ela era da outra turma, nunca devia tê-lo visto nos corredores da faculdade. Iria se apresentar como? “Oi, tudo bem? Sou da outra turma de direito. Queria conhecê-la.” Não, claro que não. Ela riria da sua cara. Um bocó, ela vai pensar. Ele poderia pensar em um esbarrão “por acaso”. Sim, ele viria na direção contrária à dela e, de repente, esbarraria na moça, deixando cair os cadernos no chão. Não, melhor evitar essas coisas. Vai que, no nervosismo, ele acaba batendo forte demais e machuca a garota. Droga! Tão difícil isso de conquistar uma mulher. Se pelo menos ele fosse bonito, charmoso ou qualquer coisa do tipo.


A menina sentada na mesma mesa pediu licença pra sair. Já? Ou a menina comia muito rápido ou não comia quase nada. Não devia ter ficado nem cinco minutos ali na mesa. Levantou os olhos do prato pra ver quem era a garota-que-come-depressa. E, naquele momento, ele foi tomado por uma onda eletrizante que percorreu todo o seu corpo. Quase engasgou com a comida e sentiu as mãos geladas, os dedos do pé com câimbra, a boca seca, o coração batendo desritmado. Não teve palavras para chamar a atenção da moça que já ia embora. Na sua cabeça, porém, os sinos tocavam reticentes: “Aninha...”.


sábado, 9 de agosto de 2008

Notas de nós dois



Em co-autoria com a Jaya



Vendo você daqui, sentada na varanda e debruçada sobre as almofadas espalhadas pelo chão, me pergunto de qual galáxia você roubou esses dois astros cintilantes que carrega nos olhos. Sua trança ajeitada no canto do ombro e seu vestidinho de menina-moça fazem brotar em mim um sorriso. É que você me lembra qualquer atriz de cinema. Então você percebe minha visita inesperada e se levanta. Vem cantando e assim me arrasta para um mundo arrebatado de flores e acordes. E me pega pela mão, permitindo-me girá-la na ponta dos pés. O chão também gira, o céu se abre infinito sobre nós dois. Tanta poesia é pintada nos nossos lábios, nos nossos dedos! Parece até que temos o mesmo batido. Você não percebe assim? Tanta sintonia e tanto a descobrir! Você tem uma música predileta? Eu tenho. É essa que sai do nosso peito enquanto dançamos.


Meu espelho, você. Vem caminhando assim, me trazendo o que já é meu, vestindo as coisas com tua presença, descerrando os lábios e me entregando um riso. É como se nesse gesto a alma fosse lhe saindo em notas e transformasse esse solo em dueto. É a dança. Música predileta. Canção de nós dois. Caminha comigo, um pouco? Não solta da minha mão. Nota o debruçar do céu. Escuta as estrelas balbuciando versos. O rio, ao lado, todo cheio de lua. Preparei assim, hoje. É que a cada chegada tua, te inauguro. Bom demais fazer festa em você! Bonito teu olhar fulgurando contra o meu. Coisa tão nossa esse leva-e-traz que vai colando afinidades. Tiro do meu bolso pétalas dos acordes que brotaram daquela primeira vez. Lembra? Você, então, me conta da primavera. E gesticula um enleio todo ingênuo, me fazendo recordar um romance qualquer, do qual você deve ter saltado. Quem te escreveu? Será que sabiam eles o gosto bom de fazer tua tradução? Resolvi musicá-lo, de maneira reticente.


