sábado, 3 de dezembro de 2011

O conto que esqueci


Ela fumava um cigarro atrás do outro. Essa é a imagem que me vem à mente. Tia Sandra. Usava sempre saias e o cabelo curto, mas não muito. Ficava sempre na porta da biblioteca. Porque dentro não podia fumar.


Éramos amigos. Daqueles que mal se falam, mas que freqüentam o mesmo lugar. De tanto eu ir à biblioteca, nos tornamos comuns um ao outro. Sim, comuns. Era como se ela já soubesse quando eu iria aparecer. Sempre nos intervalos das aulas e no horário da educação física, que eu matava.


Teve um dia. Chovia. Fui à biblioteca e lá estava ela, fumando. Cumprimentei com os olhos só. Ela respondeu com suas fumaças. Sentei à mesa. Ela chegou perto, sem o cigarro.


- Tenho um conto interessante pra você ler. – e colocou um livro grande. Bem grande, à minha frente, com a página aberta no lugar onde estava o conto.


Eu agradeci sem dizer. Sempre fui assim mesmo: mudo de palavras. Dentro, um mundo de palavras. E li o conto. Era bonito. Não me lembro mais da história, sei que era bonita. Daquelas que a gente lê, sorri ao final e guarda em qualquer lugar do peito. Pensei que aquele conto poderia ter sido escrito por ela. Por Tia Sandra. Mas não, havia o nome do autor ali em cima. E eu me desapontei um pouco. Só um pouco.


- Gostou? – ela perguntou quando me viu fechando o livro.


Eu disse que sim, que tinha achado legal. Sempre fui assim, também: uso expressões pobres que não expressam nem um tanto do que eu realmente sinto. Então ela sorriu, sei lá por que. Simpatia, talvez. Eu fiquei na mesa, observando-a de longe. Ela parecia tão atenta a tudo, embora carregasse um certo descuido no jeito de andar e estranhas maneiras que lhe tiravam um pouco dessa coisa humana que temos.


Perguntei se eu poderia levar o livro pra casa. Queria ler de novo. Ela respondeu que aquele livro não podia. E não deu motivos. Eu aceitei a resposta e me despedi. Escutei um ruído que talvez fosse sua forma de despedida.


Nos dias seguintes, eu passei a guardar uma ansiedade. Como se eu esperasse ela vir com outro conto pra eu ler. Não ocorreu. Talvez ela quisesse compartilhar só aquele. Talvez nunca mais ela tivesse lido algo que valesse a pena mostrar a alguém. Talvez ela realmente tivesse escrito aquele conto, e mais nenhum.


Ela fumava um cigarro atrás do outro. Tia Sandra das saias, do cabelo curto. Do conto no dia de chuva. Conto bonito que esqueci.



[8 de junho de 2009]

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Daquilo que sabemos ser


É doce sua maneira de falar das flores, do céu e das coisas simples às quais ninguém dá importância. Eu recebo suas palavras com um sorriso dormente, que insiste em me dar papel de bobo. Sou bobo. Porque ninguém te percebe, como eu.

Assim, de longe, vejo duas dúzias de borboletas se enrolando em seus cabelos. Sua presença entorna pó de candura e eu prevejo duas eternidades ao seu lado. Seu jeito meio romântico, essas fitas coloridas, a saia rodada e o cabelo em tranças, seus olhos dançando valsa, suas mãos apertando meu peito. Peito que dói, de tanto sentir.

Você pega meus dedos, em um ato próprio de quem quer me contar alguns segredos. Despeja com os olhos algumas ternurinhas que eu saio catando, enquanto penso em recitar juras de amor. E que você me jure exageros, impossibilidades, loucuras, pra eu te chamar de muito louca, de muito minha e te propor meu melhor amor.

Confessaria que, antes de você me notar, eu já te percebia nos braços de outros. Guardei todos os seus sorrisos na minha caixinha de lembranças, busquei informações detalhadas a seu respeito, de sorte que eu sabia até o horário do seu primeiro ônibus. Eu queria mesmo era só te ver de longe, pro meu coração ficar apertado de saudade.

