sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Ela é carioca



Eu a tinha visto de longe, quando um raio de sol pousou na curva do seu corpo, dourando a barriga exposta aos ares de uma praia semi-deserta. Não era nenhuma deusa. Mas tinha seu ar inequívoco de outro mundo. Rodei as vistas para ver se encontrava algum sinal do seu zepelim.

Ela veio ao meu encontro. Os cabelos ondulados iam se movendo à medida que ela requebrava a cintura fina enfeitada por um biquininho azul. A imagem dela mergulhando nas ondas geladas e saindo com o corpo arrepiado e o biquíni grudado nas entranhas do corpo me trouxe um frisson que há muito não sentia. Desejo de pele.

Ela sorriu. Um sorriso simpático, de quem está pronta para uma amizade. Sua boca parecia entumecida e ruborizou quando eu a encarei. Vi os lábios ficando vermelhinhos, num estranho convite para um beijo vulcânico na areia, no mar, em qualquer lugar proibido.

- Oiem! – ela disse, no seu sotaque tipicamente carioca.

 - Oi. – respondi, esbanjando meu melhor charme. – Está procurando alguém?

- Sim, procurando por tuam. – ela respondeu e depois riu. Já fui querendo segurá-la pela cintura e apertá-la contra o meu corpo para depois... – Na verdadeam estou procurandoam alguém que possa me ajudar. Tu pode?

Posso tudo o que você quiser. Pensei. Quis dizer, mas preferi dar uma resposta razoável:

- Claro. Do que você precisa?

- Eu preciso dar um telefonema. É coisa rápidam.

- Ok. Pode usar. – e entreguei a ela meu iphone que eu sempre carregava para a praia para ouvir música enquanto a íris se distraía com os movimentos do mar.

Ela se afastou alguns metros e falou por menos de dois minutos. Depois voltou, com um sorriso de agradecimento no rosto.

- Obrigadam, nem. Tu é um fofo. – e ela me lascou um beijo feroz no céu da boca. Visitou todos os meus pontos adormecidos, brincou de apalpar cada dente e ainda me mordiscou os lábios. Chorei.

Ela se afastou e foi embora, deixando um pântano de ternura ao meu redor. Queria tanto ser dono daquele colo. Fiquei estarrecido, sem conseguir me mover, enquanto ela caminhava pela areia, insinuando aquelas curvas indecentes. Já fui acreditando que eu a amava.

Quando ela sumiu de vista, sentei na areia para assistir um pouco do espetáculo apresentado pelo mar. O ir e vir das ondas pacifica qualquer semana difícil, constatação evidente. Faltava a música para sonorizar a vista. Foi quando me dei conta que a moça havia levado o celular. Meu sorriso veio naturalmente. Só consegui pensar que valeu cada centavo pago. Como diria um velho amigo: sim, a carência tem seu preço.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Soraya


Era noite de concerto e o salão nobre estava repleto de admiradores de Chopin. O pianista dedilhava o piano como quem faz uma massagem em uma flor. De longe, eu via Soraya que se mantinha boquiaberta, olhando estatelada pro moço que incorporava as notas, os sons, os ritmos e transmitia a música a quem quisesse senti-la.

Soraya, que há dois meses atrás odiava música clássica. Que se perdia nas mesas de bares, buscando um carinho entre as pernas. Moça dos palavrões, da saia justa provocante, dos cabelos em cachos volumosos que, vez ou outra, faziam volta em seu indicador. Conheci-a na minha sala de estar, quando cheguei em casa de madrugada, com a certeza de que a encontraria vazia. Soraya estava nua, tocando meu piano como quem esfrangalha uma galinha.

Como ela não olhou para mim, pigarreei uma. Duas. Três vezes. Ela parou o som arrítmico que produzia, crente de que aquilo era mesmo arte.

- Oi. – eu disse em tom de desaprovação.

- Oh! – ela exclamou, tirando os dedos do teclado, nem se lembrando da sua nudez. – Eu estava apenas brincando, sabe? Gosto do som disso, das coisinhas pretas e brancas. Tem um som bacana. Será que um dia eu aprendo a tocar? Você toca?

- Quem é você?

- Oh! – ela exclamou de novo, como quem se desculpa por uma falta. – Eu sou namorada do Sérgio. Prazer. Estou nua porque não sabia que teria mais alguém na casa, espero que não se importe. Quanto ao piano, me perdoa.

- Onde está o Sérgio?