Pra que tantas perguntas, tanto ruído? Fica quietinha, me deixa apreciar esse silêncio que você toca com o sorriso borrado de ternura. Sorriso que desperta em mim uma adrenalina de constelações. Não importa se erramos o passo nessa hora. Já tenho o mundo quando recebo você nos braços e, sem saber onde tocam os meus pés, me encerro num paraíso só nosso, cheio de poesias e afins. É que você tem esse seu jeito faceiro e carrega esse tom de saudade, esse suspiro contínuo de conto inacabado. Sentiu a minha mão gelada, as minhas pernas trêmulas? Sua presença me traz fulgor e acende luz no meu porão de tristezas. Seus gestos são como pluma que massageiam meus ombros tensos e ardentes. A primavera chegou, está vendo essas flores desabrochando? Parecem versos, cantigas, histórias que narramos juntos enquanto ficamos sentados no balanço. E quando chegar o outono, nossas brisas se espairecerão com notas de nós dois. Notas que nasceram de um toque de mãos e permanecem latentes nos olhos. Não parece sonho?


Sonho, sim. Bordado em delicadeza, como se exposto numa banca de flores. Nesse conto fui forjando asas, descobrindo simetrias. Você foi pousando em mim um olhar ensimesmado, distraído, que clareou minhas cores por inteiro. Te entrego agora a fala muda. Dispenso as palavras. Melhor brincar de fazer excursão em você. Não me importo em me perder, não. Assim eu vou ajeitando meu caminho para encostar no teu, pintando nosso mais-que-perfeito. Vai ver é aí onde me encontro. Sem pedir licença, vou te enfeitando em meus cantos. Você desce do balanço, e divide comigo essa falta de gravidade. Numa postura doce, canta para mim as mágicas fórmulas do pólen lunar que a brisa primaveril foi espalhando sobre nós. Canta com essa voz suspirosa, numa harmonia vaga. Já tiro você de ouvido. E aí gente vai acontecendo, mirando o horizonte, costurando o você e eu. Vou furtando um pouquinho das horas, rodando os ponteiros para trás, demorando em você, fazendo coleção dos teus sorrisos - amuletos meus. E quando você estiver de longe, vista-se outra vez de um pôr-do-sol: brilha onde estiver. Leva o carinho meu? Põe no azul. É teu.


Toma também do meu canteiro, das minhas flores que você regou com estrelas. Carrega com você esse meu pedaço que é pra quando minha imagem escurecer na sua mente. Toma meu violão, deles saem as notas e as músicas que fizemos juntos. E toma o meu tormento. Esse que você trouxe quando visitou a minha janela. Tormento bom, mas quero que seja seu também. Prenda-o no pescoço que é pra nossa história ficar sempre no seu peito. Põe no céu. No azul. É seu. É nosso. Todo nosso.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Congestionamento


Magrão é um amigo de infância que nunca teve muita sorte com mulheres. Sempre fora o mesmo: alto e magro. Não conseguia chamar a atenção por ser desengonçado e extremamente barulhento. Chegava e já ia derrubando dois ou três copos e aquele arranjo comprado na loja mais cara da cidade. Mas era um bom sujeito.


Depois de alguns meses sem vê-lo, encontrei-o na fila do banco. Nos abraçamos e fizemos comentários sobre os efeitos do tempo.


- Você tá mais gordo! – ele me disse.


- E você mais alto e mais magro! – repliquei.


Travamos uma conversa interminável sobre trabalho, família e, por fim, mulheres.


- Mulheres? – ele ria como quem ouve uma piada de mau gosto. – Pois eu vou lhe contar o que aconteceu comigo um dia desses.


E eu cruzei os braços já esperando pela história.


- Há um mês peguei um congestionamento horrível lá pelas bandas do Espírito Santo. – ele começou. – Tava um calor infernal e meu carro não tinha ar condicionado. Saí pra comprar uma água e me esbarrei com a mulher mais bonita que você possa imaginar. Morena dos olhos claros e um corpo, meu amigo. Assim que comprei minha água, me voltei pra ela com um sorriso e perguntei as horas.


“Não faço idéia, meu relógio de pulso parou e meu celular está com a bateria descarregada. Estava até precisando ligar pra minha mãe e avisar que vou me atrasar por causa desse trânsito.”