Usei meus melhores jeans, meu tênis novo e meu perfume importado. Criei esbarrões, pra que você sentisse parte de mim, em você. Decorei seus vestidos e concluí que você fica mais linda quando veste vermelho. O que houve, porém, foi que você me descobriu com um olhar distraído.

Depois, nossas tretas. Eu tocando seus pés, por debaixo da mesa. Nossos risinhos calados e a certeza petulante de que não havia lugar tão lindo pra caber o nosso amor. Você passava a me destrinchar em música, me fazia versos, me prometia uma serenata moderna: você na sacada, cantando pra mim, lá embaixo.

E as nossas noites insones, você passando a mão nos meus cabelos, arrancando de mim suspiros manhosos e um pedido piedoso: que todas as suas dívidas comigo fossem pagas em cafunés. Então, cansados das palavras e enrolados no cobertor já descorado de tanto ouvir nossas pieguices sobre amor, fazemos um voto de silêncio. A lua atravessa nosso quarto e seus olhos, empapuçados de uma esperança bonita, provocam minha insensatez repentina.

Seguimos de mãos dadas, nas avenidas sinuosas que nos contornam. Você para, vez ou outra, pra pedir um café ou um chá gelado. Respiramos e seguimos. Sempre fomos juntos. Sempre fomos um.

Caminhada serena, essa nossa. É que não vivemos de outra coisa, que não de amor.

sábado, 12 de novembro de 2011

Miguelzim

“Miguilim não tinha vontade de crescer,

De ser pessôa grande,

A conversa das pessôas grandes era sempre

As mesmas coisas secas, com aquela necessidade

De ser brutas, coisas assustadas ”.

Manuelzão e Miguilim (Guimarães Rosa)

- Miguelzim?

- Que susto! Por que você está sussurrando?

- Não quero que ninguém me veja aqui.

- O que aconteceu? Não consegue dormir?

- Não. Posso te contar um segredo?

- Pode. Senta aí na beira da cama.

- Miguelzim... você é meu irmão mais velho. O pai diz que eu tenho que ser corajoso feito você.

- Você é corajoso. Você salvou a mãe daquela barata voadora, lembra?

- Eu sei. Mas é que quando chove assim, que nem hoje, me vem um arrepio por dentro. Esse barulho todo é Deus que fica bravo com a gente?

- A vó diz que é. Que quando cai o trovão perto do nosso ouvido, é porque precisamos arrepender dos nossos pecados.

- Eu tenho medo, Miguelzim. Você acredita em assombração?

- Assombração não existe.

- Mas a Martinha já viu. Ela jura que já viu.

- A Martinha é mentirosa. Ela diz isso pra você ficar com medo. Eu não acredito nela.

- Mas ela é mais velha que você.

- Não acredito e pronto.

- Miguelzim?

- Oi.

- Não conta pro pai que eu vim pro seu quarto?

- Não vou contar.

- Nem se a gente brigar feio um dia e você ficar com muita raiva de mim?

- Isso eu não posso garantir. O que você faria pra gente brigar feio?

- Não sei. Você é meu melhor amigo.

- Então pronto. Seu segredo estará bem guardado.

- Miguelzim?

- Oi.

- Você, quando era assim mais pequeno, que nem eu, tinha medo de trovão?

- Tinha. Eu me cobria todo até o alto da cabeça e ficava encolhidinho na cama, até o barulho passar.

- Você era mais corajoso que eu.

- Não era não. Eu nunca matei uma barata voadora.

- Posso segurar sua mão só um pouco?

- Pode.

- Amanhã o pai vai me dar uns trocados pro lanche. Te compro um refrigerante no recreio.

- Não precisa.

- Você é o melhor irmão, Miguelzim.

- Agora fica quieto. Não há jeito melhor de perder o medo de trovão do que ouvi-lo indo embora. Percebe como o barulho vai ficando cada vez mais raro?

- É verdade.

- Acho que você já pode ir pro seu quarto. Não há mais perigo.

- Tá bom.

- Fecha a porta.

- Miguelzim?

- Oi?

- É tão mais fácil ser corajoso ao seu lado.





[Em 14/12/2010]

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Segura, Berenice!


