quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Despertador


Não sei se me desperto

Ou se desperto a dor.


Eu queria falar apenas desses dois versos, mas hoje, lendo Rubem Alves, refleti muito sobre uma história que o autor relatou. Ela é assim:

“A esposa – ela amava tanto o marido! – fazia-lhe diariamente um mingau de fubá, alimento forte para manter as forças. Assim foi por toda a vida, numa fidelidade comovente, sem falhar um dia sequer: toda manhã lá estava diante do marido o prato de mingau de fubá que ele comia até o fim. Até que o inesperado aconteceu. Já bem velha, ficou doente, não conseguiu se levantar da cama. O que seria do seu pobre marido sem o mingau de fubá? Desolada, chamou-o para explicar que, infelizmente, naquele dia, ela não poderia fazer o mingau de fubá. O rosto dele se abriu num vasto sorriso. ‘Não se preocupe, não, meu bem. Pra dizer a verdade, eu nem gosto mesmo de mingau de fubá...’”

Fiquei pensando sobre os relacionamentos humanos. Pra ser amante de alguém, temos que ceder várias coisas e aceitar muitas outras. Para ser amigo, temos que tolerar muitos defeitos e reações inesperadas. Para sermos filhos, temos de ouvir sermões e levar broncas. Então me perguntei: pra quem tenho oferecido mingau de fubá todos os dias? Será que, ao invés de oferecer o mingau, eu não seria capaz de dar outro prato que a pessoa goste, ou, simplesmente, jogar um pouquinho de canela em cima do mingau? Não posso ser tão egoísta a ponto de fazer as pessoas engolirem o que não gostam.

Juntamente com essa reflexão, faço uso dos meus versos lá em cima: “não sei se me desperto/ ou se desperto a dor.” São duas escolhas: olhar pro meu próprio umbigo, despertar como todos os dias ou despertar a dor nos outros (dar o mingau). Não acho que seja fácil evitar a dor no outro, mas posso tentar (?).

Também creio que o velhinho foi sábio. Mesmo não gostando do mingau, aceitou-o a vida toda porque sabia que era feito para ele com aquela fidelidade invejável e com a melhor das intenções. Isso também me faz pensar nas coisas que rejeito, nos pratos de mingau que tenho afastado da minha mesa. Quanto gesto de carinho eu perdi?

Os relacionamentos são profundos poços. Nunca se sabe em que nível está a água. Mas o baldinho fica ali preparado e as mãos prontas para fazer girar a roldana.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

O que vou ensinar para os meus filhos (de A a Z)


A – andorinha: pássaro pequeno porque se escreve no diminutivo. A andorinha é proibida de ser grande.

B – bisturi: instrumento criado por Hitler para fazer as pessoas sofrerem.

C – camisola: vestidinho de dormir. Vem sempre acompanhada de um copo d´água e um urinol.

caráter: algo que muitos políticos brasileiros não têm.

D – despertador: tenho vontade de quebrar o meu quando ele toca ás seis da manhã.

E – emagrecer: é o verbo mais pronunciado pelas mulheres depois dos trinta.

F – fósforo: até hoje não entendi como um palito pega fogo só de esfregá-lo na caixinha.

I – indecente: palavra muito usada pelo meu avô quando vê minhas primas de camiseta.

J – jiló: odeio jiló.

L – linda: a Evangeline Lilly é linda.

M – monstro: toda criatura que mora dentro do guarda-roupa e/ou dentro da gente.

N – nada: é tudo o que eu faço nas férias.

O – oftalmologista: médico que muitas pessoas insistem em chamar de oculista.

P – pelada: gíria usada para jogos de futebol entre amigos. Eles jogam de roupa.

V – vacina: deviam inventar vacina em forma de comprimido. Aquelas agulhas machucam muito!

Y – não conheço nenhuma palavra com essa letra.

Z – zebra: animal preto e branco em plena era da TV digital.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Da dor


A gente sofre por tanta coisa. Sofre porque algum parente querido mora longe, sofre porque sente falta de um amigo que mudou de país, sofre com a briga constante dos pais, sofre porque não consegue encontrar o verdadeiro amor e sofre porque já perdeu as esperanças de encontrá-lo.

