terça-feira, 30 de junho de 2009

Benjamim IV (final)


Após uma conversa de 15 minutos ao telefone, pedi a Rose que me apresentasse as outras enfermeiras. Tive uma conversa breve com cada uma delas e o que me disseram não teve nada de muito animador. Por fim, pedi que Rose me indicasse o quarto de Amélia e me dirigi até lá.


- Você é o detetive? – perguntou uma criança de dez anos, assim que eu abri a porta.


- Sua mãe não lhe ensinou bons modos, garoto? Primeiro se cumprimenta e depois se pergunta essas intimidades. – falei em tom sério, mas isso não amedrontou o pirralho que parecia bastante invocado.


- Eu tenho meus próprios modos. – depois, me olhando com um ar clínico, comentou: - Eu também quero ser detetive um dia.


- Não queira. Há pouco fugi de um cachorro troglodita que cuspia fogo pela boca. É muito perigoso ser detetive. – adverti.


- Você fala como se eu tivesse cinco anos. – o menino pareceu emburrado.


- Não tem?! - fingi decepção.


- Não. Mas você sim, parece ter. – menino esperto, aquele. De repente, descobri que ele poderia ser meu aliado.


Ele estava sentado de frente para um computador que, a princípio, me parecia ser de Amélia.


- Posso ver esse computador? É da sua mãe, não é?


- Sim. – ele disse e afastou o corpo para que eu pudesse me aproximar.


Encontrei apenas alguns arquivos com documentos que não me chamaram a atenção. Havia vários textos que, ao que me pareceu, eram escritos pela própria Amélia.


- Sua mãe escreve histórias? – perguntei ao garoto.


- Escreve. São histórias chatas, eu já disse pra ela.


- Interessante. – comentei enquanto lia algumas linhas. – Então você lê os contos de sua mãe?


- Já a escutei lendo pra vovó algumas vezes. Deve ser por isso que ela morreu. Morreu de tédio com enredos tão chatos. – o garoto disse e riu da própria piada. Garotinho insuportável, pensei.


Num repente, tudo fez muito sentido pra mim. As peças fizeram se encaixar de forma perfeita, como num verdadeiro romance policial. Olhei pro menino que brincava com um carrinho imaginário. Tão despretensioso, mas tão incrivelmente esperto.


- Venha comigo. – eu disse chamando o pequeno. – Vamos contar a todos sobre a morte de sua avó.


Chegamos até a sala principal e pedi pra que o moleque desse um grito, convocando todos da casa. Em alguns minutos estavam todos ali: Amélia, Dr. Romeu, Rose e as demais enfermeiras.


- Meus caros, o que tenho para lhes contar pode ser um tanto frustrante. Se estavam todos esperando por um assassino, lamento dizer que este não há. – iniciei.


- Como assim, Benjamim? – Amélia parecia ensandecida.


- Dona Ieda suicidou-se. – anunciei.


Houve um alarido, todos começaram a falar de uma só vez.


- Explico! – prossegui e todos me deram atenção. – Há pouco fiz uma ligação ao médico legista que realizou a autópsia do corpo de Dona Ieda. Ele me disse que foi encontrada no corpo da falecida uma superdosagem de paracetamol. Diante disso, houve uma falência hepática seguida de morte.


Como todos continuavam com a atenção voltada para mim, prossegui:


- Rose havia me dito que mantinha um vidro de analgésico no criado mudo ao lado da cama de Dona Ieda, no caso de ela sentir dores noturnas e poder, ela própria, tomar um comprimido. Em análise ao quarto da falecida, encontrei o vidro de analgésico vazio. Ao que tudo indica, ela engoliu vários comprimidos, provocando a própria morte.


- Ora, Benjamim, qualquer um poderia ter criado toda a cena pra você acreditar ser um suicídio. Alguém poderia ter colocado o vidro vazio de remédio no criado mudo, ou mesmo forçado a ingestão dos comprimidos. – disse Amélia.