Berenice era uma daquelas loiras de entortar o pescoço. Como se não bastasse, gostava de andar sempre bem arrumada e lia o dicionário Aurélio que era pra ampliar o vocabulário. Era linda e inteligente. Ainda por cima, tinha um sorriso pecaminoso. Ela ria e os anjos despencavam lá do céu, puro descuido. Era simpaticíssima e fazia piada com suas próprias desgraças.


“Dizem que eu sou bonita, sabe? Mas quando perguntam o meu nome, neguinho inventa até dor de barriga pra poder ir ao banheiro e fugir de mim.”


Berenice era um tanto louca. Tinha idéias estranhas na cabeça. Andou lendo Sartre e Nietzsche nos dois primeiros períodos da faculdade.


“A gente podia acabar com a corrupção dos políticos.”, ela sugeriu certa vez.


“Ah, é? Como?”


“A gente pode plantar baobás ao redor do Planalto. Daí os políticos vão achar aquilo muito estranho.”


“Sim. E a corrupção acaba?”


“Acaba em dois tempos. Plantando baobás todos os dias, eles terão com o que se preocupar. Imagine só: quem estaria plantando tanta árvore? Precisamos dar um jeito nisso, dirão os ministros.”


“Quanto tempo leva pra crescer um baobá?”


“Eu sei lá.”, e ela encerrava o assunto.


O sonho de todo homem era levar Berenice pra cama. Rezava a lenda que só o Tomás do nono período tinha conseguido tal proeza.


“O que ele tem que nós não temos?”, nos perguntávamos embasbacados.


“Dizem que ele mora num bairro de luxo.”


“Não. A Berenice não é mulher de se comprar com dinheiro.”


Certa vez ela disse que tinha dois sonhos na vida: fazer sexo selvagem com um caubói e sofrer um acidente de carro. Numa dessas festas à fantasia, metade dos homens da sala foi vestido de peão. Mas Berenice não era muito de festas; ela não foi.


“Você me dá uma carona?”, ela me pediu uma vez.


Meu coração faltou sair pela boca. O que diriam os meninos quando soubessem que Berenice entrou no meu carro? Eu precisava pensar em alguma coisa. Precisava ter uma história pra contar pra eles. Berenice entrou no veículo e o perfume dela recendeu o lugar. Então ela destrambelhou numa conversa de que homem que é homem precisa entender as mulheres. Dizia e mexia nos cabelos. Eu não sabia se olhava pras pernas dela ou pro volante.


“Ando cansada de homem meia-sola. Quando chegam pra mim com nhem nhem nhem eu logo digo meu nome: Berenice, viu? Meu nome é Berenice! Daí eles correm. Quero distância de homem assim.”


E ela ria. Eu ria junto. Pernas, volante. Pernas ou volante?


“Você não é assim, é?”, ela me perguntou.


“Eu?!”, me engasguei.


“Sim. Se uma mulher de quem você gosta pintasse na sua frente, você lhe negaria um desejo? Qualquer que seja?”


“Claro que não. Eu faria qualquer coisa.”


“Pois você é raro. Está mesmo dizendo a verdade?”


Pernas e volantes, pernasouvolante. Eu iria provar a ela que dizia a mais pura verdade. E seria ali, naquele momento.


“Segura aí Berenice, segura que nós vamos bater!”


[Publicado em 29/07/2008]

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Passarinho


- Que tem de bão aí, na panela?


- Tem nada não, sai de perto.


- Ih, acordou do avesso, muié. Tá de coisa?


- E eu lá sei o que é coisa?


- Coisa, daquelas que muié sempre tem.


- Não, tenho coisa não. Tô só pensatória mesmo.


- Ainda tá triste com o passarinho? Eu já lhe disse, muié, um passarinho de nada, aquele. Amanhã eu vou lá na venda do Tão e te trago outro.


- Não é isso, home de Deus. O pequenino era que nem filho pra mim. Era dar seis horas, ele começava a cantar pra eu acordar. Então eu dava o de comer pra ele e ele ficava com aquelas asinhas salientes, feito menino endiabrado. Dispois a gente cantava junto, sabe? Ele tinha uma vozinha fraquinha, coitado. E eu acompanhava ele, pro canto ficar bonito.


