sábado, 31 de outubro de 2009

Saudade é esperar no portão


O tempo todo ela olhava no relógio como quem admira um mar remansoso. A esperança era que os ponteiros marcassem seis e trinta, a hora que ele costumava chegar. Os minutos são eternos quando a saudade debruça sobre eles.


Qualquer barulho lá fora parecia sineta anunciando sua chegada. O amor devia ter limites, pensou, mas logo se arrependeu.


A mesa estava pronta. O café fumegante dentro da garrafa térmica a fazia lembrar daquelas tardes de sábado preguiçosas. Os dois sentavam-se à mesa e faziam caretas pra garrafa que, em espelho, distorcia suas formas. E aquilo era como cócegas no céu da boca que explodiam em risos. O amor devia ter limites, pensou de novo, e dessa vez gostou de saber que as palavras faziam sentido.


Olhou para o porta-retrato. A foto era em preto e branco de um dia colorido. A felicidade visitava os olhos dos dois e fazia uma poesia calada, interna, segredo só deles. Não se lembrava em que época o flash tinha eternizado aquele passado que agora era saudade trazida para mais perto. E a saudade, pensou, vem com um certo esquecimento.


Rodou a maçaneta na esperança de que tal gesto fosse um ímã que trouxesse ele mais cedo. Empurrou a porta e deixou entrar todas as lembranças. Surpresa, viu que ele estacionava o carro na rua, em frente à casa. Ela sorriu, como sempre sorria. Ele desceu do veículo com o rosto mergulhado em assuntos chatos, mas com um sorriso discreto que ia pedindo afago.


Ela sentou-se na escada da varanda, de frente ao portão. Dali podia ver a rua, podia repetir quantas vezes quisesse o momento em que ele chegava com o carro, descia com o rosto contorcido - assuntos chatos - mas sorria um riso pequeno, de quem quer afago. O amor devia não doer, ela pensou. E era como se fosse um pedido.


Ele não chegava. Nem nunca ia chegar. Mas ela esperaria. A saudade lhe bastava.


quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Da janela, um ipê


Daqui da janela da minha copa eu vejo um ipê amarelo. Todo dia de manhã, enquanto a água do café ferve daquele jeito meio lento como de quem desperta e vai estralando dedo por dedo, abrindo cílio por cílio, eu escoro no parapeito e me demoro. As flores, de longe, parecem uma coisa só, enfeitando os galhos altos que erguem as mãos aos céus, numa oração bonita que eu escuto daqui.


O café quente – talvez mais quente que a minha vontade de ter alguém por perto e trocar meia dúzia de dinheiros grandes por um abraço – é um sinal de alerta: hora de acabar com a preguiça que agarra as pernas. Um gole é como um despertador barulhento, numa insistência louca em me chamar para a sanidade. Prefiro os sonhos. O sono, a cama e o corpo horizontal. Prefiro os ipês.


Quando saio de casa, tropeço em três ciganas que imploram minha mão. Eu me esquivo. Futuro é uma coisa que, sabida, se torna patética. É como se acabassem todos os motivos para viver. Mentira. Há motivos maiores, bem sei. Mas é que a vida não é só sentimentos. Bonito seria se fosse. As ciganas sempre andam tão sujas e coloridas. Mas é uma cor desbotada, de mil e tantos anos. Um contraste. Alguém que lê o futuro, parece ter vindo de um passado distante. Minha mãe sempre dizia que o futuro me traria dinheiro. As pobres ciganas não tiveram mães.


Meus passos me levam pros lugares de sempre. O trabalho. A faculdade. O restaurante. Depois a casa. Meus pés parecem doutrinados e não se atrapalham mais. Desconhecem a liberdade de outros cantos. Um dia – decidi agora – os levarei ao ipê, aquele que vejo da minha janela. Será uma mudança drástica. Talvez eu leve meu caderno e minha caneta, também. E dali, debaixo daquele amarelo, escreverei outra carta. E, de alguma forma, quando você me ler, estará comigo ao pé do ipê, porque minhas palavras te remeterão até lá.