- Poderia. Mas o legista me garantiu que foram encontrados vestígios do remédio debaixo das unhas de Dona Ieda. Ou seja, ela mesma colocou os comprimidos na boca. No entanto, posso garantir que o suicídio de sua mãe foi provocado.


Todos voltaram a falar de uma vez só, em confusão babilônica.


- Ei, ei, ei! – gritei, o mais alto que pude. – Vocês parecem criança. – nesse instante, recebi um pontapé do garotinho que se mantinha ao meu lado.


Voltado o silêncio, prossegui:


- O crime que temos aqui é o que se chama de induzimento ao suicídio. Mais uma vez, com a ajuda de Rose, soube que Amélia levava a mãe ao jardim toda manhã e passava várias horas lendo histórias pra ela. O que eu não sabia, porém, era que essas histórias eram escritas pela própria Amélia. Tomei a liberdade de invadir o seu computador e encontrei vários contos que, sinceramente, me fizeram desejar minha morte. Histórias tristes de pessoas depressivas que se matam e vêem a vida de forma negativa e pessimista. A idéia de morte se escondia por trás da trama, de forma sutil. Mas para quem escuta tais narrativas todos os dias, acaba absorvendo o conteúdo e se tornando, igualmente, uma pessoa melancólica. Rose também disse do comportamento diferente de Dona Ieda nos últimos tempos. Acredito que seu temperamento tenha se modificado depois que passou a aceitar a morte como uma idéia próxima, assim como os personagens das histórias que escutava toda manhã.


- Benjamim, isso é horrível. Eu jamais escreveria histórias com a intenção de estimular o desejo de morte em alguém.


- Nem por uma boa herança?


- Muito menos. – Amélia chorava copiosamente.


- Então talvez para se ver livre de um encargo, de uma mulher velha que só dava trabalho.


- Benjamim, por favor. – disse o Dr. Romeu, severamente. – Respeite os sentimentos de Dona Amélia.


- E quanto ao senhor, doutor Romeu, acho que está na hora de contar a todos sobre suas visitas noturnas.


- Não sei do que está falando. – ele afirmou nervosamente.


- Ah, sabe sim. Sabe também que está adolescentemente apaixonado por Carmem, embora ela seja uma pobre moça entrevada na cama. Apesar disso, viu-se encantado e tem vindo à casa dela, escalando o muro e entrando pela janela de seu quarto.


- Isso é um absurdo! – exclamou o médico.


- O senhor deixou um rastro na parede exterior da casa, doutor. Um rastro de sapato masculino. Lamento informar que o senhor é o único homem que freqüenta essa residência. Além do mais, o senhor perdeu sua lente de contato no parapeito da janela, certamente enquanto entrava por ela, na noite anterior. Mas não tinha se dado conta da perda, ou não a encontrou. O fato é que seus olhos continuam um de cada cor.


O garotinho ao meu lado riu. Eu me virei pra ele e sussurrei:


- Você me ajudou com aquela história doida de sua avó ter morrido de tédio.


- Acha que serei um detetive bom, feito você?


- Será um pouco melhor, seu fedelho. Só um pouco.


quarta-feira, 24 de junho de 2009

Benjamim III


- Você vai ficar me seguindo como se fosse o Watson e eu, Sherlock? – esbravejei, me voltando bruscamente para Amélia. Ela levou a mão ao peito, assustada.


- Tudo bem. Se precisar de mim, estarei na sala. – ela disse e voltou os passos, apressada.


Tomei o caminho das portas dos fundos e cheguei a um jardim pequeno, mas bem cuidado. Dali, pude ver as janelas do quarto da falecida. Andando mais à frente, vi a janela do quarto de Carmem, a filha que vivia entrevada na cama. Sorri orgulhoso quando avistei alguns rastros na parede. Pegadas sutis, mas perceptíveis, que davam para a janela do quarto da adoentada.