- Tá doida, é?


- Acontece que me acostumei. Era parte do meu dia parar, dar atenção, dar o de comer, cantar com ele. E quando ele pedia pra dar um voltinha com aqueles olhinho apertado? Eu abria a gaiola e ele ia pintar nos pé de manga do quintal. Ia e voltava, feito filho obediente. Tão bonitinho, o pequeno.


- Muié, para com isso de chorar! É um animalzinho. Como pode ter pegado amor com um bicho que nem sabia seu nome?


- Ah, sabia sim! Sabia sim, viu? Que eu ouvi uma vez ele me chamar e eu até me voltei apavorada, pensando que era coisa de outro mundo. Mas vi que era ele, com aquela vozinha fraquinha, coitado. Veio cantando pro meu lado, dizendo que meu nome era bonito. E repetia: Ma-ri-a.


- Muié do céu, tô ficando é preocupado com cê. Que isso agora de ouvir passarinho falar? Vou ligar pro doutor.


- Carece não, home. É coisa que não explica, de quem inventa de escutar o que não deve por gostar demais. Sentimento faz aparecer algumas coisas do lado de fora também.


- Sentimento que nada. Isso é doidice.


- Me deixa! Vou acabar de fazer o almoço e ocê trata de arrumar alguma coisa pra fazer. Home impertinente, diacho!


- Isso aí de sentimento por fora, é bom? É que nem meu abraço, assim?


- Sai, home. Sai que a panela tá pegando fogo.


- Não ligo. Canta pra mim, canta passarinha.


- Seu bobo! Coisa mais besta. E isso não é hora de namorar. Tô suja.


- Tá é linda.


- Cê acha, mesmo? Mais que a Carmélia?


- Carmélia não canta.


- Eu perguntei isso?


- Não importa. Vai cozinhar, vai. Vou na venda do Tão. Te compro um presente. E você se enfeita pra lua que vai assistir nosso cantar hoje.


- Você não canta.


- Quem disse?


- Eu disse.


- Pois vai ver só.



[Publicado em 03/12/2009]


quarta-feira, 16 de março de 2011

Venha quando puder


Eu abro a janela do quarto e prevejo um dia de chuva fina, no meu quintal. Os pingos d'água caem tortuosamente pelo vidro e meus olhos refletem o brilho de uma lembrança recente, de um sorriso imaginário que se deita na minha mente, principalmente ao amanhecer. É que algumas formigas parecem caminhar no meu estômago, me dando a sensação estranha de que eu poderia ser muito, muito feliz. Então percebo que sou, embora não me dê conta disso, sempre. Que a felicidade não é um momento, é uma escolha. E, hoje, eu escolho você.

Escolho porque tudo meu é seu também. Porque nossa infância foi parecida e tivemos os mesmos traumas. Estes moldaram nosso caráter, nos fizeram ter a mesma esperança de que haveria um amanhã bonito, onde as pessoas nos veriam como somos, como conseguimos ser. Eu imagino que, na nossa solidão, estávamos um ao lado do outro, em pensamento. Em ideias muito próximas, em planos coincidentes, em caminhos que desembocariam em nós dois.

Escolho você porque nós nunca tivemos um tempo. Mas parece que tivemos todos os minutos do relógio. Nossas rodas nunca deslizaram para o mesmo espaço, de sorte que éramos longe, sem saber um do outro. Porém, houve algum instante em que os sinais produzidos se tornaram eficazes, a ponto de você me enxergar, distante, descendo a avenida com um ramalhete de flores pra você colocar num vaso de água. Sentamos. A conversa foi infinita. Houve madrugadas regadas a música e poesia. Risadas que puderam ser ouvidas fisicamente, porque o eco também se transmite com o frio. Frio que não passa, porque é febre de sentir.

