segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Buraco


- Lembra que, no começo, você fazia de tudo pra me dar uma surra?


- Ô se lembro. Cara, você vivia em cima da Norminha, minha paixão da quinta série. Eu queria mesmo era que você se danasse.


- Azar o nosso ela não ter escolhido nenhum de nós.


- Não sei. Norminha era muito complicada. Sabe que ela já teve três casamentos?


- Sim, muito complicada. Vou descer.


- Mais uma real, seu pilantra?


- Sorte no jogo implica em azar no amor...


- Você nunca teve sorte em nenhum dos dois.


- Eu tive a Norminha. Você não.


- Isso não tem graça.


- Eu sei.


- Teve graça você pedindo a professora de física em namoro.


- Eu fui o único que tive coragem. Quem não gostaria de ter feito o que eu fiz?


- Quem seria tão louco a tal ponto?


- Ela achou bonitinho.


- Ela disse isso?


- Sim. Disse “Você é tão bonitinho”.


- E você não fez nada?


- Eu não. Ela disse que já tinha namorado.


- Você é um idiota.


- Um idiota. E acabo de bater.


- Putz. Fiquei com o morto todo na mão.


- Cara, aquele seu vizinho ainda é vivo?


- Quem? O Seu Antônio?


- Aquele, dono dos periquitos. A gente pulava o muro da sua casa e caía no quintal dele. Em dois minutos a gente abria todas as gaiolas.


- Pois eu acho que fazíamos muito bem.


- Também acho. Mas na época era só travessura.


- Essas ideias eram sempre suas.


- As boas ideias, você quer dizer. Tudo o que envolvia coisa errada provinha de você.


- Não sou tão certo disso. Deu diferença de 200 pontos. Mais uma partida?


- Só se você confessar.


- O quê?


- Que ainda pensa na Norminha.


- Pois eu vou confessar é outra coisa.


- Diga.


- Tive a Norminha primeiro que você.


- Mentira.


- Verdade.


- Ela era linda, não era?


- Eu prefiro a professora. E você, dê as cartas.


- Preciso ir ao banheiro, antes.


- Pega mais amendoim, no armário.


- Pego é você pela orelha, mais tarde.


- Ih, ficou com ciúmes.


- Bem capaz...


- Sempre teve.


- Você tá merecendo uma surra agora.


- Quem sabe você não me ajuda a satisfazer aquela minha velha vontade da quinta série de te quebrar ao meio?


- Só se você sair vivo.


- Ok. Vou dando o morto. Anda logo no banheiro.



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Dia 23 de janeiro o blog completou dois anos de história! Agradeço a todos

os que participaram, comigo, desse mundo de sofismas!


terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Entardecer


Ao cair da tarde, se descobre que não importa quanta coisa se tem pra fazer, o dia vai dando seu adeus. E que independe se ainda é preciso salvar o mundo, o sol também tem direito a descanso e vai perdendo as forças, vestindo o céu de cores pálidas, num crepúsculo que prenuncia a hora das estrelas.


Ao entardecer, percebe-se que as janelas dos prédios vão se abrindo pro vento da noite, num convite esperançoso para que a lua adentre e se faça pintura na parede da sala. A vontade de quem debruça no parapeito, é entender o mistério que ronda toda essa façanha natural que nada mais é do que metáfora de nós mesmos.


A silhueta do satélite é como pingente nas nuvens, alertando, como um sino impertinente, que é hora de o corpo pedir repouso. Em réplica, os pés se arrastam na tentativa de ludibriar, querendo prolongar mais dois minutos de sóis. Os olhos, ao revés, vão procurando qualquer canto para poder estender as pernas, jogar os braços, fazendo deles ninho para a cabeça que já pende enfadada.


Os carros vão fazendo fila no asfalto e as pessoas, irritadas, não entendem por que a noite tem tanta pressa. As crianças vendem bala no sinal, denunciando a escuridão de uma vida que provoca um incômodo incandescente. Os grilos, tímidos à luz do dia, montam sua sinfonia, como se estivessem elegendo a estrela mais bonita. Os riscos rosados no céu lembram qualquer tela abstrata, provando que existem dedos maiores que inspiram os homens.


Ao cair da tarde, o mundo vai silenciando-se do barulho ensurdecedor que vem do ego. Os ânimos se fazem mais mansos e o sono toma as pálpebras, pedindo calma pro coração acelerado, sempre tão cheio de problemas. A mãe vem com a manta cobrir os pés dos filhos; e a família se encontra para mais uma oportunidade de se enxergarem, enfim. Os sonhos do dia seguinte vão se aproximando da mente que não para, sempre fazendo planos.


