quarta-feira, 28 de maio de 2008

Trecho de um livro nunca escrito


Decorei um pedaço de céu para lhe dar:

Um fundo azul-claro com tonalidades de amarelo, pronto para entardecer. Algumas nuvens brancas, muito brancas se dissolvendo e se juntando, formando desenhos que lembram nossos sonhos. Longe, lá longe... alguns últimos raios de sol se perdendo e pintando de dourado parte do azul. O contorno da lua se insinua ainda tímida, mas empalidece o crepúsculo dando-lhe um ar de tristeza bonita, inacabada. Embaixo desse céu, uma menina de cabelos semi-chacheados, dona de um sorriso incontido. Ela nem imagina, mas alguém, um dia, lhe daria esse céu de presente com a desculpa de não ter encontrado nada melhor.

domingo, 25 de maio de 2008

Garçonete em Paris


Lá está ela com seus sóis, um em cada olho. Não consigo ajustar muito bem o meu binóculo, mas percebo nela um semblante triste. Triste até demais. Ainda assim, ela mantém qualquer resquício de ternura que se espalha pelos tapetes da sala e se esparrama no sofá de couro marrom.

Ela dança ao som de uma música imaginária. Deve ser louca, deve ter perdido o namorado. Devo ir consolá-la? Posso chamá-la pra minha casa, oferecer um drinque, um sorriso, um abraço sem segundas intenções. Mas sua tristeza me parece tão pesada que começo a escorregar pra debaixo da minha janela e perco o equilíbrio. Levanto e ela não está mais na sala e nem coreografa sua dança.

O cheiro dela fica nas minhas entranhas. Meus cômodos se enchem da presença dela e tenho vontade de saber de qual matéria ela é feita. Talvez seja feita da mesma matéria dos sonhos. E ela tem tanto jeito de garçonete! Aposto que serve os clientes em um restaurante de luxo. Sim, porque ela tem ar de dama francesa. Os clientes a secam com os olhos. Ela é bonita, tem o corpo da Brigitte Bardot nos anos 60. E tudo isso ela ignora porque gostaria que vissem o quanto ela sabe sobre Bolsa de Valores. É estudiosa e só não prestou vestibular porque não tinha dinheiro pra pagar a faculdade. Mas ela gosta de ler os jornais e comprar livros da Agatha Christie. É uma moça misteriosa e poderia, muito bem, ter matado dois ou três amantes, planejando um crime perfeito.

Ela aparece de novo. Ajusto o binóculo e flagro o sorriso insistente no rosto dela. Algo sobrenatural parece ocorrer dentro dela. Ela começa a rir como se ouvisse uma piada. Suas gargalhadas a fazem dobrar sobre si mesma, apertando a barriga e fazendo um gesto de “pare com isso” com a outra mão. Mas não existe mais ninguém na sala. Deve estar louca. Deve ter se decepcionado consigo mesma.

Por fim, ela se deita no sofá de couro marrom como quem deita na cama de um bordel. Assim ela perde sua pose de dama ou de princesa e me lembro das prostitutas de Paris. Com um suspiro prolongado, ela fecha os olhos e apaga toda a fantasia restante em mim.

O binóculo é deixado em cima do birô e minhas pernas me levam ao meu quarto escuro, lugar de sonhos. Durmo e sonho com ela acariciando meus cabelos. É uma moça bonita essa garçonete.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Nossa música não acaba


“Nossa casinha pequena parece vazia sem o teu balé

Sem teu café requentado, soldado de chumbo não fica de pé.”

O Teatro Mágico – A Bailarina e o Soldado de Chumbo


E até parece mágica quando vejo você vindo requebrando lá do portão. Depois do seu trabalho cansativo, ainda traz no rosto um sorriso que acende todas as estrelas no céu. Entra em casa e, junto com você, um milhão de borboletas azuis. Então eu paro assim meio bobo e fico olhando sua beleza.

“Vem cá, me dá um abraço!” você pede sorrateira.

E eu corro obediente e magnetizado. Você me aperta contra seus seios e seu corpo deixa escapulir aquele perfume secreto que vai alfinetando cada canto meu. Se algum dia duvidei ser possível me embriagar de poesia, hoje já não me resta essa dúvida. A música surge e vem sendo trazida nas asas de uma borboleta. Seus pés começam a girar sutilmente e eu deixo você me levar sem muita escusa.

Greensleeves é o que toca.

“Você sabe que música é essa?” você me pergunta com a voz embargada de um choro contido.

“Sei não.”

“É uma canção folclórica inglesa.”


“Alas my loue, ye do me wrong,

To cast me off discurteously :

And I have loued you so long

Delighting in your companhie.”