Há pessoas que gostam de sofrer mais. Sofrem porque a Internet está muito lenta (pra que serve essa banda larga, então?) ou porque perdeu o capítulo da novela em que o mocinho, finalmente, beijaria a mocinha (que raiva! Agora só vou poder assistir no Vale a Pena Ver de Novo).

Outras pessoas sofrem com motivo: alguém doente na família, uma situação financeira difícil, notas vermelhas no boletim, chefe insuportável, sogra implicante.

Alguns (senão todos) desses motivos podem ser contornados. Difícil é quando o sofrimento nasce de dentro da gente por uma razão desconhecida ou até conhecida, mas incontrolável. Lidar com a dor é algo comum. Não há ser humano que não experimente uma dor sequer. O problema passa a ser lidar com ela, eliminá-la.

Os terapeutas estão com as agendas cheias. As pessoas precisam de ajuda para serem curadas de sofrimentos. O mundo dos lobos, onde só sobrevivem os mais espertos e os mais talentosos, massacra os cordeiros que, não por culpa deles próprios, se portam de maneira diferente.

Resta ao tímido marcar uma consulta e tentar se livrar dos seus medos e das suas limitações para poder conseguir se expressar em uma entrevista de emprego. Cabe ao solitário sentar-se no divã e buscar uma forma de alimentar seu lado social; as empresas exigem pessoas dinâmicas que saibam trabalhar em conjunto. O carrancudo deve sorrir mais, o extravagante deve se conter, o sentimental deve manter os pés no chão, o advogado deve entender de acrobacias e os médicos de súmulas, a aeromoça deve ser magra, bonita e falar javanês, e por aí vai. Padrões. Fôrmas. Rótulos. Há maneira certa para tudo. Não há mais a liberdade para viver ao seu modo. Existem cobranças e um mundo povoado de pessoas com o dedo em riste na sua direção.

Não me espanta ver tanta gente sofrendo da alma. Sofrendo porque a alma é oprimida, não consegue se libertar em meio a tanto caos.

Ás vezes me pergunto por que escrevo. Escrever me liberta. Faço um vôo rasante sob meus sofrimentos, coloco-os em ordem, espaireço. Não sei que poder de cura tem as palavras, mas faço uso delas. Para quem não tem por onde começar, eis uma dica: rabisque qualquer coisa num canto de papel. Aos poucos a alma vai ficando leve; deliciosamente leve.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Verbo Amor

Amor tem gosto de fruta madura

Tem gosto de Romã vermelha

Tem cheiro de planta fresca

E sossego de cidade pequena.

Tem jeito de eternidade

É Romãce novo

São lembranças velhas

Tem ar de Roma Antiga

E suspiro de alma nova.

Amor é Romãce contínuo

É amorfo e solúvel

É grande e dura sempre

Amor está presente

É a Romã, é Roma

É o Romãce

É o verbo.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Conversa de adulto


A menina de seis anos pergunta para o pai enquanto ele lê o jornal:

- Pai, o que é camisinha?

O pai dá uma olhada por cima do jornal. Ele sente o coração bater forte, mas acredita que a menina ouvira aquela palavra de alguma meia-conversa que escutara na rua.

- É uma camisa pequena. – respondeu e encerrou o assunto.

- Se eu vestir uma camisa pequena eu não engravido? – insistiu a menina.

O pai levou um susto. Dobrou o jornal e colocou-o de lado. Respirou fundo e repassou na mente a conversa que já previa ter com a filha. Na verdade, esperava que essa conversa ocorresse quando ela tivesse seus doze ou treze anos. Mas o mundo nunca mais foi como em seus tempos.

- Minha filha, - ele começou, engolindo algumas palavras. Tossiu. Suou. Limpou o rosto com as costas das mãos. Desistiu. Pegou o jornal de volta. – Essa conversa não é própria para uma menina de seis anos. Quando você estiver crescidinha a gente conversa, está bem?

- Mas pai, a professora pediu pra gente perguntar isso aos pais.

- O quê?! A sua professora fala essas coisas com você?

- É! – respondeu a menina plácida.

- E o que mais ela mandou você me perguntar? – o pai estava bravo. Sim, ele estava muito bravo.

- Ela também quer saber como eu fui feita.

- Ah, chega! – o pai lançou o jornal longe e saiu dali nervoso.

*

- Mãe!

A menina se aproximou da mãe que secava os cabelos com o secador. Prontamente, a mãe desligou o aparelho e olhou para a filha.

- O que foi?