- Está dormindo. Esperei ele dormir para poder vir tocar. Quer dizer, eu não toco, sabe? Mas eu gostaria muito. Muito mesmo. Você toca?

- Esse piano era do nosso pai, ninguém toca aqui em casa. Olha, eu preciso dormir, me dê licença.

- Sérgio disse que você toca. Tão linda essas coisinhas pretas e brancas, não acha? Parece um monte de zebrinha.

- Se chamam teclas. E zebra não é uma comparação das melhores. Presumo que você esteja bêbada e que não seja namorada do Sérgio.

- Tá, nós nos conhecemos hoje. Mas eu gostei muito dele, viu? Muito mesmo. Será que eu posso voltar outras vezes pra poder tocar as zebrinhas? Eu amei tanto isso: o som, sabe?

- O piano foi vendido. Virão buscá-lo amanhã. – eu menti, imaginando aquela mulher nua na minha casa, toda noite, batucando meu piano.

- Oh! – era mesmo a moça das exclamações. Estava visivelmente chateada. – É muito caro? Eu poderia pagar?

- Mutíssimo caro.

- Mais de um milhão?

- Mais de dois.

- (...) – ela disse um palavrão.

- Eu vou deitar, se me permite. – avisei.

- Você conhece alguém que toca? Eu amaria escutar alguém tocar. Eu acho que sou tão boba, às vezes. – ela riu. E eu achei ela muito boba, todas as vezes. – Imagina só, gostar de piano, devo ser muito boba mesmo.

- Você nunca escutou ninguém tocar piano? – arrisquei.

- Oh! Claro que não. Nunca, nunquinha. Eu juro. Mas eu acho que deve ser uma coisa absurdamente bonita.

- É sim. – tive que concordar.

- Você não me disse se conhece alguém que toca. Acho que estou viciada, se é que me entende.

- Entendo sim. Vai haver um concerto daqui a dois meses. Deixa seu telefone, te separo um convite.

Ela bateu as mãos e os pés em ritmo frenético, ficou entusiasmada com a ideia.

- Você é mesmo um amorzinho. – me abraçou e estalou um beijo na minha bochecha. – Brigada, tá? Brigadíssima.

- Ok, tudo bem. – disse e fui dormir. Mulher louca. Parecia desenho do Sérgio, criação de uma mente perturbada.

Lá do quarto, continuei ouvindo ela insistir nas zebrinhas. O som era mesmo de dar desgosto. Mas era uma entusiasta e eu não tiraria o prazer dela.

Fato é que Soraya, em seu desequilíbrio patente, escutava Chopin sem respirar, sem tirar os olhos do pianista que se apresentava. Tive medo de que ela pulasse no palco e beijasse o artista, assim como me beijou na noite em que nos conhecemos. Mas ela não fez assim.

Ao final do concerto, quando eu tentava sair sem que ela me notasse, escutei meu nome sendo gritado a alguns metros atrás. Era ela. Foi se desvencilhando das pessoas, os olhos eram cegos de tanta música. Ela estava em transe.

- Eu amei, cara. Eu amei essa coisa toda. – e me beijou, agradecida.

Antes de ir embora, ela segurou forte as minhas mãos. Percebi que tinha as unhas pintadas de branco e preto. Ri como quem acha graça de uma piada. De uma forma ou outra, ela carregava as teclas nos dedos. Não sabia tocar, mas queria. As coisinhas, como ela mesma disse. Ou zebrinhas, pra quem preferir.

Repostagem: março/2010

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Febre


Sabe, agora são 4:18h da manhã e eu acordei com uma febre nos olhos, um estranho desejo de fechá-los fortemente e só abri-los dentro de você. Acho que isso de sentir é uma droga mesmo. O que fazer quando se sente, senão sentar de frente à janela, com uma xícara de café nas mãos e observar tudo com uma certeza quase absurda de que você vai aparecer dali a dois ou três minutos?

Eu não sei o que fazer com isso que você plantou. Não sei. Se você aceitasse de volta, me prometendo nunca mais plantar coisas bonitas, eu devolveria. A contragosto, mas devolveria. Meu desejo maior, porém, é que você esteja do meu lado. E cada vez mais perto, me trazendo essa felicidade que eu só tenho quando você vem me contar do seu dia, das suas aventuras, dos livros que leu e das músicas que ouve. Percebe que a minha mão fica dormente enquanto escoro o queixo pra te ouvir com atenção?

