Acordou com o coração aos pulos. Um pesadelo. Calma. Apenas um sonho ridículo. Como a mente pode ter tamanha criatividade? Ele, no altar com uma carne de terceira. Sim, um pedaço de carne com pernas, braços, boca, etc. Nisso que dava as conversas com os amigos, aquela insistência em tratar mulheres como um prato pronto a ser devorado.
Entrou debaixo do chuveiro e riu. Riu do sonho, das ironias, da vontade de ligar pra alguém e contar que casar lhe trazia repulsa. E só tinha descoberto isso agora, depois de três anos de noivado. Melhor ficar calado. Se essa história vaza, vai parecer que ficou enrolando a moça. Aliás, já estava parecendo. E isso não era bom.
Trocou de roupa e foi à padaria. Havia uma na esquina, mas, há dois anos, ele ia à padaria do Nestor que ficava a três quadras de sua casa. Não que o pão lá fosse mais gostoso. Era pior, inclusive. É que sempre tivera a esperança de encontrar a mesma menina que, dois anos atrás, encontrou na fila do pão. Deixou-a passar em sua frente por cortesia. Ou interesse, que fosse. O fato é que a moça sorriu agradecida. Riu lindamente e ele guardou aquele sorriso como um sinal. Pensou em pedir o telefone, propor um cinema. Depois olhou pra aliança no dedo. Noivo não faz essas coisas.
O pão tinha acabado. Comprou um chiclete. No caixa, Nestor olhava uma revista de mulheres nuas e deixava escapar sorrisos sacanas. “Essa é das boas, meu amigo. Comprei baratinho ali na banca!”. “Obrigado, Seu Nestor.” – nem pegou troco nem nada. Tinha raiva de velho tarado. Na saída, trombou com uma menina. Ou menino, não sabia. Sempre encontrava aquele ser andrógino na padaria e a cada dia chegava a uma conclusão diferente sobre seu sexo. Tinha trejeito de tudo. Resolveu que não esquentaria mais a cabeça com aquilo. Perguntaria o sexo num dia de extrema coragem, quando ele recebesse a notícia de sua própria morte. Não se pode morrer com uma dúvida dessas. Não mesmo.
A Deise passou de carro e buzinou. Deise bonita, aquela. Estagiaram durante um ano em um escritório de contabilidade. Ela dava mole. Mas era sutil. Daquelas que a gente nunca sabe se quer mesmo ou se faz hora só porque é bonita. O fato é que ela ia tomar cafezinho a cada trinta minutos na sala dele e sempre perguntava se iria à festa tal. Ele nunca arriscou. Já namorava na época. Quando Deise soube do namoro, ele percebeu uma pontada de decepção no rosto da moça. Contou pros amigos. Eles faziam chacota. “Deise, aquele mulherão te dando bola? Se enxerga, rapaz. Muita areia.” – os amigos tinham desses prazeres em detonar a auto-estima um do outro. Mas que Deise dava mole, ah, isso ela dava.
Passou na banca. Lá estava a revista do Seu Nestor. Um e noventa e nove. Grande porcaria. Comprou um jornal. “Tô a fim de ler umas notícias tristes hoje.” – contou pro jornaleiro bigodudo que sorriu de simpatia. Viu uma revista de culinária aos fundos. Na capa, um peru de Natal. Achou graça. Estavam longe de dezembro. Lembrou do sonho e contou pro jornaleiro. “Sonhar com carne é sinal de mau agouro.” – revelou o bigodudo que acreditava nessas bobagens todas que vinham em revista feminina. “Sai de mim, Seu Jânio. Tô com superlotação de azar.” – pegou o jornal, a revista de culinária e voltou pra casa.
Abriu a porta do apartamento e ouviu vozes vindas do quarto. Palmilhou até o cômodo e, no caminho, se apoderou de uma tesoura que estava jogada sobre a mesa. A porta estava só encostada. “...cinco mortos no acidente com o ônibus da viação Ursa Maior...”. Respirou aliviado. Era a TV ligada. Desligou e concluiu que andava muito à flor da pele naqueles últimos dias. Precisava de uma massagem. Como era mesmo o nome daquela moça que atendia em casa? Madalena, Morgana, algo assim. Devia ter no catálogo.
O telefone tocou. Era a noiva. Combinaram o almoço. “O que você quer que eu prepare?” – ela perguntou atenciosa. Ele pensou. “Engraçado, mas hoje eu tô com um desejo estranho de comer carne de pescoço.” – disse, por fim. Ela fez silêncio do outro lado, achou que fosse piada. Piada ou não, sonhos sempre tiveram influência na sua vida.