Das vezes que eu quis um amor (porque em tantas outras eu desisti, simplesmente), eu quis que fosse assim: simples. Que os romantismos não fossem melodramas, e sim dividir jabuticabas debaixo do pé, sem deixar os dedos se desenlaçarem. Que as brigas fossem fatos seguidos de um afago maior, um abraço demorado, uma música cantarolada baixinha. Que os diálogos fossem eternos, que despertassem curiosidade, que instigassem o amor. Que, no fim da tarde, o presente fosse uma caneca de chocolate quente ou um suco de laranja com muito gelo, pra dois. Que os travesseiros fossem amparo para nossos livros, nossas poesias criadas em conjunto, nossos sonhos manufaturados.

Eu escolho. Podem aparecer tantas outras possibilidades, mas houve uma escolha pretérita. Houve um esboço de fidelidade e uma vontade de abraçar o intangível, aquilo que ainda não é. Atrelado a isso, existe a minha vontade de ser muito seu, desde sempre. De você, um dia, descobrir que a minha maior preocupação era nunca te achar, por esses caminhos que andei. De eu, um dia, te olhar com desconfiança, sem saber ao certo se era você o tempo todo. Eu escolho. E espero. Venha quando puder.


domingo, 20 de fevereiro de 2011

Descobri que te amava


Um resquício de saudade visitou meu peito tormentoso, nessa manhã. Alguns eventos viraram poeira no meu mural de memórias, outros se acenderam feito estrela reluzente no fundo escuro da noite. Gostos se dependuraram na ponta da língua que tocava o céu da boca como quem toca a boca do céu. O café posto à mesa lembrava aqueles ruídos estranhos da água fervente e do pó solúvel cheirando esperança no coador de pano. Acordar era renascer. Um pássaro pousando no fio, sem levar um choque e a borboleta que assistia as flores mimadas do jardim vizinho: cenário que fincava no canto da alma. Saudade de amar outra vez.

À noite, o travesseiro foi premiado com um sorriso sonso de alguns breves minutos, enquanto os ouvidos cuidavam de repetir baixinho suas bobeiras diárias. Descobri então que te amava. O indiscreto mexilhar dos pés descalços no lençol estampado e a música-ambiente vinda da casa do vizinho serviam de distração ao sono que demorava vir. Mais alguns minutos em pensamentos era como ter-te ao lado, tocando meus dedos e atrasando meus passos de estarem longe de você.

Qualquer dois- mais- dois era operação matemática complicada. Os sentidos pareciam ter sido embaralhados, sem qualquer marcação de naipe. Os olhos, enviesados, calculavam no relógio o tempo de você passar aqui em casa e se demorar na minha sala de estar.

Meu medo, percebo, é não poder nunca tirar o frisado do seu vestido ou amparar seus passos tortos no meio-fio, enquanto brinca de equilibrista. Meu medo, moça, é não poder te entregar nunca aquela flor plantada em rimas do nosso quintal-comum. Vai ver eu tenho muitos planos. Vai ver eu tenho uma baita sorte. Vai ver você me ama também.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Entre nós


- Pai, o monstro do armário existe?

- Não existem monstros, filho. Só aqueles que a gente mesmo cria.

- O Daniel falou que viu um embaixo da cama dele, na noite passada. Mas ele é um pouco mentiroso. Ele sempre diz que na casa dele tem um disco voador. Isso é mentira, não é?

- Creio que sim. As pessoas têm a mente muito fértil. Basta ver quantas coisas são criadas.

- O que é uma mente muito fértil?

- É uma mente criativa.

- Ah. E por que não inventaram ainda um remédio contra a morte?

- Porque ninguém tem controle sobre a morte, só Deus.

- E se Deus ensinasse aos homens?

- Aí os homens se julgariam deuses.

- Eu pensei que eles já se julgavam. Outro dia eu escutei o pai do Alfredo dizer que Deus não existe.

- Muita gente não consegue enxergar os sinais de Deus.

- A professora explicou que cada coisa na natureza tem o seu papel, como se fôssemos todos obra de um inteligentíssimo arquiteto.

- Sua professora tem razão. A inteligência da criação de Deus é de deixar qualquer um de queixo caído.

- Deus tem a mente muito fértil, não é?

- Tem sim.

- Pai?

- Oi.

- Sabe por que eu gosto de ficar doente?

