quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Em círculo


De todas as vezes que procurei, achei rastros. E, dos rastros, esperança. Da esperança, um suspiro. Do suspiro, fôlego. Do fôlego, coragem pequena. Da pequena, um avanço.


E do cambalear do pé-ante-pé, encontrei portas. Sorrisos também. Algumas trancadas, alguns sem dentes. (A vista de cima é sempre mais afável; pena não se ter força nas pernas para chegar à sacada).


E do avanço, uma insistente vontade de outra procura por outros rastros.


Mora dentro qualquer desejo latente de roubar a realidade com as mãos, fazê-la própria aos olhos. Desconhecedor do que seja próprio, só resta o crer; (joelhos que ardem e mãos postas em sinal de súplica).


O bater à porta. O caminhar cansado. As lágrimas que descem involuntárias. O peito em gritos. Sossego, onde mora?


Todas as vezes que procurei. Achei. As pistas são sutis. Mas são.


E os rastros. Esses reticentes.


...

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Filme legendado


Meus lábios estão mudos, é verdade. Você fala demais, gesticula demais. Não me irrito, mas também não presto atenção. Não entendo de livros nem de metáforas. Seus olhos dizem mais palavras do que sua boca, é estranho. Vou servir vinho pra nós dois. Esse vinho a gente já bebeu em outras épocas. Na casa do seu pai, lembra? Naquele almoço em que você me introduziu em sua família num ritual de sorrisos e abraços mórbidos. Eu avisei que não gostava dessas coisas. Nunca fui inaugural. Seus olhos andam castanhos, o que é isso? Você sempre me falou de tempestade dentro de olhos, maluquice pura, acho que o álcool não está te fazendo bem. Tempestade é esse barulho todo que impede você de me ouvir calado. Largasse seu falatório e suas angústias desvairadas, saberia que em mim mora um anseio de diálogo. Gosto quando trocamos poesias. O moço do palco está tocando Ana Carolina. “Eu quero ser uma tarde gris”. O que é gris mesmo? Não tem nada de escroto, deve ser uma palavra bonita. MPB tem lá seus chamativos. E eu sei que você gosta, sei que, quando chega em casa e sente saudade de mim, põe pra tocar Elis Regina no mp3. Foi ao som de qualquer música dela que eu deixei escapulir o primeiro eu te amo. Na hora eu fiquei bravo com sua reação, ou melhor, com sua falta de reação, sua falta de jeito, falta de... de. Tá, sei que você é travada, não consegue falar essas coisas profundas, você precisa de coragem. Eu estou sorrindo agora? Foi descuido, tava lembrando de uma piada. Não, a piada é indecorosa, não cabe agora. Sim, tô te escutando, você fala demais. Acho que a lavadeira exagerou no amaciante hoje, tá sentindo o cheiro daí? Passei perfume por cima, aquele que você me deu. Acho que qualquer perfume é fraco em mim, tenho índice de fixação baixo. Mas marca de amaciante eu não sei, não sou bom com nomes. Quer mais vinho? Aproveita que a música parou, respira um pouco. Deixa-me falar agora. Conheço suas verdades. Sei que esse falatório todo é necessidade de me ver por perto. Não tem nada de brega nisso, estou sendo romântico, você me ensinou assim. E eu não estou fumando, isso é vapor que sai da boca por causa do frio. Você que anda bebendo demais, larga essa taça. Bonita. Gosto quando você penteia seu cabelo em franja, sua jovialidade transpassa a pele. Deixa eu te examinar só mais um pouco, fica assim, pousada. Sinto, sinto nossas almas nuas. Despidas de intenções pré-direcionadas. Somos espontâneos, nossas brigas parecem piadas. Tem um nome pra isso. Afinidade, eu acho. Isso faz qualquer caminho longo ser percorrido em tempo rápido. As horas voam, as identidades vão se sobrepondo. Você pode me entregar o que quiser, menina, me dizer o que bem entender. Meus ouvidos estão um tanto surdos por causa dessa música alta. É, você tem razão, tem alguma coisa de escroto nessas letras. Sempre dizem de amor? Amor é um velho clichê. Ninguém se cansa disso? Impressionante. Que cigarro você está querendo? Eu não fumo; não escondi cigarro nenhum, você está delirando. Vem cá, deixa eu te selar um beijo. Puxa, caiu vinho no celular, agora ele só vai tocar a música do Titanic, aquela da hora em que todos morrem afogados. Eu sei, essa foi péssima. Quem nunca diz bobeira? Você diz coisas piores. Ah, diz sim! E como diz! Vamos pra casa, já são quatro horas. Vou pagar no cartão. Você quer ir pegando o carro? Tá, vamos juntos. A rua está vazia. Estranha essa sensação de frio na madrugada. Deixa eu subir aqui no meio-fio, será que tenho equilíbrio? Paralelepípedo é o nome disso? Minha língua não consegue falar, deve ser o sono. Ah, não fale em Almodóvar agora, tô louco pra ver um filme dele. Aposto que ele baseou qualquer filme em você. Por quê? Porque sempre desconfiei da sua insanidade. Ai, pára de me bater, você anda violenta demais. Vem cá, deixa eu te beijar inteira. Sente minha língua quente do vinho? Pelo menos assim eu te faço calar. Ei, cuidado com as escadas, você não está bem, está? Vou cobrir você essa noite, prometo. Deita aí, bonita. Sua mão é meu lugar de prazeres. Passeia ela no meu rosto, seu carinho não tem igual. E fica muda, me beija com os olhos, palavras só atrapalham agora. Meus olhos estão fechando sozinho, você está dizendo alguma coisa? Sua voz parece distante.


