sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O caso do João

Da série: quem vê cara não vê coração.


Durante a minha graduação em Direito, fiz um estágio de conciliação no Tribunal de Justiça. Antes de chamar as partes de um determinado processo para compor a mesa, notei, pela lista que tinha em mãos, que os advogados e seus clientes eram todos homens. Gritei os nomes da lista no corredor e três homens e uma mulher entraram na minha sala. Acreditei que a mulher fosse alguma acompanhante ou mesmo estagiária de um dos advogados. Sendo assim, como era de praxe, aguardei alguns minutos para que o quarto nome da lista aparecesse. Assistindo a ansiedade dos que já estavam na mesa, salientei que era preciso aguardar o João. Depois de alguns risos dos advogados, a mulher voltou-se para mim e disse em grossa voz:

- Eu sou o João.


terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Sessenta e sete vezes


O telefone tocou sessenta e sete vezes. Mas o barulho me acompanhou ao longo de todo o dia. Atrás do telefone, a alguns quilômetros daqui, eu imaginava você, frenética, apertando o recall com o indicador direito; o indicador esquerdo na boca, sendo mordiscado. Eu não pude te atender. Não poderia. Você me fez vulnerável demais na noite anterior, enquanto preenchíamos aquelas taças de vinho com lembranças de um passado recente. Eu te amei em todos os toques do telefone; sessenta e sete vezes te amei. Meu coração estremecia ao pensar em você, frágil, querendo fazer de mim cachecol no pescoço. Senti-me inútil ao tentar fazer as pazes com a solidão. O amor não deixa a gente só, porque existe sempre a sombra da outra pessoa que nos acompanha. Não se assuste. Eu falo de amor, mas o que sinto não merece esse nome. Não merece nome algum. O que me preenche não é sentimento, saiba. É você, inteirinha.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Cego


Essa sensação estranha de ter vivido algo que nunca vivi. Essa mania de palpitar na vida alheia, sugerindo algo que eu não faria, que eu não seria ou não gostaria de ser. Sentimentos confusos de quem parece já ter ido ao futuro e voltado com um milhão de problemas. Essa vontade de problematizar todos os caminhos, todas as chances, de deixar toda porta entreaberta, caso queira voltar depois. Deixar tudo reticente, inacabado. Não brigar, por conveniência. Não amar, por medo. Não cair, pela consequência da queda. Não arriscar, por apego ao certo. Não viver profundamente, intensamente, milimetricamente. Esperdiçando as emoções, os tempos, as fases, as estações. Essa mania de ser humano demais, estável demais, de ter que dar conta, de não desabar. Ser e ter. Comprar e dar valor. Respeitar sem limites, sem até mesmo auto-respeitar-me. Essa sensação de tudo ser muito escuro. E de eu ter que ser o cego que tateia. Em busca de estrelas distraídas.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Ritmo Desnorteado


- É porque você acorda todo dia às sete da manhã e me arranca os lençóis sem aquela suavidade que se precisa para não levar um susto, me bota doida pra arrumar seu café, repetindo mil quatrocentos e cinquenta e quatro vezes que está atrasado e que a água do chuveiro anda gelada demais, que eu preciso ir ao salão fazer as unhas, mas você esquece que eu trabalho para uma empresa capitalista que suga todos os meus horários possíveis e me paga a hora extra que garante nossa viagem de fim de ano. Lá do corredor, você vem falando em voz alta que nosso jantar do sábado será cancelado porque você marcou a peteca com os colegas de trabalho e eu deixo seu pão queimar na torradeira porque odeio quando você desmarca as coisas em cima da hora, mas você não me deixa falar das minhas bravezas e já vai contando dos sonhos esquisitos que teve durante a noite, emendando a pergunta frequente: se o ronco tem diminuído. Respondo que não, que você nunca parou de roncar e que, para piorar, você vem adquirindo uma nova mania noturna: empurrar os pés gelados pra cima de mim, me fazendo acordar com o coração aos pulos acreditando piamente estar sendo arrastada por uma avalanche e, depois, caindo dentro de um cubo gigante de gelo. Você come seu pão em silêncio e diz que o almoço vai ser corrido, as crianças precisam estar prontas para que não haja atraso algum, frisa novamente que minhas unhas estão feias e que meu cabelo até que anda legal. Odeio seu sarcasmo matinal e sua insistência em querer me ver linda e bronzeada em cinco minutos, esquecendo dos meus caprichos e da minha demora na maquiagem. Eu o chamo de insensível e você derrama a xícara de café, sempre derrama. Algumas gotas caem na sua camisa branca e você vai trocá-la, esbravejando. Então você segue pelos corredores com pés pesados de quem dança um samba doido e aparece de novo ajeitando a gravata que não combina em nada com a nova camisa. Eu lhe digo e você me pede pra escolher uma melhor. Eu escolho e você xinga, dizendo que eu só gosto daquela, o que é mentira porque todas as suas camisas foi eu que comprei, mas você gosta de me provocar dizendo que algumas foram sua mãe e eu repito: ela não teria tanto bom gosto. Você se troca com cara de quem quer ir trabalhar é com a camisa manchada de café mesmo, que se dane a estética e eu o atraso, sussurrando que você fica ainda mais bonito com a listrada de marrom. Sorrimos juntos e eu o acompanho até a garagem onde nos despedimos num beijo apressado e numa troca de carinhos suados que se misturam com a saudade que já vai apontando no peito. Eu aceno, como todas as vezes, e espero o portão se fechar entre nós dois. Retorno pra cozinha e ponho sua camisa suja na máquina, lavo as louças do café, ligo pro restaurante cancelando a reserva do final de semana, marco horário no salão pra fazer as unhas e penteio os cabelos. Acordo as crianças e peço pra elas ficarem prontas ao meio-dia, me arrumo e saio pro trabalho. Por dentro, estou agitada. Ninguém como você pra me deixar assim. Pronto, acabei. Vai dizer alguma coisa?


- Casa comigo de novo?

[Julho de 2009]