- Não sei. Você gosta?

- Gosto, porque é quando você vem no meu quarto e faz a febre passar.

- Será que ela foi mesmo embora? Vamos ver.

- Foi sim. Já estou bem melhor.

- A temperatura abaixou.

- Se eu fosse médico, receitaria uma conversa de pai pra poder passar a febre. Parece que funciona.

- Funciona quando os laços são muito estreitos e fazem nó. Não há qualquer distância entre um nó. Entre nós.

- Uma coisa estreita é uma coisa apertada?

- Sim.

- É que eu queria um abraço estreito, agora.

- Pois tome um abraço estreito e um beijo largo.

- Pai?

- Hum?

- Antes de você sair, não se esqueça de fechar o armário. É que aquelas roupas, às vezes, parecem um monstro.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Dessas conversas de ônibus


O ônibus estava quase cheio, quando entrei. Havia um único assento livre, ao lado de uma moça compenetrada em alguma leitura. Sentei. Tentei olhar discretamente pra ela, pra dizer qualquer coisa amistosa, mas ela não tirou os olhos da revista. Era uma revista daquelas de noiva, com vestidos de casamento dos mais variados. Ela olhava as gravuras como quem se derrete por uma casquinha de sorvete. Ela queria muito.

Coloquei meu fone e liguei o mp3. Fechei os olhos pra começar o longo trajeto até a minha casa. Alguns minutos depois, notei que a moça estava inquieta e abri os olhos. Ela chorava, discretamente. Mas o corpo todo se mexia, com os soluços. Tentei fingir que não via. Não queria me intrometer, pousar de conselheiro. Nunca obtive sucesso com essas coisas. Mas não pude ignorar a situação por muito tempo. Ela começou a choramingar alto, chamando a atenção daqueles que estavam por perto.

- Moça? – chamei, tirando o fone do ouvido.

Ela me olhou com uma firmeza assustadora, um par de olhos insistentes, invasivos, perdidos em meio a lágrimas que apontavam sentimentos muito confusos.

- Você está bem? Quer que eu aperte pra você descer?

- Não, obrigada. – ela parou um instante. Me encarou. – Como você sabe?

Balancei a cabeça, confuso. Ela percebeu que eu não havia entendido a pergunta.

- Como você entra nesse ônibus, senta ao meu lado, usando o mesmo perfume dele?

- Dele quem?

- Você pode esconder essa revista na sua pasta? Leve pra sua namorada.

- Eu não tenho namorada.

- Leve, apenas. Tem palavras cruzadas. – e ela me estendeu a revista de noiva, com a capa úmida das lágrimas que lhe caíram do rosto.

- Obrigado. – agradeci e guardei a revista.

- Eu o amo, sabe? De um jeito insano. Me faz mal.

- Sei como é. Já amei igual. Não é amor, isso. Amor não faz mal a ninguém.

- Ele me disse exatamente assim, com essas palavras. Você é uma espécie de bruxo?

- Não. – eu sorri, ante o espanto dela. – Já lhe ocorreu que, em todo lugar, as pessoas vivem coisas muito parecidas? Eu só usei as minhas palavras, que, coincidentemente, foram as dele.

- E como você deixou de amar? – ela interrogou, mostrando muito interesse na minha vida particular.

- Eu escrevia. Depois apagava tudo. Me expus ao máximo até me esvaziar dela.

- Eu não sei escrever. Só sei chorar.

- Também é uma forma de escrever.

- É? – ela perguntou, fascinada.

- Me parece que sim.

Ela apertou minha mão, me olhou fundo nos olhos, como se fosse me tragar. Me senti fumaça, desintegrei.

- Eu vou passar a escrever. Todos os dias. Me passa seu endereço, vou te mandar. Quero um leitor, alguém que acompanhe meu jornal diário.

Mulher louca, pensei. Tá achando que me interesso por cartas de amor mal resolvido? Tenho meus próprios romances. Inclusive, há dois meses tenho tentado concluir “Crime e castigo”. E agora essa história de jornal diário? Fiz cara de desentendido.

- Você se importa?