- Hoje eu me apaixonei de novo, menina. – é o que meus pensamentos não conseguem reproduzir em palavras porque o sono as derruba. Uma a uma.


quarta-feira, 19 de novembro de 2008

O último adeus à poesia


Fui navegante em tempos memoráveis. Carregava na vela do barco sua efígie, enquanto escrevia cartas que eram colocadas em garrafas e lançadas ao mar.


Era um gostar romântico, dramático, plagiava Camões e tinha lapsos Shakespearianos. Eu podia jurar que ouvia seu ruído vindo com o vento do mar. A neblina das manhãs desenhava à minha frente o seu entreabrir de lábios e a sua forma de ajeitar a franja atrás da orelha. Era o meu fôlego.


À noite, quando as estrelas vinham como correspondência sua, me trazendo notícias, eu virava trovador. E atirava ao céu algumas rimas que eu ia cantando em meio a lágrimas e soluços. Logo eu que nunca acreditei nessas coisas de amor intenso. Acreditava, dentro do meu equilíbrio, em sentimentos comedidos. Ingenuidade da minha parte achar que as emoções são tangíveis.


Durante as tempestades que tumultuavam meu navegar, me lembrava de suas promessas de amor inteiro. Meu sorriso se expandia pra dentro do peito e a chuva caía em ritmo sereno, como se fosse seus dedos em meus cabelos. Sua voz, quase tão audível quanto o barulho dos pingos no barco, me chamava para uma paz que não existia. Mas eu ia porque sempre fui teimoso.


E hoje eu lhe digo que não vivo como navegante. Que o amor deixou de ser uma alegoria e um drama. Que as palavras deixaram de ser pomposas para surtirem efeitos mais reais do que aquilo que se vê. Que meus passos retornaram para a terra segura onde enxergo não só suas virtudes, mas todos os seus defeitos que me apresentam seu lado negro. Que o gostar não nasce apenas de uma afinidade e de um rebuscar em palavras, mas da cumplicidade certa que mora no contato da pele. Que o namoro não são horas, mas apenas um segundo necessário para o entrelaçar de dedos.