- Benjamim. – alguém chamou e eu me voltei, distraído. Era uma moça de vinte e poucos anos com um sorriso belo, mas nervoso. Comecei a acreditar que a minha presença naquela casa deixava as pessoas muito embaraçadas.


- Pois não. – respondi ao chamado e ela manteve-se em silêncio. – Ia me dizer algo?


- Dona Amélia está perguntando se o senhor precisa de algo. – ela anunciou, enfim, como se estivesse saindo de um transe nervoso.


- Por Deus, que mulher impertinente. Volte lá e diga a ela pra ficar trancada dentro do quarto, sim?


A moça ia voltando por onde veio, mas eu a detive.


- Você é uma das enfermeiras?


- Sim. – ela respondeu, sem me olhar.


- E tem nome?


- Oh, claro, me desculpe. Meu nome é Rosemeire. Rose. – e ela riu, desconsertada.


- Rose, está vendo aquela sujeira na parede? – e apontei, mostrando poucos centímetros abaixo da janela do quarto de Carmem.


- Parece uma marca de sapato.


- Uau, vejo que você é uma moça muito esperta. – depois, largando o sarcasmo de lado, perguntei: - Nunca tinha notado aquilo, não é?


- Posso garantir que não. Dona Amélia faz o possível para manter a casa sempre muito limpa; é obcecada por limpeza. Tenho certeza que é algo recente. Ela não deve ter percebido e nem dado ordens para que fosse removido dali.


- Uma pessoa obcecada por limpezas. – eu repeti em voz alta. – O que mais você me diz sobre Amélia, Rose? Que tipo de pessoa ela é?


- É uma pessoa adorável. Gostava muito da mãe, sabe? Todos os dias ela a trazia para este jardim e lia algumas histórias durante toda a manhã. Dona Ieda sempre gostou muito de ler, ao que fiquei sabendo. Na impossibilidade, Amélia fazia a leitura para a mãe.


- E você ficava por perto, nesses momentos? Via a relação das duas?


- Elas se davam bem. Dona Ieda, nos últimos tempos, andava sem paciência para muita coisa. Reclamava e brigava com todas as enfermeiras. Estava se tornando uma pessoa difícil, se é que me entende.


- Você imagina quem desejaria a morte da pobre senhora?


A moça persignou-se.


- Não imagino quem poderia desejar tamanho mal. – ela afirmou convicta.


- Alguém aumentou a dosagem do remédio de Dona Ieda, como deve saber. Os remédios são acessíveis a todos, nessa casa?


- Nós guardávamos os remédios em uma caixa, dentro da despensa. E todos sabiam disso. – ela informou.


- Todos os remédios eram guardados nessa caixa, sem exceção? – perguntei, enfaticamente.


Ela pensou.


- Mantínhamos um vidro de analgésicos no criado mudo, ao lado da cama de Dona Ieda. Ela costumava sentir dores à noite e deixávamos ao seu alcance para que ela mesma pudesse tomar os comprimidos. Sempre foi assim.


- Analgésicos... – murmurei.


- O senhor disse algo?


- Não. Sim, na verdade, você pode me conseguir um telefone, Rose? Preciso fazer uma ligação.


Ela se retirou prontamente e eu fiquei em aguardo, no mesmo lugar. Lancei meus olhos para o alto, na direção da pegada que manchava a parede. Logo à cima, o Dr. Romeu apontou na janela. Eu acenei. Ele sorriu nervoso e voltou-se para dentro imediatamente.


... CONTINUA

acompanhe o desfecho da trama no dia 30/06


sábado, 20 de junho de 2009

Benjamim II


Assim que Amélia saiu do meu escritório, pedi que Andréia, minha secretária, providenciasse um táxi. Eu seguiria Amélia até sua casa sem que ela soubesse. Não queria que ela esperasse por mim. Encontros esperados se tornam artificiais. Eu precisava das surpresas, das reações.