Outro dia nós falávamos sobre a falta. Sobre os minutos que vão passando no relógio e a ausência que vai fincando no peito como a dor de uma esperança que se frustra. É que eu sempre esperei você chegar com sua bolsa de poesias e seu caderno de piadas pra gente se ocupar ao longo da madrugada. Foram meses de uma vontade incontida de resgatar cada parte minha, em você. De encontrar em mim muita coisa sua também.

Eu tenho uma timidez que se agiganta toda vez que penso em nós. São tantas coisas, não é? Tantas coisinhas que, se juntarmos, pareceria um mar profundo e temeroso. Melhor não. Melhor sim. Antes um mar do que um rio raso. Mas, me diga. Somos assim, tão próximos a ponto de sentirmos em comum? De queremos em comum? De optarmos, um dia, em amar infinitamente, sob o sol insano dos românticos? Podemos, eu penso. Podemos tudo.

Deixar escapar todos esses sonhos não deve ser o mais sensato. Por isso, agora, deixo meus dedos escorregarem para a sua mão. Faço um afago leve, enquanto você sorri da minha falta de jeito. Pergunto se o amor existe e se ele cabe em algum lugar. Você me olha atônita, imaginando que eu tenha uma resposta. E ficamos, juntos, encarando qualquer coisa como um pôr-do-sol emoldurado e riscando o rosto um do outro com sorrisos dementes.

Sei que ainda é breve. Que não deve ser tomada qualquer decisão, por ora. Que não há lugar ainda pra esse nosso agora. No entanto, guardo comigo o dia em que você disse “vou quando você quiser”. Eu quero, quando você estiver pronta, sem amarras. Daí eu vou te amarrar de novo e te encher de ternura. Até o amor doer. 

Maio, 2011.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Que seja


O que eu busco nesse teu jeito, menina, é qualquer resquício pra eu poder voltar a acreditar no amor. Isso porque minha alma, doente, precisa de alguns carinhos. Preciso, na verdade, que sua mão se apoie na minha quando estivermos sentados na areia da praia. Que você ajeite o meu cabelo bagunçado quando o vento do Arpoador soprar em nosso sentido. Que você queira tomar o meu sorvete, tomando junto a minha atenção. Eu preciso que você seja minha companhia, menina. Que eu encontre nos seus ares cumplicidade e, nos seus lábios, conselhos certos. Que você me chame de meu bem ao me pedir ajuda com o protetor solar. Fácil mesmo é saber que já gosto de você. De um jeito tranquilo, que me inquieta quando estou desavisado. De um jeito racional e ponderado que meu coração, descompassado, se assusta. De tudo, fica a certeza: com você tudo vai bem.

Preciso que você me tire do tédio, no meio de uma noite preguiçosa e me leve pra um boteco na Lapa. Que ache graça das minhas piadas triviais e que me provoque com um sutil toque de pernas, por debaixo da mesa. Que alimente minhas esperanças ao suspirar um ai ai depois que eu propuser casamento. Que me diga sobre viagens que faremos juntos e descubra, pelo meu sorriso, como minha vida era monótona antes de você. Que me roube em uma tarde ensolarada para um passeio fugaz na Quinta da Boa Vista. E que ali, sentada nas gramas imperiais, me convide para um cafuné em seu colo. Parece que eu não conseguiria te evitar, menina.

O que eu busco, na verdade, é que você me deixe participar. Que me envolva em qualquer conversa. Que me deixe cuidar e oferecer abraço. Que chore no meu ombro, enquanto eu escuto seu desabafo. Que me peça para desligar a TV e me leve para andar de bicicleta em Copacabana. Que diga que gosta de me ver de bermuda e havaianas, porque isso me deixa menos blasé. Que goste de me ouvir cantando e que me perturbe com beijos no ouvido. Que se enrosque no meu abraço, quando um vento gelado nos importunar. É amizade que eu quero, menina. Porque o gostar vem disso tudo. Vem da cumplicidade fácil e do sorriso bambo. Porque o amor, menina, ah, o amor é uma diversão.  

quarta-feira, 28 de março de 2012

Sorrio


Vendo essas aguinhas silenciosas escorrendo pelos seus olhos perturbados, confesso pra mim mesmo que a felicidade é isso. É a gente encontrar no outro alguma coisa que nos desperta sentimentalmente. O querer perto parece algo tão óbvio que o mero especular de uma distância provoca desabrigo. Assim é com seus olhos que misturam todo esse amor e essa saudade latente, toda essa coragem de dizer que o choro não é fragilidade. Choro é sentimento desaguando, por não caber apertado no peito. E eu não consigo disfarçar um sorriso. Não é frieza minha, nem pouco caso. É que fui despertado. Provoco um abraço e você vira mar. Eu, rio. Só rio.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Trivialidades


- Por que eu?