- O que é camisinha?

A mãe ligou o secador e fingiu que não ouviu a pergunta.

*

- Fui conversar com a professora. – disse o pai à mãe. – Insisti que esse assunto não deve ser ensinado a crianças de seis anos.

- O que ela disse? – perguntou a mãe visivelmente preocupada.

- Disse que hoje as crianças precisam se inteirar desses assuntos porque o mundo tem colocado essas idéias muito cedo na cabeça delas. E, como ela disse, as crianças, quando não sabem nada do assunto, pervertem e entendem tudo de forma errada.

- Ela está certa. – disse a mãe.

- Não está! – esbravejou o pai. – No meu tempo, aos seis anos eu brincava de espetar palito de fósforo nas batatas para fazer vaquinhas. Nem sonhava com o que era camisinha.

- Os tempos não são os mesmos. Precisamos fazer o que a professora nos pediu, ela é uma educadora e entende do assunto.

- Eu também sou um educador! E você está proibida de falar com nossa filha sobre camisinhas e afins.

- Tudo bem. – respondeu a mãe muito a contragosto.

*

- O que está fazendo? – perguntou o pai para a filha.

- Passando batom. – respondeu a menina esfregando um lábio no outro.

- Dê-me isso aqui! – e o pai tomou o batom da menina. – Você não tem idade pra passar essas coisas. É uma criança!

- A Rosaninha passa! – defendeu-se a menina fazendo cara de choro.

- A Rosaninha é a Rosaninha e você é você.

- Pai. – chamou a menina quando ele fez que ia sair.

- Oi.

- A professora disse que você é careta.

O pai levou um choque. Levou a mão ao peito e sentiu um ardor.

- Por que ela lhe disse isso? – perguntou o pai com medo da resposta.

- Porque eu fui a única que não levei as respostas do dever de casa.

- Vou tirar você daquela escola. – resolveu o pai e deixou a menina sozinha se olhando no espelho.

*

- Não estamos mais no século vinte. – disse a diretora, tentando convencer o pai irredutível.

- A moral é uma só, minha senhora. E eu não quero que vocês passem para minha filha informações de adulto. Ela precisa se inteirar dos mundos das bonecas e das amarelinhas.

- Hoje em dia isso não é mais possível. As crianças sabem tudo por meio da TV, da Internet e dos celulares. Só queremos evitar que sua filha receba informações erradas sobre um assunto tão importante como o sexo.

- Eu direi a minha filha sobre essas coisas na hora que eu julgar melhor. – disse o pai e se levantou. – Onde está minha filha?

- Ela está esperando o senhor lá fora.

O pai deixou a diretoria muito contrariado. Lá fora viu a filha conversando com um garotinho do seu tamanho.

- Vamos para casa. – chamou o pai.

- Pai, podemos dar uma carona pro Pedro?

- Quem é Pedro? Seu coleguinha? – perguntou o pai já pronto para apertar as bochechas do menino e dizer como ele era bonito e outras coisas que gente velha costuma dizer ás crianças.

- Não, pai. Ele é o meu namorado.

O pai viu o céu girar. As palavras da filha passaram pelo ouvido e soaram lá dentro da mente como um sino. Viu tudo escuro. Desmaiou.

Definitivamente, o mundo não é mais o mesmo.

Porão de entulhos


Vejo uma casinha de fazenda com uma cerca branca e árvores desenhando um caminho que leva a um riacho onde o sol salpica seus raios. A casinha tem duas janelas grandes de madeiras que, quando abertas, deixam transparecer os cômodos rústicos e muito agradáveis. Há um cheiro de café novo vindo da cozinha e, logo depois, um aroma de pão-de-queijo recém-saído do forno. Passeio pela casa e a percorro em um ou dois minutos de tão pequena. Uma portinhola no chão da lavanderia me chama a atenção. Abro e desço as escadas onde encontro um porão escuro cheirando a coisas velhas. Um pouco da luz do sol entra por algumas frestas e vejo baús antigos, caixas mofadas, brinquedos e instrumentos enferrujados, quadros se deteriorando. Percebo que a casa abriga dois extremos: o novo e o velho, o bonito e o feio, o agradável e o desconfortável.