Pedi ao taxista que seguisse o veículo de Amélia e assim ele fez. Chegamos à residência onde havia acontecido o crime. Era uma casa singela, bem cuidada e pequena. Paguei o motorista e aguardei alguns minutos antes de tocar o interfone e chamar por Amélia que havia acabado de entrar.


Quem veio me receber no portão foi a própria, com um semblante de surpresa indescritível.


- Você não esperava por mim, não é? – perguntei.


- Você disse que viria amanhã. – ela choramingou como uma criança mimada.


- Eu menti. – disse e entrei pelo portão, adentrando no jardim principal da residência. Dei alguns passos e já estava dentro da casa. – Tem alguém aqui, com você?


- Sim, eu...


- Onde estão os policiais? – perguntei e ela gaguejou em resposta. – Você ainda não acionou a polícia?


- Não, eu...


- Muito bem. Não sei o que a senhora está querendo esconder, Dona Amélia. Seja o que for, descobrirei agora. Com licença. – disse e segui por um corredor à frente.


- Eu não estou escondendo nada! O senhor está muito enganado. – era Amélia, seguindo os meus passos.


- Qual era o quarto da sua mãe? – indaguei ao me voltar para ela.


- Aquele. – ela apontou e eu entrei. O quarto estava imerso em um odor acre, algo que misturava remédios, urina e cheiro de gente velha.


- Está limpo.


- Ninguém tocou em nada, eu posso garantir. – ela afirmou num tom de voz duvidoso.


- Não pode afirmar nada. Você não esteve em casa o dia todo. O quarto não estava trancado. Qualquer um poderia ter entrado aqui. – me aproximei da cabeceira da cama e puxei uma gaveta do criado-mudo posto ao lado. – Um vidro de remédio.


- Esse é um dos vários que ela tomava.


- Está vazio. – observei.


- E o que tem?


- Nada. – larguei o vidro na gaveta e a fechei. – Aqui não há nada interessante. Vamos para o outro quarto.


Voltamos ao corredor. Dessa vez, escolhi a porta da frente e abri.


- É o quarto da Carmem, minha irmã. Ela deve estar dormindo.


Lá dentro, estava o médico sentado na cama da paciente. Ao ouvir o barulho da porta se abrindo, deu um pulo, desconsertado.


- Esse é o Dr. Romeu. E aquela, na cama, é a Carmem. – disse Amélia que se mantinha logo atrás de mim. – Doutor, esse é o detetive Benjamim.


Troquei um aperto de mão com o médico e fitei seus olhos, por alguns instantes.


- O senhor é uma pessoa rara, doutor. – eu disse.


- Por que diz isso?


- Não devem ser muitas pessoas que têm a cor de um olho diferente da do outro.


Eu esperava uma explicação científica ou qualquer coisa plausível que me convencesse daquela anomalia, mas o doutor permaneceu calado. Apenas riu, simpaticamente. Ou idiotamente. Só então percebi Carmem, a irmã de Amélia. Era uma moça estática, paralisada na cama, sem se comunicar com o mundo. Tive pena.


- Onde estão seus instrumentos de trabalho, doutor? – perguntei.


- Não os trouxe. Exames de rotina, apenas. – ele disse, enfim.


- O senhor costuma se assentar na cama dos pacientes?


- Ora, eu estava apenas conversando com a Carmem. Sentei-me para ficar de frente para ela. – ele estava nervoso, como quem esconde um segredo.


- Certamente o senhor sabe da terrível morte da matriarca.


- Sim. Pobre Dona Ieda. Uma perda lastimável.


- Acredita que alguém possa ter exagerado na dose de algum remédio, provocando sua morte?


- É o que tudo indica. A enfermeira averiguou os medicamentos e observou que um deles estava com o frasco vazio, embora no dia anterior estivesse cheio.