Que garrafas lançadas ao mar nunca chegaram ao seu verdadeiro destino. Não passa de história de filme americano. Não passa de uma falsa esperança plantada em areia.


Confesso, a falta da poesia me fez realista demais.


sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Hoje não tem vez pra bossa


Você sempre disse que gostava de Natal. E que todas as luzinhas piscando pareciam estrelas. Qualquer árvore enfeitada te fazia chorar. Você, indiscutivelmente, sentimental. Fizemos neve de isopor pra simular o clima dos norte-americanos. “Como será um Natal frio?” - você me perguntou como uma criança curiosa.


Sua sala de estar, pronta para os convidados. Não há convidados. Essa noite somos só nos dois. Abriremos os presentes, você já sabe o que vou te dar. Tá ficando muito manjada essa brincadeira. Poderíamos fazer um amigo oculto ano que vem, o que acha? Só eu e você. Pelo menos vai ser mais divertido.


E essa música? Meu Deus, essa música, não! Pára com isso de querer fazer dessa noite um momento deprê. Hoje não tem vez pra bossa. Somos carnaval. Não percebe como você me joga confete com os olhos? E nosso jogo de máscaras, nossas marchinhas de amor. Eu quero é seu colo como descanso. Vem cá, vem, deixa os presentes para depois. Que o vinte e cinco de dezembro seja memorável! Daqui zilhões de anos, as pessoas lembrarão dessa nossa conversa nesse sofá. Eu, com a cabeça no seu colo. Você, com uma taça de vinho na mão, chorando feito boba.


Engraçado. Natal tinha que vir depois de Ano Novo. A gente comemorava a virada do ano e depois trocava os presentes, todo mundo vestido de Papai-noel. Se bem que Natal é depois do Ano Novo, depende do referencial. Lembra das aulas de física? Dona Jurema, quadris largos. Eu lembro dela me xingando de burro, te bajulando por ser a CDF da turma. Como você era chata! Vivia metida no seu arzinho intelectual. “As reações químicas ocorrem através de colisões entre os agregados atômicos...” - você monitorando turma de química. E ali eu enxerguei que você me dava mole. Dava mole, sim, não tem discussão. Não lembra aquela aula, quando você derrubou não sei o quê em mim e veio toda cheia de perdões, querendo me limpar? Eu sei dos seus truques.


Será que todo ano vai ser assim? Nós dois nesse apartamento. Eu no seu colo, você chorando e bebendo vinho enquanto conversamos sobre qualquer coisa só pra poder passar o tempo? O que se faz no Natal? Presente, oração, peru. Depois todo mundo dorme de barriga cheia e com um sorriso de orelha a orelha porque ganhou o celular que tira foto. É celular ou máquina? Pra que isso de juntar tudo numa coisa só? Imagina sair juntando uma coisa na outra, que bagunça seria. Se eu fosse um com você, eu não seria eu nem você só você; seríamos um, que buscaria outro ou outra; sei lá. Uma coisa nunca é duas. Entende o que eu falo? Às vezes eu me acho tão confuso.


Sim, eu gosto do Natal. Tem qualquer coisa de saudade nesse clima. Existe Papai-noel no plural? Papais-noéis? Fica estranho. Eu tinha medo do barbudo, confesso. Quando eu era pequeno, não gostava de ficar acordado pra ver o Papai-noel passar. Acho que eu era o único. E graças a Deus que eu nunca vi de perto esse velho; passo por um, no shopping, e minhas pernas já vão ficando bambas. Pior é você que tem medo de palhaço, coisa mais boba.


Cruza suas pernas, tem alguma coisa machucando minha cabeça. Meu bem? Ué, você tá dormindo? Mas nem deu meia-noite, nem partimos o peru. Os presentes estão embrulhados. Fala mais alto, parece que tá falando javanês. Eu não vou te levar pra cama. Nem pensar. Eu que não vou passar o Natal aqui sozinho, ouvindo essa música. Ah, pára, não ronca! Você roncando perde a beleza. Vou ficar aqui deitado nas suas pernas até você acordar. Quando você resolver abrir os olhos, comemoraremos o Natal.