- Porque sim. Porque sempre que a gente se despedia, eu voltava pra casa com a sensação de que deveria ter prolongado o abraço. Porque seus bilhetinhos vinham sempre acompanhados do cheiro do creme que você usa para as mãos. E quando você coloca os cabelos atrás da orelha, você pisca os olhos três vezes, quase sem querer. Porque quando fomos tomar aquele sorvete juntos, no meu aniversário, eu me toquei que eu poderia conversar com você pro resto da vida. Bastaria um banquinho e um copo de água, pra quando a boca secasse. Também porque quando você sorri, é como se sua boca brincasse de liga-ponto com essas duas marquinhas nas suas bochechas. É porque eu te conheço desde sempre. E conheço bem mais que a mim.

- Não. Não é isso. Por que eu não consigo usar essa batedeira? Vê se eu liguei certo na tomada, vê?!

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Memórias de minhas damas tristes

Hoje, se eu pudesse dizer alguma coisa a elas, eu diria. Porque o amor não dá certo sempre, a gente sabe. E, muitas vezes, descobre-se que nem era amor coisa nenhuma. Era paixão, outras vezes carne, outras vezes só vontade, outras ainda, ilusão. Algumas passaram em minha vida feito um feixe de luz, tão rápidas. Outras foram ficando, devagarinho, pegando o melhor lugar da sala. Mas eu diria uma porção de coisas, se pudesse. Só se eu pudesse.

Diria a Ana que ela foi meu primeiro amor beijado. Tive outro primeiro amor, mas era adolescente demais e tímido demais. Com Ana foi o beijo. O primeiro de todos, debaixo de uma árvore e ao som de sei lá qual música. Foi bonito e romântico, tirando a parte que, depois do beijo, me comportei feito um imbecil e danei tudo. Podia ter sido namoro, romance, casamento. Mas eu danei tudo com minha insegurança e com aquela falsa ideia de que beijo era pecado. Pecado era gostar demais e não poder estar perto, foi o que descobri depois. Eu gostava dela. Só que não daria certo, por muitos motivos. Éramos dois corações batendo no mesmo ritmo. Importante é sempre ter um descompassado, pra dar ao outro uma emoção desconhecida. É assim que as coisas ficam completas, penso.

Diria a Bia que ela foi a primeira vadia da minha vida. Linda de morrer, mas totalmente perigosa. Iludia, dizia que gostava, fazia carinho. Depois ia se entrelaçar nos braços de outro. De outros, nem sei mais. Fazia-se de vítima, dizia que era frágil, essas coisas. E eu a recebia, bobo que era. O bom foi que não me envolvi demais. Gostava, mas gostava pouco. Não foi o suficiente para sofrer. Nem foi amor. Foi uma coisa insana, tensa, perigosa. Afastei porque foi melhor. Nos encontramos depois, ela me queria. Eu fiz de difícil e me arrependi. Eu diria a ela que se comportou como a mais perfeita vadia. E mais nada.

Rita foi aquela amizade que virou admiração, depois atração, depois beijo. Eu falei em namoro, ela não quis. E depois fui concordar com ela. Éramos opostos. Eu, naquele meu convencionalismo retilíneo e ela no feminismo tresloucado, quase bêbado. Ela, naquela pose de riponga liberalista, falava de comunismo e andava com camisas com o rosto de Che Guevara. Foi essa energia toda que me puxou pra dentro dela. E toda aquela inteligência misturada a uma candura quase imperceptível e uma sensibilidade que me tocava de longe. Diria a Rita que foi ela quem me provou que é possível sim, ter uma amizade depois de um beijo. Porque conseguimos.