O entardecer é o jeito que Deus tem pra dizer que precisamos de ordem por dentro, quando o caos impera na luz ofuscante do dia.


quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Ruas


Às vezes as ruas ficam desertas dentro da gente. É como se todos estivessem escondidos dentro de suas casas, com medo de um monstro intergaláctico de seis braços e fumaças nas ventas. O vento corta as esquinas, numa pressa de quem quer chegar antes de si mesmo. E o silêncio. O silêncio é o sinal do vazio. Ausência das britadeiras infernais, das senhorinhas fofocando no portão, das crianças soltando pipa e xingando palavrão, do moço do pastel que grita sempre “só um real, só um real”. A lembrança disso tudo faz nascer uma comichão, uma inquietude e insegurança. A rua cheia agora é recordação, foto de álbum, estrofe de trovadores, saudade.


Dentro da gente, as ruas vão sossegando como quando chega a noite. Uma luz apaga na casa de lá. As velas são assopradas na casa daqui. Um filete de esperança trepida e perde as forças, restam cinzas no chão. A dor vem é da incerteza de jamais ter outra vez o sol nascendo e, junto dele, as mães puxando os filhos para a escola, os ônibus zunindo, as bicicletas subindo nas calçadas e os carteiros correndo dos cachorros. A dor vem dessa beleza que se deposita no passado, na crença de que as coisas eram mais bonitas, antes da noite. O agora parece um breu incansável e a necessidade de se caminhar apalpando, querendo qualquer cheiro daquilo que era bom.


Às vezes as ruas ficam desertas dentro da gente. E somos os primeiros a entrar em casa, abandonar o sereno e dormir.



sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Era peixe no cardápio


Ela sabia do meu jeito tímido e das minhas histórias de amor mal-sucedidas. No dia dos namorados, éramos dois solteiros largados em uma festa que não nos cabia. Conversamos, então. Falamos de futuro, casamento, filhos. Falamos que, quando estivéssemos casados – não eu e ela, mas cada um com seu respectivo cônjuge – iríamos nos encontrar em Veneza para um passeio em gôndolas. Me perguntei por que um de nós não sugeriu que fossemos casados, um com o outro. Timidez, acredito. Ela também tinha suas reservas e tinha um jeito bonito de esconder o sentimento atrás dos cabelos.


Eu me apaixonei, verdade. Não foi nada muito intenso, como já me ocorreu algumas vezes. Era uma paixão contida, uma admiração secreta, um desejo incômodo de carregá-las nos braços e suspendê-la no ar por três ou quatro segundos. Tenho pra mim que ela percebeu meus olhos em algum momento. Eu a tinha, dentro deles.

Certo dia, era peixe no cardápio do restaurante. Não comíamos peixe, pra minha sorte. Saímos juntos, então, em busca de outros cardápios, outros restaurantes. Sentamos em uma mesa de dois lugares. Eu de frente pra ela, engolindo aquele sorriso imenso que pendia dos seus lábios, como uma estrela gigante. Então ela me falou dos seus amores, das suas desilusões. No meu íntimo, eu queria muito propô-la um romance sério com requintes de realidade. Puxei-a com meu olhar-zoom e ela se pôs inteira diante de mim, sufocada pelas minhas palavras mudas que saíam todas de uma vez só, pela pestana.

Ela me convidou para subir ao apartamento a fim de terminarmos a conversa. Confesso que me assustei. Nunca havia sido convidado por uma mulher para continuar uma conversa, no sofá. Mas não havia sofá. Sua sala era um colchão jogado ao assoalho. Foi onde sentamos e ela deu continuidade às suas histórias que mais pareciam romance de banca de jornal. Duvido que ela não tivesse algum plano subtendido por trás daquele convite inusitado. Duvido que, se eu tivesse lhe estendido a mão, ela não segurasse com força e me dissesse alguma coisa agradável que eu sempre quisera ouvir. Aliás, suas mãos pareciam macias e, segurá-las, certamente me traria um conforto eterno e um perfume que impregnaria todos os meus cafés da manhã.

Alguém bateu à porta, interrompendo nossa conversa. Ela foi abrir e abraçou uma amiga que me olhou com olhos de perguntas e sugestões de respostas nada agradáveis. Terminamos ali. Me despedi e prometi, em sussurro, que lhe escreveria uma carta. Carta essa que nunca tive a coragem de rabiscar, embora conhecesse todas as palavras que caberiam nela.

Depois disso, ela se mudou de cidade. Encontrei-a algum tempo depois, numa noite de chuva. Ela entrou molhada na lanchonete de onde eu saía e me abraçou surpresa, com toda a saudade que poderia existir. Seu sorriso não mentia: ela estava feliz em me ver. Trocamos algumas palavras de afeto e ela me apresentou o namorado. Nos despedimos com a certeza de que não haveria novo encontro, não como aquele em sua sala, no colchão, com todos aqueles sinais implícitos que nos rodeavam.

Abri meu guarda-chuva e lancei um sorriso. Ela sorriu de volta.