O nosso chão parece bolhas gigantes e o nosso teto um céu pintado das cores do crepúsculo. Eu tento ocultar meu medo que você percebe de cara.

“Não tenha medo, nossa música não acaba!”

Diante das suas palavras, deixo meus olhos se fecharem e me solto de seus braços. E vejo-me caindo de um precipício infinito. Sem seu abraço, sem os seus encantos eu não existiria naquele lugar.

E nem parece mágica quando vejo você vindo requebrando lá do portão. Nem parece porque ela já faz parte de mim. Sei cantar o folclore de cor.

sábado, 17 de maio de 2008

A falta que ela me faz



Ei, vem cá. Tá chorando por quê? Senta aqui no meu colo. Onde dói? Ah, é só um machucadinho de nada, vai sarar. Vou soprar. Pronto! Melhorou? Então deixa eu contar-lhe uma história. Quando eu tinha a sua idade... ora, claro que já fui criança. Não parece? Só porque tenho barba e pêlos na perna? Sim, já fui criança tão travessa quanto você. E eu era muito feliz, sabe? Morava em uma rua vazia cheia de vizinhos da minha idade. Brincávamos até o entardecer, até a mãe de alguém aparecer na porta e berrar: “Menino! Vem tomar banho!” e a gente voltava pra casa com o peito estufado de sonhos e quimeras. Tomávamos banho, um leite e íamos dormir com a cabeça num travesseiro de algodão. Nossa festa era pedir doces nas casas das senhoras, subir nas árvores mais altas e tentar agarrar o céu com as mãos. Nossa alegria era correr atrás das meninas chatas para puxar-lhes os cabelos só pra vê-las chorar. Não sabíamos, mas gostávamos delas mesmo quando não entendíamos o que era namorar. Ah, a gente brigava também. Amigos sempre brigam. Mas o ficar-de-mal não durava mais do que três minutos. Logo vinha alguém puxando para a roda de novo e, sem qualquer obstáculo, os sorrisos brotavam rosto a rosto e os amigos faziam as pazes. Era um tempo enfeitado, sabe? Havia confete em todos os cantos e não faltava um canteiro verde, não faltava um motivo para botar as pernas pra cima e se equilibrar sobre os dois braços. E a gente se arrastava na areia, rolava nas gramas, se sujava no barro, achando que era príncipe ou pirata. Tudo tomava forma, uma caixa de papelão virava castelo ou até mesmo foguete para se ir à lua. Vê os seus amigos brincando? Falta você ali. Se ficar aqui chorando, não poderá contar pra ninguém que um dia aprendeu a soltar pipas. Vai lá, ande! Há tanto céu a cima da sua cabeça, pequeno. Vai lá viver sua infância. Porque você não sabe, nem imagina a falta que ela me faz.

domingo, 11 de maio de 2008

A mágica


Lembra quando você me ensinou sobre as estrelas? Eu dizia que era uma bobeira isso de astrologia e que contar estrelas dava verruga. Foi quando você buscou a minha mão e me instigou a olhar pro céu. Lembro bem que fazia frio e você apertava meus dedos ao mesmo tempo em que sorria enternecida com suas amigas piscando em cima de nós. Você me falou das três Marias que compõe o cinturão de Órion. E eu, bobo, não via nem Marias nem Órion.

De repente, como se toda a constelação fosse um carrossel gigante, o céu pôs-se a girar. Você olhou pra mim como quem diz “Viu? Não te falei que mágica existe?” e apertou ainda mais a minha mão. Seu corpo balançava assim meio tímido e eu até escutei essa canção que a embalava. No momento em que você me puxou para mais perto, abracei suas costas e fechei os olhos. Você deve ter falado algumas palavras encantadas e o chão se abriu debaixo dos nossos pés. A queda foi brusca e tive medo de abrir os olhos. Você apenas sussurrou para que eu abrisse minhas asas. E eu ri. Ri da sua piada de mal gosto. E me agarrei ainda mais forte em você.

Ante a minha inércia, você entendeu que meu coração estava fechado pra qualquer fantasia e abriu suas próprias asas. Foi quando senti a tranqüilidade de volta. Abri os olhos e você já pousava no mesmo lugar. Com os pés no chão, você começou a rir da minha cara de espanto e disse que eu nem percebi que sua saia havia ficado presa, por alguns segundos, num carvalho. Então você tirou um espelho da sua bolsa, ajeitou o cabelo e retocou o batom. Achei a maior graça. Você se achando tão esperta e nem se deu conta que descobri seu segredo. Ao retirar o espelho da sua bolsa, vi sua varinha de condão.