Só me diz uma coisa: o que eu vou ganhar esse ano?


segunda-feira, 10 de novembro de 2008

A síndrome dos grilos noturnos


Depois de quase dez anos economizando todos os centavos, resolveram comprar o apartamento tão sonhado. Localização em bairro nobre, garagem pra dois carros, porteiro 24 horas, um luxo. Ela quis mudar as cores das paredes. Fez combinações, pendurou alguns quadros pela sala, comprou enfeites novos, mobiliou tudo de um jeito moderno, bonito. Sua casa, finalmente.


Uma semana depois, entretanto, quando o cheiro de coisa nova ainda passeava pelos ambientes da casa, o tormento se instalou. Numa noite, lá pelas altas madrugadas, um barulho. Cri, cri, cri. Ela tinha pavor de grilo. Imagina aquele bichinho nojento subindo com suas patinhas mais nojentas ainda por seu pescoço? Apertou o braço do marido que roncava ao lado. Esperou alguns minutos pra ver se o barulho continuava. Não veio mais. Mas não conseguiu dormir. E se ele estivesse no teto e, sem avisar, caísse na sua testa. Pior! Na sua boca? Começou a chorar.


- O que foi? – perguntou o marido pra lá de Bagdá.


- Tem um negocinho no quarto, amor. – ela disse, manhosa.


O marido nem deu bola, voltou a roncar. Dali a pouco, a mulher retornou com seu choro. O marido remexeu, fez que não ouviu. Ela aumentou o tom de voz.


- O que foi agora? – ele perguntou, brusco.


- Eu não consigo dormir com esse bicho no quarto. – ela reclamou em tom de lamúria.


Ele levantou, acendeu a luz, percorreu todo o quarto. Cada canto. Ali, atrás do guarda-roupa, olha direito! Revirou o colchão, as cobertas, o tapete. Atrás da cortina, amor, grilo sempre fica atrás de alguma coisa. Nada de achar o bicho. Inconformada, a mulher engoliu o choro e assumiu a derrota. Coisa da sua cabeça. O marido deitou, contrariado. Xingou meia dúzia de palavrões e roncou. Mas ela não pregou os olhos. Nem naquela noite, nem nunca mais.


- Por que tanta olheira, meu bem? – perguntava ele no dia seguinte, sem se lembrar do pavor da mulher com o grilo.


- Não consigo dormir. – respondia ela, seca.


Por fim, decidiu dormir no outro quarto. De nada adiantou. O cri, cri, cri a acompanhava, estivesse onde estivesse. Procurou psicólogo, psiquiatra, até benzedeira. Começou a cochilar em qualquer canto. Enquanto dirigia, na fila do banco, durante o banho, enquanto conversava ao telefone. Tinha o sono maior do mundo.


- Vamos nos mudar amanhã. – anunciou o marido, já angustiado com a situação da mulher.


Deixaram o apartamento e se mudaram. Ela dormiu aquela noite como um anjo. Aliás, dormiu três dias seguidos. Voltou a vida ao normal, teve paz. Começou, inclusive, a rir de tamanha bobeira. Medo de grilo! Coisa mais besta.


Passada uma semana, depois de fazer sua oração, deitou na cama e fechou os olhos. Nada melhor do que dormir. Ouviu um ruído diferente. Não era grilo dessa fez. Julgou ser uma cigarra. Ficou imaginando as asas da cigarra emaranhadas em seus cabelos e o estrebuchar do inseto, cuspindo coisas verdes por todo canto. O pânico voltou a assolá-la.