- Acha que uma das enfermeiras pode ter feito isso?


- Eu não sei.


- O senhor matou sua paciente, doutor? – lancei a pergunta. Eu não queria resposta, queria reação. Uma simples reação e tudo viria à tona.


- Não, Benjamim, eu não matei Dona Ieda. – ele foi seguro, como não foi em nenhuma outra resposta.


Caminhei pelo quarto que não era muito grande. Parei de frente para a janela. Um ar fresco adentrava por ali. Passei a mão no parapeito e toquei em algo rígido e pequeno, muito pequeno. Encostei o objeto ao dedo e aproximei-o dos meus olhos. Era uma lente de contato que havia sido perdida por alguém. E seja quem fosse, a havia perdido há mais de horas, visto que estava enrijecida.


- A que horas o senhor chegou nesta casa hoje? – perguntei me dirigindo ao médico.


- Há pouco mais de vinte minutos.


- Esteve aqui ontem?


- Não, não estive. – ele afirmou.


Amélia se aproximou, notando minha atenção demasiada sobre a lente.


- O que você tem nas mãos, Benjamim?


- Nada, só um monte de poeira. Onde é a saída para os fundos? – disse e me retirei do cômodo pensando na mentira que o Doutor Romeu acabara de me contar.


... CONTINUA


terça-feira, 16 de junho de 2009

Benjamim


Meu escritório ficava numa rua pouco movimentada. Ponto estratégico: eu não queria trabalhar muito. Na verdade, eu não queria trabalhar muito em investigações do tipo “acho que meu marido está me traindo” ou “suspeito que minha filha esteja envolvida em drogas”. Infelizmente, era o que mais aparecia. Por precaução, contratei a Andréia, que não servia pra muita coisa. Atendia os telefones e dispensava os clientes que me procuravam pra casos banais.


Num desses dias de sorte, Andréia bateu na minha sala e, abrindo a porta, só com a cabeça pra dentro do meu ambiente, sussurrou:


- Homicídio!


Tirei meus pés de cima da mesa, ajeitei a gravata e fiquei de pé pra receber a cliente que, em dois minutos, estava de frente pra mim. Era Amélia, o seu nome.


- Você é o detetive Benjamim? – ela me fitou de alto a baixo.


- Algum problema? Só porque tenho 1,60m e uso piercing no mamilo direito?


- Você usa piercing no mamilo? – ela não escondeu seu preconceito.


- Quer ver?


- Não, obrigada.


Pedi que a cliente se sentasse. Não parecia abatida nem transtornada. Equilibrada, eu diria. Sentei atrás da minha mesa, de frente pra ela.


- A senhora veio até a mim por algum motivo, imagino. – iniciei a conversa.


- Minha mãe morreu hoje. A enfermeira a encontrou morta na hora de dar o café da manhã.


- Infarto?!


- Assassinato. – ela disse e eu fingi cara de espanto. – Aumentaram a dosagem do remédio.


- A enfermeira?


- Como posso saber? Estou aqui pedindo que descubra.


- Temos duas suspeitas. – declarei escrevendo no meu bloco de anotações.


- Duas? – ela parecia surpresa.


- Sim. A enfermeira. E você.


Ela riu aparentando certo nervosismo.


- Só me faltava essa. Por que eu mataria minha mãe?


- Já ouviu falar em Suzana Richthofen? – devolvi a pergunta.


- Isso é uma ofensa, detetive.


- Não me chame de detetive, isso aqui não é um romance policial.


- Então o senhor pode me ajudar? Eu não quero ter que esperar a ação da polícia. Posso estar correndo risco.


- A sua mãe possui quantos herdeiros?


- Somos duas filhas.


- Moravam juntas, vocês três?


- Sim.


- Mais alguém que freqüentava a casa?


- Tenho um filho. Além dele, só o médico e as enfermeiras.