Maria foi o meu amor mais duradouro. Foi uma escolha. Aprendi a amar. Se eu era convencional, ela era dez vezes mais. Emburrava com pensamentos que considerava radicais e propunha um mundo regado de pessoas que fossem como ela. Chatas. Maria seria linda, se não me amarrasse. Se me deixasse leve, eu iria junto dela, sem querer contrariar. Fui querendo ela distante, apesar de ter me dado os melhores beijos, os melhores abraços e os melhores carinhos. Estive muito nela e ela muito em mim. Falamos em casamento (que loucura!) e tivemos um namoro inseguro. Ela insegura. Eu inseguro. Foi meu primeiro sofrimento por amor terminado. A recuperação foi difícil e eu soube, enfim, o que era curtir uma “fossa”. Por causa desse amor que precisava morrer, me tornei o garoto mais estudioso na turma. Diria a ela obrigado, porque, por causa dela, consegui galgar bons caminhos profissionais.

Por último, teve Nádia. Outra vadia, daquelas venenosas. Me aprisionou numa conversinha mole e num charminho barato. Provocou-me até que eu cedesse e ficasse à mercê dos caprichos dela. Fui alvo. Vítima. Eu sabia que ela era completamente errada pra mim, mas fui. Porque precisava, porque queria uns carinhos vagabundos. Porque achava que a gente não poderia desperdiçar as chances assim, sem saber por que. Me lasquei e me arrependi. Dei tchau e sumi. Pra sempre, amém. Diria a Nádia que ela merece um troféu de melhor atriz da nação brasileira. Não me convenceu, mas a encenação foi boa. Muito boa.

Essas damas que compuseram o que hoje sou e tenho criaram um misto de querer-bem e ressentimentos. São as chagas dos relacionamentos, dos seus embaraços e dos seus fins. Mas me resta a certeza de que assim sou porque as tive em alguma parte da minha história. E, em razão delas, desenhei um futuro que pretende ser igual naquilo que foi bom e distante daquilo que não valeu. Resta, ao fim, esse meu coração insistente em amar. Além da certeza quase cega de que o amor tem chance e vez. O amor, essa coisa que ninguém sabe de onde vem, sempre haverá enquanto a esperança insistir. E existir.


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Rute


Algumas vezes, Rute me chamava para conversar. Era uma conversa de sinais, de olhos, bocas, sobrancelhas, pálpebras. O corpo de Rute falava, enquanto me levava para algum lugar muito perto do sol. Naquela época, eu não sabia o que era o amor entre homem-mulher, por isso eu a amava como mãe, como alma. Aquelas mãos que amoleciam meus cabelos e me ofereciam bolo de fubá; aquela voz que enfeitava as histórias mais encantadas e me chamava de meu querido; aqueles pés sempre limpos que pedalavam a parte de baixo do piano: música que eternizava. Quando a gente cresce, as pessoas ficam desinteressantes. Caem da moldura e se mostram covardes para serem lindas. Eu, criança, conheci a sinceridade de Rute. Hoje, ela, envergonhada da minha barba e da minha voz grossa, caminha apressada na rua e me manda um tímido aceno. Ah, que saudade de Rute.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O caso do João

Da série: quem vê cara não vê coração.


Durante a minha graduação em Direito, fiz um estágio de conciliação no Tribunal de Justiça. Antes de chamar as partes de um determinado processo para compor a mesa, notei, pela lista que tinha em mãos, que os advogados e seus clientes eram todos homens. Gritei os nomes da lista no corredor e três homens e uma mulher entraram na minha sala. Acreditei que a mulher fosse alguma acompanhante ou mesmo estagiária de um dos advogados. Sendo assim, como era de praxe, aguardei alguns minutos para que o quarto nome da lista aparecesse. Assistindo a ansiedade dos que já estavam na mesa, salientei que era preciso aguardar o João. Depois de alguns risos dos advogados, a mulher voltou-se para mim e disse em grossa voz:

- Eu sou o João.


terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Sessenta e sete vezes


O telefone tocou sessenta e sete vezes. Mas o barulho me acompanhou ao longo de todo o dia. Atrás do telefone, a alguns quilômetros daqui, eu imaginava você, frenética, apertando o recall com o indicador direito; o indicador esquerdo na boca, sendo mordiscado. Eu não pude te atender. Não poderia. Você me fez vulnerável demais na noite anterior, enquanto preenchíamos aquelas taças de vinho com lembranças de um passado recente. Eu te amei em todos os toques do telefone; sessenta e sete vezes te amei. Meu coração estremecia ao pensar em você, frágil, querendo fazer de mim cachecol no pescoço. Senti-me inútil ao tentar fazer as pazes com a solidão. O amor não deixa a gente só, porque existe sempre a sombra da outra pessoa que nos acompanha. Não se assuste. Eu falo de amor, mas o que sinto não merece esse nome. Não merece nome algum. O que me preenche não é sentimento, saiba. É você, inteirinha.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Cego