- Meu bem, – ela cutucou o marido. – acho que tem um negocinho aqui no quarto.


quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Canção

Escrito com Karine, a frôr


Quiria eu ter esse jeito bunito de falar de amô. Os pueta colocam umas rima bunita, umas palavra que mais parece ingrês. Eu num sei de muita coisa, frôr. Nem sô pueta. Sei de uma coisa ardida que nasce no estômo e vem subino que nem fogo pelo peito. Acontece quando ocê passa no seu vestidinho de chita verde, bonito que só. E eu vou procurando um jeito de colocá em palavras tudo isso meio doido que ‘contece ni mim. Mas fico mudim da silva, minha língua perde as força e eu só sei oiá ocê passando. Dispois, fico treinando no espelho, procurando as palavra bunita do dicionário pra poder falar pra ti. Mas aí me vem todo esse seu chêro e perco o prumo. Desando numa choradeira sem fim. É que eu sou chorão, sabe? Desdi pequeno. Vontade mesmo eu tenho de guardá ocê na minha mão, levá ocê pra todo canto. O pai tinha um amuleto que ele carregava no peito. Quiria fazê isso docê. Mas num sei, vivo angustiado sem sabê suas resposta. Ocê, toda timidazinha, nem me óia direito. Será que amo sozinho, frôr? Será que não tem nem um pedacinho dentro docê pra me caber?



Cê vem falando assim, de amô e das palavra, e eu qui tentando sabê porque meus óio não conseguem ficar nocê. É que cada veiz que eu tento, fico toda tonta e parece que o sol vem morá no meu rosto. Eu sô toda besta nesta coisa de amô, nunca vi o dos livro,não. Mas só de olhá procê já dá até uma vontade de fazê puesia, daquelas bem bunita. Sabe, cê nunca viu, mas eu gosto de ficá te espiando durmí na rede, parece inté que sô eu qui descanso de tão bem qui faz. E de noite, quando cê prosea com a viola, eu espio da cozinha prá depois dormi lembrando docê cantando e murrê de ciúme do céu. Nunca vi amô naum, mas parece qui ele viu ocê. Num sei do espaço do peito da gente, mas acho que tem um bocado docê ni'mim e fujo porque dá medo, sabe? Diz moço, cê canta só pro céu? Porque eu quiria essa canção.



A canção que eu toco pra lua eu peço pra fazê chegá aí na sua casa, frôr. E ‘té vejo ocê de fita no cabelo, debruçada na janela, ouvino meu desafinar. Tão bunito seus óio refletindo esse brilho de amô-guardado. Quando a mãe contava aquelas historinha de fadas, sempre imaginei a princesa assim, qui nem ocê. Desdi sempre eu já fui amando sua pose de rainha. E meu coração escapole por todos os cantos quando ocê pinta seu cabelo de frôr. Isso é amô? Num sô estudado, mas intendo bem dessas estripulias que ‘contecem no peito. E, qué sabê? O amô já se apresentou procê. Vejo no seu jeitim de colher as goiaba no pé, vejo no seu jeitim de sorrir pelos canto da boca, escuto nessa cançãozinha que nasce dos seus beiço. Ocê é bunita, sabe? Mas é uma buniteza de pele, de cílios. E é purisso que eu amo, frôr. Porque seu jeitim me pôs sentimento, me pôs assim, meio doido. Dá ‘qui sua mão, sente a minha suada, nervosa por causa docê? Não fica vermelha, frôr, se bem que cê fica mais linda assim, coradinha. O bom mesmo é sabê que a canção que nasceu ni mim, agora toca nocê. Mais bom é sabê que vamo cantá ela juntim, qui nem casal de novela. Qué vê? Vô te ensiná o tom.