- Mais de uma enfermeira?


- Sim. Minha irmã precisa de cuidados, sofreu um acidente no passado. Temos três enfermeiras para atender as necessidades dela e de minha mãe.


- Isso reduz muito as chances de sua irmã ter cometido o assassinato.


- É verdade.


Houve um silêncio.


- A senhora matou a sua mãe, Dona Amélia?


Ela se levantou afoita, as mãos se agitavam de forma desmedida.


- Eu não acredito que o senhor esteja suspeitando de mim. Eu não seria burra ao ponto de contratar um detetive para me descobrir como autora de um crime.


- Isso existe muito nos livros da Agatha Christie, acredite.


- O senhor é um louco, isso sim.


- Por que está tão nervosa, então?


- Porque eu acabo de perder minha mãe. Isso soa convincente pra você?


- Não muito.


- Pra mim chega. Vou embora.


- Amanhã estarei na sua casa para iniciar as investigações.


Ela abriu a porta e fez que ia sair.


- A propósito, era mentira. – eu disse.


- Oi?! – ela estava confusa. E nervosa.


- Eu não uso piercing no mamilo.


... CONTINUA


segunda-feira, 8 de junho de 2009

O conto que esqueci


Ela fumava um cigarro atrás do outro. Essa é a imagem que me vem à mente. Tia Sandra. Usava sempre saias e o cabelo curto, mas não muito. Ficava sempre na porta da biblioteca. Porque dentro não podia fumar.


Éramos amigos. Daqueles que mal se falam, mas que freqüentam o mesmo lugar. De tanto eu ir à biblioteca, nos tornamos comuns um ao outro. Sim, comuns. Era como se ela já soubesse quando eu iria aparecer. Sempre nos intervalos das aulas e no horário da educação física, que eu matava.


Teve um dia. Chovia. Fui à biblioteca e lá estava ela, fumando. Cumprimentei com os olhos só. Ela respondeu com suas fumaças. Sentei à mesa. Ela chegou perto, sem o cigarro.


- Tenho um conto interessante pra você ler. – e colocou um livro grande. Bem grande, à minha frente, com a página aberta no lugar onde estava o conto.


Eu agradeci sem dizer. Sempre fui assim mesmo: mudo de palavras. Dentro, um mundo de palavras. E li o conto. Era bonito. Não me lembro mais da história, sei que era bonita. Daquelas que a gente lê, sorri ao final e guarda em qualquer lugar do peito. Pensei que aquele conto poderia ter sido escrito por ela. Por Tia Sandra. Mas não, havia o nome do autor ali em cima. E eu me desapontei um pouco. Só um pouco.


- Gostou? – ela perguntou quando me viu fechando o livro.


Eu disse que sim, que tinha achado legal. Sempre fui assim, também: uso expressões pobres que não expressam nem um tanto do que eu realmente sinto. Então ela sorriu, sei lá por que. Simpatia, talvez. Eu fiquei na mesa, observando-a de longe. Ela parecia tão atenta a tudo, embora carregasse um certo descuido no jeito de andar e estranhas maneiras que lhe tiravam um pouco dessa coisa humana que temos.


Perguntei se eu poderia levar o livro pra casa. Queria ler de novo. Ela respondeu que aquele livro não podia. E não deu motivos. Eu aceitei a resposta e me despedi. Escutei um ruído que talvez fosse sua forma de despedida.


Nos dias seguintes, eu passei a guardar uma ansiedade. Como se eu esperasse ela vir com outro conto pra eu ler. Não ocorreu. Talvez ela quisesse compartilhar só aquele. Talvez nunca mais ela tivesse lido algo que valesse a pena mostrar a alguém. Talvez ela realmente tivesse escrito aquele conto, e mais nenhum.


Ela fumava um cigarro atrás do outro. Tia Sandra das saias, do cabelo curto. Do conto no dia de chuva. Conto bonito que esqueci.