Essa sensação estranha de ter vivido algo que nunca vivi. Essa mania de palpitar na vida alheia, sugerindo algo que eu não faria, que eu não seria ou não gostaria de ser. Sentimentos confusos de quem parece já ter ido ao futuro e voltado com um milhão de problemas. Essa vontade de problematizar todos os caminhos, todas as chances, de deixar toda porta entreaberta, caso queira voltar depois. Deixar tudo reticente, inacabado. Não brigar, por conveniência. Não amar, por medo. Não cair, pela consequência da queda. Não arriscar, por apego ao certo. Não viver profundamente, intensamente, milimetricamente. Esperdiçando as emoções, os tempos, as fases, as estações. Essa mania de ser humano demais, estável demais, de ter que dar conta, de não desabar. Ser e ter. Comprar e dar valor. Respeitar sem limites, sem até mesmo auto-respeitar-me. Essa sensação de tudo ser muito escuro. E de eu ter que ser o cego que tateia. Em busca de estrelas distraídas.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Ritmo Desnorteado


- É porque você acorda todo dia às sete da manhã e me arranca os lençóis sem aquela suavidade que se precisa para não levar um susto, me bota doida pra arrumar seu café, repetindo mil quatrocentos e cinquenta e quatro vezes que está atrasado e que a água do chuveiro anda gelada demais, que eu preciso ir ao salão fazer as unhas, mas você esquece que eu trabalho para uma empresa capitalista que suga todos os meus horários possíveis e me paga a hora extra que garante nossa viagem de fim de ano. Lá do corredor, você vem falando em voz alta que nosso jantar do sábado será cancelado porque você marcou a peteca com os colegas de trabalho e eu deixo seu pão queimar na torradeira porque odeio quando você desmarca as coisas em cima da hora, mas você não me deixa falar das minhas bravezas e já vai contando dos sonhos esquisitos que teve durante a noite, emendando a pergunta frequente: se o ronco tem diminuído. Respondo que não, que você nunca parou de roncar e que, para piorar, você vem adquirindo uma nova mania noturna: empurrar os pés gelados pra cima de mim, me fazendo acordar com o coração aos pulos acreditando piamente estar sendo arrastada por uma avalanche e, depois, caindo dentro de um cubo gigante de gelo. Você come seu pão em silêncio e diz que o almoço vai ser corrido, as crianças precisam estar prontas para que não haja atraso algum, frisa novamente que minhas unhas estão feias e que meu cabelo até que anda legal. Odeio seu sarcasmo matinal e sua insistência em querer me ver linda e bronzeada em cinco minutos, esquecendo dos meus caprichos e da minha demora na maquiagem. Eu o chamo de insensível e você derrama a xícara de café, sempre derrama. Algumas gotas caem na sua camisa branca e você vai trocá-la, esbravejando. Então você segue pelos corredores com pés pesados de quem dança um samba doido e aparece de novo ajeitando a gravata que não combina em nada com a nova camisa. Eu lhe digo e você me pede pra escolher uma melhor. Eu escolho e você xinga, dizendo que eu só gosto daquela, o que é mentira porque todas as suas camisas foi eu que comprei, mas você gosta de me provocar dizendo que algumas foram sua mãe e eu repito: ela não teria tanto bom gosto. Você se troca com cara de quem quer ir trabalhar é com a camisa manchada de café mesmo, que se dane a estética e eu o atraso, sussurrando que você fica ainda mais bonito com a listrada de marrom. Sorrimos juntos e eu o acompanho até a garagem onde nos despedimos num beijo apressado e numa troca de carinhos suados que se misturam com a saudade que já vai apontando no peito. Eu aceno, como todas as vezes, e espero o portão se fechar entre nós dois. Retorno pra cozinha e ponho sua camisa suja na máquina, lavo as louças do café, ligo pro restaurante cancelando a reserva do final de semana, marco horário no salão pra fazer as unhas e penteio os cabelos. Acordo as crianças e peço pra elas ficarem prontas ao meio-dia, me arrumo e saio pro trabalho. Por dentro, estou agitada. Ninguém como você pra me deixar assim. Pronto, acabei. Vai dizer alguma coisa?


- Casa comigo de novo?

[Julho de 2009]