sexta-feira, 25 de agosto de 2017

1999

Em 1999 a gente subiu aquela rua da encruzilhada
Morrendo de medo das almas penadas
E do homem da perna torta que assobiava boleros

Meu avô contava histórias de assombração
E nossa diversão era passar a madrugada acordados
Esperando a luz da chapada aparecer na esquina

A gente não sabia que o mundo iria acabar
Na verdade, não queríamos que ele acabasse
De alma, éramos sempre poetinhas que rabiscavam muros
E faziam serestas a noite inteira

Em 1999 a cidade entardecia va ga ro sa me nte
E mal sabíamos que o amor verdadeiro

Era um coração desenhado em um vidro embaçado

terça-feira, 25 de abril de 2017

Vagão

À luz do meio-dia, um vagão
Que vagava no meio-fio
Meio vivo, meio morto
O andarilho
Que reproduz a opulência da flor
E a luz que lhe atravessa o rosto
É a mesma que pisca dentro do trovão
Com seus anéis nos dedos
O vagão conta seus mil réis
É rico, guardava dinheiro debaixo do colchão
Meio vivo, meio morto
Trabalhara a vida inteira para ser feliz
Sem mal perceber que ela sempre estivera ali
Debaixo do pessegueiro
Enquanto as mariposas sobrevoavam as andorinhas

Despropositadamente  

sábado, 11 de março de 2017

Sabiá

Sabiá parou na marquise
Estufou o peito, aprumou-se
Sacudiu as penas, abriu as asas
Ciscou, bicou o vento
Me encarou lá do alto
Feito um deus
Sabiá me benzeu
Rezou um pai-nosso
E me inspirou a fé
“A fé vem pelo ouvir”
Sabiá cantou pra mim
E a canção dizia que o mau
Ah, o mau teria seu fim
Que o olhar do coisa-ruim
Jamais se fixaria em minha nuca
Sabiá fez um barulhinho
Quase um gemidinho
E, nessa hora, parece até que delirei
Porque sei que ele disse: “vai ficar tudo bem”

E foi-se embora pro seu Panteão. 

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

O menino que sou eu

No olho do furacão
O menino quis ser valente
Empenhou o seu sabre de luz
Bateu continência
Falou que ia à lua com seu chapéu de cowboy
O menino tem sonhos inefáveis
Porque se aninha na cama da mãe
O menino não se frustra
Ele acredita que o mundo é todo dele
Que os céus concederão licença
Para ele pilotar a sua astronave
Que não há monstro que resista
A sua espada verde
O menino acredita mesmo
Que um picolé de chocolate
É o suficiente

Para acabar com todos os males do mundo

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Talvez

João não se dá conta da vida que leva.
Compra o pão de manhã, passa o café.
Lê o jornal, dirige até o trabalho.
Deseja o boteco a semana toda.
Bebe a cerveja no sábado.
Beija a esposa, acalenta os filhos.
João não quer ser artista.
Nem quer ser brilhante.
Quer ter uma vida como qualquer outra.
A verdade, a verdade mesmo.
É que se João visse aquelas azaleias.
Brotando no seu jardim.
E chamando a atenção das abelhas e mariposas.
Talvez.

Talvez João fizesse um poema.