terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Amor pós-carnaval


Naquele pós-carnaval, as ruas estavam em serpentina e confete, simbolizando uma tristeza conseqüente de uma cidade que viveu dias de alegria desmedida. Alguns cães latiam ao longe, uns pássaros ciscavam na calçada imunda de cores, uma senhora abria a janela pra ver o movimento. De repente, você. Quebrava a esquina em pernas desequilibradas. Não de bebedeira. Você nunca foi de beber. Desequilíbrio vindo de uma saudade que aprisionava suas pernas, querendo atrasar um reencontro já marcado.


Eu sorri enternecido. Não esperava você daquele jeito. Minhas expectativas eram você chegando em um sábado à tarde, entulhada de malas, trazendo um sorriso de felicidade condenada e uns olhos entornados de amor. Mas você vinha trocando os passos, segurando uma máscara na mão esquerda e, nos lábios, uma marchinha.


A bolsinha do Waldemar,
Dá pra desconfiar,
A bolsinha do Waldemar,
Dá pra desconfiar.


Me pegou pelas mãos e me levou até o meio da rua deserta. O abraço trazia um desejo de prolongar a eternidade por mais dois tempos. A saudade que havia em mim era tal qual uma mesa de madeira em traças. Ia me corroendo toda vez que me esforçava para lembrar como era sua face.


- Eu voltei. – você anunciou, desfazendo o abraço e me olhando, sem jeito.


- Hoje é quarta-feira de cinzas. – foram as minhas palavras.


- Cinzas de um amor passado, você quer dizer.


- Não. Cinzas de uma saudade incandescente. Incontrolável. – expliquei.


- Nunca gostamos de carnaval. – você, evasiva.


- Ironia. – eu ri de nervoso.


- Sabe por que eu vim hoje? – e você se voltou, inteira.


- Pra dizer que vai partir novamente. – minhas teorias, sempre tão pessimistas.


- Pra levar você. Pra tirar de mim esse esperar contínuo.


- Eu vou. – sorri, sem saber como ia.


- Agora?


E eu beijei uns lábios trêmulos de quem se surpreendeu com a resposta. Depois, segurei suas mãos e fomos juntos em silêncio.


Enquanto segurava sua mão, ri de uma idéia que me ocorreu: partir e estar são situações separadas por uma margem tão tênue que, naquele instante, eu não sabia se partia com você ou se estava com você. Depois me veio um lampejo esclarecedor. Eu sempre estive. Você sempre esteve.


E apertei mais forte seus dedos.



segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Casulo


Preparou os fios como quem coloca o filho pra dormir. Enrolou-os nos dedos de forma paciente, delicada. Repassava, dava voltas, o volume ia aumentando, ocupando não só os dedos como também o antebraço.


Seus olhos cinzas-mórbidos, de uma tristeza sem tamanho, escorriam por todos os cantos do corpo. Sua cabeça levemente tombada para a esquerda e o sorriso morto no canto do lábio de quem esquece a velha piada contada há alguns minutos. As esperanças adormecidas nos poros, um sintoma prateado de desejos impossíveis de morte sem sofrimento. O medo não é da morte. É da dor.


Os fios agora ocupavam o braço e davam a impressão de que ele estava engessado. Talvez tivesse sofrido uma grande queda. Pode até ser. Os buracos mais profundos são cavados pelo homem em sua mania de colecionar armas cruéis. Palavras são armas. Crueldade se torna apelido em alguns momentos.


Alguma música tocava em qualquer canto do mundo. E as notas remexeram dentro dele, como se, a vida toda, estivessem adormecidas, esperando aquele momento para poderem se espreguiçar. O coração bateu diferente, as pálpebras eram comprimidas por alguma força estranha. O arrepio veio pelo corpo todo, trazendo um calor gélido, um torpor nas entranhas.


Os fios, rapidamente, tomaram todo seu corpo. Um casulo. Havia se encasulado. Ou enclausurado, se preferir. O ritmo de dentro era diferente. A vontade de romper os fios era quase como a necessidade de uma dança embaixo da chuva, desnudo. Havia um pulsar de sangue novo, de fôlego alienígena. Sentia como se outro dele nascesse dentro daqueles fios.


Por fim, num romper desajeitado, arrancando toda sua máscara de fios enrolados, desfazendo toda sua armadura não tão protetora assim, sorriu. Sentiu cócegas nas costas. Uma comichão tomou conta de sua espinha e ele gargalhou. Como há tempos não fazia. Despiu-se dos fios. Tanto trabalho para enrolar-se!


De frente para si mesmo, bateu as asas imaginárias que lhe surgiram no dorso. E fechou os olhos num voo rasante de quem nunca se prendeu ao infinito. Era essencial voar.


domingo, 1 de fevereiro de 2009

Dona Lêda


Dona Lêda, mulher boa. Gorda que só. Arrastava as pernas grossas com uma dificuldade que lhe impunha seus quase cem quilos. Tinha uma alma que esvaía pelos olhos. Falava de amores, felicidade, esperança. Era uma terapeuta. Recebia as amigas em casa e ficavam de prosa. Quem conversasse com Dona Lêda sentiria o desembaraço dos problemas, a pitada de tranqüilidade que ela jogava por cima do desespero, a fé invejável que ela carregava no peito, feito escudo.


Aos domingos, fazia almoço pras crianças pobres do bairro. E lia histórias pra elas. Gostava de contar-lhes sobre o Pequeno Príncipe e a metáfora da raposa. “Tu és eternamente responsável por aquilo que cativas.” As crianças voltavam pra suas casas ao entardecer,com gosto de chocolate quente na boca e com sensação de maturidade por dentro.


Dona Lêda não tinha filhos, não tinha marido. Perdeu um noivo quando estavam prestes a se casar. Foi quando ela afogou suas tristezas na comida. E ganhou quase cem quilos.


A criançada da rua parava debaixo da sacada de Dona Lêda e gritava:


- Tem bala, Dona Lêda?


Lá de cima, ela despejava os doces nas crianças que corriam eufóricas pra colher as balas que rolavam pela calçada. Depois elas lançavam um sorriso de ternura que Dona Lêda retribuía.


Um dia, quando Dona Lêda regava o jardim que mantinha em frente à sua casa, passou um menino agarrado à sua mãe.


- Mãe, por que Dona Lêda é tão gorda? – perguntou o menino sem adequar o volume da voz.


Dona Lêda se voltou para a direção de onde vinha a vozinha e encarou a criança.


- É pra caber o coração, meu filho. – disse a mãe e levou o filho pra casa, aos beliscões.


Dona Lêda deixou escapar um sorriso. Foi uma das coisas mais bonitas que escutou na vida.




Agora, eu e a Jaya estamos também em: Viver para contar