sexta-feira, 7 de março de 2014

Despedir-se


Ontem as pessoas demonstravam uma felicidade escancarada nas mesas dos bares. As luzes das ruas se acendiam como se ilustrassem a chama viva que ardia em meu peito: o mundo é solidão. Não que eu seja pessimista, nem melancólico. É que nascemos sós, vivemos uma vida inteira a sós e morremos abraçado ao pó da terra. Sós. E a nossa alma, em suplício, cuida de atrair outras almas que amenizam esse sentimento terreno insaciável. Talvez assim o amor nos desperta: quando a conjugação das almas é algo tão intenso, inteiro, imerso, que vira uma só. E a solidão passa a ser entendida a dois.

Ontem a cachaça com duas rodelas de limão me fez companhia até os metrôs fecharem. E você me olhava meio atônita, como se quisesse me descobrir e palmilhar sobre os recônditos do meu espírito. Me fiz de apaixonado, me interessei pelos teus assuntos triviais, rocei na tua perna como se fosse algo sem querer. Minha mente transitava, meus instintos falhavam, minha boca não esboçava poesia. Eu só queria ser analisado, só queria que você me propusesse uma conversa em que eu falaria das minhas pequenas felicidades e das minhas grandes alegrias.

Eu não tenho muitas dúvidas. Certezas tampouco. Mas ontem eu andava muito seguro dos meus passos, muito certo de que o caminho é uma sensatez: nos leva aonde sabemos chegar. Você me segurou as mãos num gesto de afeição serena. Eu sorri e disse que, naquele momento, eu estava sendo genuinamente feliz. Você chorou e respondeu que essas coisas não são para serem ditas; que a felicidade deve ser um segredo muito bem escondido. Eu concordei e mandei o garçom trazer a conta.

Ontem eu carregava sentimentos profundos. Lembranças inefáveis e uma nostalgia inteira de uma cidade que vai se despedindo de mim. Meu Cristo à minha janela; a enseada que me acena duas montanhas de açúcar; a banca de jornal onde eu nunca comprei nenhuma notícia; a madrugada barulhenta; o domingo de sol; o amor pelo céu limpo e pelos olhares amistosos de quem me recebeu. Daqui uns anos, em minhas conversas futuras, minhas remissões serão tão vagas quanto aquelas da minha infância. Mas hoje eu carrego todas as cores da minha felicidade. Hoje eu sou capaz de apontar exatamente os trechos em que eu suspirei de amores. E foram todos. O amor transborda.


Minha lucidez oscila. Meu coração parece uma bomba relógio. Meu peito infla de um sentimento incabível, que não sei ser bom ou ruim. Suas palavras ontem me atemorizaram porque me levaram a uma sublimação que jamais provei. Fui escárnio de mim mesmo e me fiz consciente: felicidade não é estado, nem um atalho, nem nada físico. Felicidade é olhar para todas as perdas e ter a certeza: meu coração é um território de rimas. De imãs. Eu atraio o que me faz bem. E assim é possível deitar a cabeça no travesseiro, segurar tuas mãos e dormir. Em paz.