“Das amizades” seria o nome do nosso livro. Lembra? Idéia de quando tínhamos quase vinte anos e você assumiu que um ombro amigo era um suporte raro. Amigo não se faz assim, como se planta arbustos. Amizade exige estudo, horas de conversa num silêncio contínuo de trinta ou mais minutos.
Quando pequenos, eu conhecia dois de você: o menino das disputas, da molecagem, do sorriso lambuzado de uma alegria inesgotável. E tinha o menino que nasceu na pobreza, que vendia os salgados da mãe, que estudava porque queria ser doutor. E, na sua pobreza, você me passava dessa alegria que eu não conhecia bem. Explicava que brincadeira boa era aquela que se brincava imaginando. Passávamos tardes inventando reinados, batalhas, piratas malvados, princesas lindíssimas. Depois, cansados, íamos pra minha casa onde você tomava um lanche e pedia outro com os olhos. Sua fome sempre foi mais aguda. Fome de alma.
Na escola, você apaixonado pela Iara, a princesa dos nossos castelos. Sentávamos sempre na carteira atrás da dela porque você queria a miragem. Queria fixar bem o perfume dela pra ir dormir com o cheiro. Nas aulas de matemática, você a examinava buscando qualquer defeito que não encontrava. Depois vinha choroso pra mim, dizendo que ela nunca gostaria de um “bolsista”.
Mas seu vício era a vida, eram os sonhos. Projetava-se sobre os livros, varava noites, lia dicionário, falava bonito. A mãe morria de orgulho. “Vai ser dotô!”, ela contava com um sorriso de um palmo e dois dentes faltando. Fosse ela viva, se orgulharia ainda mais do menino que cresceu sem perder os valores que ela ensinava. Engraçado. Mãe não precisa de estudo pra ensinar. É com os olhos mesmo.
Nosso livro é isso aí. Entre cada uma dessas linhas ainda cabe um zilhão de histórias. Eu gosto de história mal-contada, de sentimento que a gente não põe fim, mas permite ir acontecendo. Da nossa amizade, eu guardo recordações boas. Sei do menino que queria ser doutor, que, no dia em que eu perguntei se não lhe faltaria fôlego pra ser quem queria, me disse assim:
- Eu nunca tive asas. Mas sempre me arrisquei nos vôos.
Voou tão alto que já perdi de vista. Talvez seja este o segredo: não há segredo. Há uma fagulha. Depois disso a gente não se responsabiliza mais, foge do controle. Vira fogaréu.