Quis dizer que sim, que me importava. Que se eu gostasse dessas coisas, teria feito psicologia, não direito. Que existem psicólogos aos montes, por conta de gente querendo esquecer um grande amor. Que eu tinha meus problemas pessoais. E não conseguia dar conta de um terço deles. Agora mais essa? Quis parar o ônibus ali mesmo e descer, inventando qualquer desculpa.

- Pode mandar pro meu e-mail. – eu disse e passei meu endereço eletrônico. Ficaria fácil sinalizar os e-mails dela como spam. Problema resolvido!

Ela agradeceu efusivamente e desceu no ponto seguinte. Ao vê-la desvencilhar-se de toda aquela gente do ônibus e me acenar, lá da porta, tive pena. Quis ajudar. Encontrei nela uma normalidade aparente; coisa que parecia não ter. Os olhos, porém, carregavam traços de loucura.

Ela nunca mandou um e-mail sequer. E eu aguardo até hoje, numa ansiedade que, por vezes, me irrita. Profundamente.


domingo, 2 de janeiro de 2011

Te troquei pelos meus filmes favoritos


Ando muito ocupado ultimamente. Tenho me rendido ao barulho da chuva, ao cheiro do café feito no coador de pano (enquanto a água queima o açúcar no fogão), ao roçar do cobertor fino, aos sons dos carros que passam pela rua (indo pra algum lugar onde eu deveria estar), aos filmes de faroeste (aqueles que você mais odiava).

Outro dia tentei dedilhar aquela música no violão. Fiquei espantado ao perceber como hoje desconheço os acordes e me atrapalho com as cordas. Naqueles tempos, você me tapava os olhos e cantava perto do meu ouvido, enquanto meus dedos decoravam o caminho das notas. Suas notas. A madrugada vinha depressa e seu cachecol, sempre posto à mão, era esticado sobre os nossos pés gelados e nosso abraço era estanca para qualquer arrepio.

Eu parei de amar faz tempo. Não encontro mais jeito de inserir suas palavras no meu cotidiano. Houve um tempo - algum curto espaço de tempo - em que você se perdeu de mim. Nos distraímos. Nos atraímos. Um constante jogo de me-leva-e-me-deixa e nossos cadarços se desamarraram. Como quando naquele sábado em que você esperava que eu lhe trouxesse um buquê de flores. Eu esperava um abraço demorado. Não tivemos nem um nem outro. Onde nos perdemos?

Ao lado da minha casa tem uma senhora que conversa todos os dias com a filha ao telefone. Eu ouço porque ela se senta na varanda e tudo chega aos meus ouvidos pelas frestas indiscretas da minha janela. Penso que a mansidão daquela senhora é um amor de milênios. Será que ainda somos capazes de amar assim? De um jeito que o “pra sempre” pareça algo distraído? A conotação do amor hoje me lembra um bolo de aniversário. Muitos vão distribuindo suas fatias, até que restam as migalhas (que ninguém mais quer porque está farto). Você teve minhas melhores fatias.

Aluguei três DVDs pra assistir hoje. Te troquei pelos meus filmes favoritos. Amanhã eu acordo e tenho de lidar com a certeza de que preciso mesmo de pijamas novos. E de um amor que caiba dentro deles. Seus porta-retratos estão todos esquecidos no meu porão, caso você resolva tê-los de novo. Não sinto que são meus, mesmo tendo sido presentes seus. Se quiser, aceito de volta aquele relógio caro que te comprei. Ainda devo sete prestações. A bateria ainda funciona?

Me dói a conveniência dos relacionamentos. Me tortura essa insistência da saudade em apertar a campainha de casa, chamando para uma volta no quarteirão. Restam-me então a água quente do chuveiro e “Os miseráveis” na cabeceira da cama. Talvez você não saiba, (bem quero que desconfie) mas eu tenho uma carta na manga. Assim, entoarei Chico, com o dedo em riste: olhos nos olhos, quero ver o que você faz, ao sentir que sem você eu passo bem demais.

Despretensioso, volto meus olhos pra varanda. A chuva, o café, o cobertor, os carros, os filmes. Ando muito ocupado ultimamente. Amando tudo que não seja você.