- Então, eu, mais que solícito, ofereci o meu celular para que ela pudesse ligar. Para isso, levei-a até o meu carro onde estava o aparelho. Ela aceitou e fez a ligação. Depois ficou me agradecendo e elogiando minha camisa nova da Pierre Cardin. E ela foi ficando no meu carro, a conversa foi rendendo. Até tirar o casaquinho ela tirou. Eu só agradecia a Deus por aquele congestionamento maravilhoso.


“Por que não liga o som?”, e ela mesma se inclinou para ligar. Sintonizou uma rádio que tocava música sertaneja e ficou cantando. Perfeita também não dá pra ser, né? Daí ela falou que adorava música sertaneja por causa das primas que tinha em Minas.


“Você conhece Minas? Eu moro lá.”, anunciei pra ver se ela se empolgaria. E ela se empolgou demais, meu irmão. Foi falando da parentada, das primas e da infância dela em Diamantina. E eu fui achando aquela mulher a coisa mais linda. Nos meus pensamentos, só sabia pedi-la em casamento.


“Meus pais são mineiros, sabe? Tiveram um namoro conturbado e desfizeram o noivado depois que meu pai arrumou outra. Desde então, minha mãe e eu vivemos em Vitória. Vi meu pai uma única vez. Sei que tenho um irmão por aí, mas nunca tive coragem de ir atrás.” , ela me contou. Nessa parte da história, eu já fui gelando todo. A vida do meu pai era exatamente a mesma daquela narrada pela moça. Juntei forças pra perguntar a ela o nome do pai e quase tive um infarto. Dá pra acreditar? A mulher dos meus sonhos é minha irmã! E eu jurava que ela tava me dando bola. Mais alguns avanços e eu iria convidá-la pra sair, não fosse a revelação.


O Magrão começou a rir naquele seu estilo escandaloso e lamentou a falta de sorte dele com mulheres. Eu, depois de consolá-lo e dizer que cada coisa tem sua hora, tive que reconhecer minha vontade de conhecer a irmã do Magrão.


- Mas Magrão, vem cá, sua irmã é solteira?

sábado, 2 de agosto de 2008

Realeza


Espreguiçou-se como uma rainha e enrolou-se nos lençóis por mais dez minutos. Abraçou o travesseiro como se fosse de penas de ganso e cochilou numa cama que mais parecia nuvem. Levantou-se com um sorriso majestoso na face. Os cabelos desgrenhados, a camisola velha, mas não perdia a pose. Era uma rainha.


Escovou os dentes com a melhor pasta de todos os reinos e tomou um banho gelado como se lhe caísse água quente e perfumada. Usou o desodorante rol on vencido que acreditou ter comprado em Paris. Penteou os cabelos como se usasse pente de madrepérola e os prendeu com uma presilha no melhor estilo real.


Foi fazer o café e tomou-o como quem sorve um bom leite com chocolate suíço. Beijou os filhos. Seus principezinhos e princesinhas. Ajudou-os com as merendeiras e serviu-lhes torrada com café como quem coloca um banquete na mesa.


O marido chegou em casa depois de um turno na guarita. Abraçou-o. Seu rei. Jurou-lhe amor eterno e pediu que se sentasse à mesa. Havia um banquete à sua espera. O marido, resignado, sentou e comeu do desjejum, esquecendo-se de sua nobreza. A mulher o observou, apaixonada. Despediram-se com um beijo e ela saiu para levar as crianças ao ponto de ônibus como quem as leva à carruagem.


Colocou os filhos dentro do ônibus e acenou para eles que jogavam beijos da janela. Ela voltou sorridente para casa e encontrou o marido na cama. O coitado devia estar cansado. Trabalhava tanto. Ela pegou no armário o vestido que ia usar. Trocou-se com a dificuldade de quem usa anáguas. Passou um batom e deu uma última espiada no espelho. Pegou a bolsa e saiu de casa em maior estilo real. Foi ao trabalho como quem vai à casa da primeira-dama tomar chá. E foi sonhando. Porque sempre acreditou em contos de fadas. E, sendo assim, eles se faziam reais.