Ocê canta tão bonito que eu me sinto passarinho cantando c'ocê, vôo qui'nem minina. Repara só no céu todinho ajuntado pra ouvi nóis canta o amô. Parece 'té qui escurece pra genti, e qui chama toda as estrela prá brilha nocê. E ocê segurando a minha mão assim tão forte, sinto um 'cadinho de aperto gostoso no peito, sabe? É de felicidade, parece 'té qui vai explodi. Me ensina o tom de todas as canção qui ocê canta qui eu vou me afinar nocê, devagarim, qui nem vento na frôr. Sabe, ocê é igualzim vento. É que enquanto ocê fica andando pelo campo e eu te vejo de longe, ou quando tá pertim, qui'nem agora, eu sinto ocê soprar ni mim e me espalho toda. E o coração fica florido, qui nem jardim. E ocê, chegando pertim assim, me chamando de frôr, mal sabe qui o perfume vem de ti. Te dô uma pétala de sorriso prá perfumá nossa canção. É que o amô ni mim floriu e cantou o teu nome, e eu me guardei qui nem botão só pra desabrochá nocê.




sábado, 1 de novembro de 2008

Medo de cachorro


Paulo era daqueles amigos que a gente sempre quer ter por perto nas horas de confusão. Mais de um metro e noventa, musculatura desenvolvida, só de olhar dava medo. Ninguém o enfrentava. No entanto, como todo bom valente, Paulo tinha seu ponto fraco. Morria de medo de cachorros. Ele tentava explicar, dizendo ser trauma de infância, mas não dava pra levar a sério quando ele atravessava a rua para fugir de um poodle.


Num desses dias, depois de algum tempo trabalhando como oficial de justiça, foi entregar uma intimação na casa da Dona Vilma. Dona Vilma morava numa casa aos fundos de um quintal grande onde plantava sua horta. E ela tinha um cachorro. Daqueles bem barulhentos que latia só pra pirraçar.


Paulo foi chegando, abriu o portão que sempre ficava aberto e entrou pelo quintal. Ele não sabia do cachorro. Procurava campainha ou um jeito de chamar lá no fundo, mas não viu outro jeito que não fosse caminhar até a casa.


Pra sua surpresa, saiu o Totó lá de dentro. Latia e avançava num espírito heróico que desbancou o pobre Paulo. O oficial de um metro e noventa viu-se encurralado e, mais do que depressa, pulou para cima da árvore mais próxima. Ficou lá enquanto o cachorro continuava em seu ruído infernal.


Dona Vilma apareceu. Veio arrastando os chinelinhos, chamando o Totó que queria saber só de fazer barulho. Chegou perto da árvore, carregou o cachorro no colo e olhou pra cima. Paulo tremia e mantinha os olhos fechados (assim que ele evitava sentir mais medo).


- Ei, seu moço! Pode descer. Ele não morde, só faz barulho. – contou a velhinha rindo da situação.


- A senhora tem certeza? – insistiu Paulo.


- Absoluta. Não tem nem dentes pra morder.


Mas Paulo não desceu. Dona Vilma teve que prender o Totó dentro da casa para, só então, poder receber a intimação. Quando ela voltou para perto da árvore, deu com Paulo estirado no chão, gritando de dor.


- O que foi, seu moço? – ela perguntou, preocupada.


Havia uma colméia na árvore. Uma das abelhas havia ferroado o oficial que agora gemia de dor.


- Jesus, Maria, José! – gritou a velhinha ao ver a colméia. – Vamos pra dentro de casa, eu tenho um remedinho pra você passar no machucado.


E lá se foi a velhinha ajudando o Paulo a caminhar até a casa. Abriu a porta e o Totó apareceu, pulando e latindo. O oficial tentou se esconder atrás da velhinha. Já até foi esquecendo a dor da ferroada. Mas não adiantou. O Totó cravou os dentes na canela do moço. E foi um tal de velhinha apavorada, oficial desmaiando, um pampeiro.


Depois, já sentado no sofá da sala, enquanto Dona Vilma fazia um curativo no machucado, Paulo resolveu confrontar a velhinha:


- A senhora disse que ele não mordia, Dona Vilma.


- Sempre tem uma primeira vez, seu moço. Sempre tem. - respondeu ela com a cara mais lavada do mundo.