Mas isso eu não conto pra ninguém não. Quem acreditaria numa história dessas?

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Vômito


Tanta coisa assim só me confunde. E seus atos parecem me dizer como faca cortante que é preciso que minha alma afunde. Diante dessa vastidão de mar ou lama, perco a calma, embaraço a alma. Alguém pode acender essa luz, por favor? Nem sempre é certo tatear dentro de um corredor obscuro de pensamentos soltos. Talvez você, algum dia, tivesse a intenção de me oferecer seus braços. E percebi que não adianta a minha súplica porque braços por si só não têm vida. Eu precisava do enlace, do abraço.

Meus pés deslizam qualquer superfície um tanto áspera enquanto espero sua réplica. Muni-me de tantas armas, das mais variadas. Do que adianta? Você chegou e mudou o curso de tudo, do todo, do tolo que sou. Diante dos seus gritos ensurdecedores, minhas mãos tremem e minha cabeça se agita. Dos meus gemidos sei, os meus passos admito: todos errados e nus, despidos de qualquer má-intenção.

Se você quiser me tirar esse embrulho do estômago, esteja certo que, antes disso, precisarei vomitar tudo em você. Já engoli tanta coisa que nem sei mais qual parte sou eu, qual parte é você girando dentro de mim, me causando esse reboliço infinito. Minhas orações ficam perdidas no saguão, não têm força pra chegar ao céu. Cansei dos truques, cansei das lágrimas, cansei e sei sobre esse clichê do tempo. Ah, o tempo cura todas as feridas! O rei tempo! Ei! Mas e enquanto isso? Faço o quê? Faço o que com essa dor dilacerante?

Só lhe peço uma coisa: volte alguns passos. Você era tão mais perto de mim quando sorria comigo nos braços. Se você permitir, gostaria de ser aquela criança. Sua criança. E mais nada. Quem sabe assim o tempo passa mais depressa? Quem sabe assim eu nem deseje o tempo passar? Quem sei? Nem sabe.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Tarde Vazia


Jogou-se na cama como quem se lança no mar. Deu braçadas e mergulhou com um pouco de receio daquelas ondas gigantescas. Depois boiou sabe-se lá como. E ficou olhando o céu pela janela aberta. O amontoado de nuvens brancas fez dele poeta quando começou a desenhar imagens e achar frases entre elas. Lembrou-se de Laura. Lembrou-se daquele perfume que ela passava no pescoço só pra ele ficar minutos intermináveis respirando sua pele-alma-sentimento. Lembrou-se da forma como ela prendia o coque em cima da cabeça, parecia uma das deusas que conta Enéias.

Levantou-se da cama querendo se desapegar daqueles pensamentos que insistiam em aparecer quando ele estava só. Foi até a cozinha e encheu uma xícara de café. Depois debruçou-se no parapeito da janela da sala e observou a cidade de cima do seu sétimo andar. Formigas passeavam de carros lá embaixo. Assim, sem ver ninguém, não se dava conta do que parecia ser humano. Era como entrar num estádio de futebol e encontrar pessoas que torcem pra um time ou outro. Mais nada. Tudo parece mais solitário pensando desse jeito. E isso lhe trouxe angústia. Pensou no Ed, seu amigo baiano. Ed tinha vários amigos e muitas garotas. Ed entrava no mundo deles como um verdadeiro desbravador de almas. Era querido e, no meio da multidão, se destacava. Numa festa, as pessoas logo viam o Ed. Só depois viam as mulheres bonitas, reparavam as roupas dos convidados ou cumprimentavam o aniversariante. Ed tinha lá seu brilho e aquela vontade de mundo, de querer sorrir pras pessoas até... sei lá. Alguém estava batendo na porta. Esqueceu o Ed e colocou a xícara de café em cima da mesa. Abriu a porta.

- Os filmes são pra você? – era o entregador da locadora.

- Sim.

- Pode assinar aqui, por favor? – e lhe entregou um papel e uma caneta muito ruim de escrever.

- Tá aqui. – assinou, entregou o papel e a caneta e pegou a sacola de filmes.

- Obrigado. – e foi embora.

Fechou a porta. Ligou a TV. Passava um filme bobo de comédia. Não estava a fim de rir. Arrastou o sofá e estendeu um cobertor no chão. Espalhou almofadas e deitou depois de pegar dois sacos de pipocas doces no armário. Pôs um dos filmes no DVD e abriu o pacote de pipoca. Não se concentrou. Perdia os diálogos do filme. Estava com saudade de Laura. Estava com saudade de qualquer barzinho lá fora onde pudesse encontrar o Ed. Mas preferiu ver o filme mesmo sem entender. Era mais cômodo.