Eu moro nessa casa desde que nasci. Algumas coisas que coloquei no porão nem sei quais são. Outras coisas eu até lembro e sei onde estão. Tenho vontade de revirar baús e buscar qualquer vestígio de algo adormecido. Alguns entulhos insistem em não ficar no porão e, durante minhas visitas, parecem clamar para que eu os tire dali. Eu os tiro, mas, quando me canso, volto com eles para o mesmo lugar onde eles sossegam, mas logo voltam a re-clamar.

Há pessoas que não conseguem separar a casa do porão. Viver no porão não deve ser tão confortável assim. O cheiro provoca náusea e a escuridão tristeza. É preciso tirar alguns dias par se arrumar a casa e ver o que deve ir para baixo juntamente com os entulhos. Não é bom deixar vestígios de caixas e baús. Eles afugentam as visitas.

Quando vou ao meu porão (e só eu faço isso), percebo que é tentadora a idéia de permanecer ali para sempre. Há tanta coisa aparentemente interessante! Mas logo me lembro do café quentinho e dos pães de queijo lá em cima. Volto para a cozinha e me sirvo de uma xícara de café fumegante. Fico horas debruçado na janela. Vez ou outra ouço gritos vindos do porão. Dou uma risada por dentro. Não, não troco aquele momento na janela por nada...

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Dos sonhos



Quando eu era criança, eu tinha sonhos de criança. Minha mãe diz que eu queria ser vendedor de algodão doce. Na cabeça da criança tudo parece muito simples. Basta a gente querer e acontece.

Pergunto-me porque os adultos param de ter sonhos assim. Os sonhos deles são nublados que vêm sempre acompanhados de uma torrente de dúvidas e perguntas. Seus sonhos, na maioria das vezes, envolvem dinheiro, poder, prestígio. Não conheço nenhum adulto que sonhe ter um carrinho de algodão doce ou uma roda gigante.

Não sei em qual parte do corpo nascem os sonhos. Alguns devem vir da mente, mas outros, certamente, vêem do coração. Eu queria ter sonhos que viessem sempre do coração porque esses, geralmente, são os mais agradáveis. Se o meu coração, então, estiver perto do coração de Deus, esses sim serão confiáveis.

Não entendo porque alguns abrem mão de seus sonhos. Tenho alguns palpites: incredulidade, pessimismo, mudança de planos. Não quero me preocupar em executar os sonhos. Quero a delícia de poder sonhar. O sonho é que move nosso espírito, mexe com o imaginário, com a fantasia. Através do sonho, posso tudo, tenho tudo.

Depois, quando o sonho estiver bem maduro a ponto de escorregar para fora do corpo e se descontrolar entre minhas mãos, deixo-o voar. Não há com que se preocupar. Sonhos confiáveis se realizam porque nasceram de um coração maior que o meu. Não foram cultivados em terreno pedregoso e incerto. Foram regados todos os dias com a água mais límpida que já se viu.

Quero poder sonhar com meu carrinho de algodão doce e com uma roda gigante. Deus me permite o sonho porque cabe a Ele realizá-lo. Quero ser uma eterna criança deitada no colo do Pai.

O mundo de sofismas


O mundo é feito de sofismas. Não é uma visão pessimista, é apenas um outro ponto de vista.

Diante de tantas evidências, há quem sofisme a possibilidade de não haver Deus.

Já foi constatado que o número de ateus no mundo cresce. Isso não me assusta, é bíblico. Só não compreendo como negar a existência de algo tão real.

Uma coisa é fato: não conhece a Deus só quem se propõe a isso. Como em todo relacionamento, cabe a nós querermos conhecê-Lo. Há alguém que perguntará: mas por que Ele não vem me conhecer primeiro? A resposta é simples: Ele quis conhecê-lo primeiro (e, pra falar a verdade, até já o conhece). Ele está á espera da sua resposta, como uma noiva ensandecida com o casamento.

Quando penso que todas as coisas no Universo estão em seu devido lugar, que a noite não se mistura com o dia, que as cores do arco-íris não mudam de lugar, que o meu corpo pede por água quando estou com sede, que o canário não canta como o pintassilgo, que existem as abelhas para fazer o mel, que as estrelas não caem na minha cabeça... [quando penso nisso tudo] não tenho dúvidas: há alguém maior que eu.

Os sofistas chamarão meus argumentos de sofismo, mas eu direi que não se trata do que eu penso, são as evidências. Claras e óbvias. Quem tem olhos para ver que veja!