Te encontro mais tarde, quando a saudade me trouxer delírios.


sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Terapeuta


Com licença. Hoje eu não quero mais esse negócio de terapia, o senhor vai me desculpar. Sempre eu falo, falo, falo e nunca chego a conclusão nenhuma. Nunca achei que problema se resolvesse com o simples extravasar de palavras. Fosse assim, todos os escritores, todos os poetas, todos os locutores seriam as pessoas mais bem resolvidas desse mundo. Além do mais, sempre tem uma coisa chata de se falar. Sim, aquele detalhe que ninguém nunca soube, nem nunca saberá. Mas se eu começo a falar de uma coisa, logo caio em outra e aquele detalhe que pra todo mundo era despercebido, diante de mim se sobressai, avivando minha memória. Tem coisa que eu quero perder, perder pra sempre. E não ficar ruminando, tentando achar uma saída. Do que adianta eu ficar aqui buscando uma resposta pra minha solteirice? Tentar entender por que as mulheres fogem de mim assim como o ateu foge da bíblia? Perda de tempo! Tudo não passa de cogitações loucas da minha cabeça e da sua. Quer ver só? Eu paro a primeira mulher na esquina ali e pergunto: “Quer ser aquela amada com amor predestinada sem a qual a vida é nada sem a qual se quer morrer?”. Certamente ela morrerá de amores e aceitará meu pedido. Só então eu explicarei pra ela que minha vontade de ter uma namorada é tão-só para me ajudar a cortar os cabelos das axilas. Ela vai me insultar e eu vou sorrir, porque a vida é leve e cheia de ironias. Cansei mesmo dessa história de pagar uma fortuna pra você me dar conselhos, ter que ficar quarenta minutos nesse sofá-caqui horroroso que parece ter saído de um porão fedido. Não estou menosprezando sua profissão. Estou é buscando a simplicidade que eu mesmo perdi quando desenhei um novelo de lã tentando entender o que é isso que se chama de vida. Não se entende. Ponto. Aquele que tenta se entender por um minuto se perde em outros dez. Do que adianta? Hoje eu resolvo meus problemas e amanhã a bolsa de Nova Iorque fecha em baixa e eu fico pobre. Mais problemas. Outros mil. Ou então um meteoro cai na Terra e mata cem milhões novecentos e cinqüenta e quatro mil duzentos e setenta e sete pessoas de uma só vez. Imagina só? A vida é isso aqui, sabe? Pequena e boba. Que nem essas piadas que a gente conta, ri e depois, se ouvir de novo, não ri mais. Pequena e boba. Eu vou acertar minhas contas com você. Mas antes eu vim lhe fazer um convite: topa fazer as malas e passar uma semana na praia? Não é brincadeira. Estou indo. E agora. Porque esses lampejos de liberdade somem em três tempos. Não se preocupe. Eu volto. Com dois amores debaixo do braço e um sorriso de alívio no resto do corpo. Eu vou.


terça-feira, 13 de outubro de 2009

Os olhos de sempre


Ele sentou-se diante dela e viu os mesmos olhos, o mesmo sorriso, a mesma pose. Há tantos anos ela era sempre igual. Metodicamente igual. Acordava sempre do lado esquerdo da cama às seis horas da manhã. Seguia para o banheiro e se demorava num banho de vinte minutos. Exatos vinte minutos. Saía cheirando o mesmo perfume, os dentes escovados com a mesma pasta de dente. Sentava-se à mesa já preparada pro café e tomava o chá. Duas torradas. Uma passada de olho no jornal em leitura superficial, só pra ficar por dentro das manchetes.


Ela não mudava. Isso o irritava profundamente e parecia que ela agia em provocação. Por que sempre os talheres de cabo azul? Por que sempre o batom rosa? Por que sempre a timidez escondida no canto do olho e um pé a trás a cada passo dado? Previsibilidade. Ele não dava conta disso. Sabia todos os passos dela, todos os pensamentos, tudo o que ela ia dizer. Não que fossem parecidos a tal ponto. Ele estava farto. E estava disposto a romper.


Sabia de todas as reações dela. Primeiro ela entortaria um pouco a boca. Pra direita. O cenho franzido, uma inclinada de leve com a cabeça. Ela tentaria falar qualquer coisa e não conseguiria. A boca se abriria tantas vezes em busca de palavras que não chegariam. Ela desistiria e, nessa hora, as lágrimas viriam. Seria um choro discreto, como ela mesma era. Talvez um soluço fininho em apelo disfarçado. Não diria nada. Só os olhos. Os olhos dela sempre disseram tudo. E ele leria em suas íris: “Como você pode?” e se sentiria mal, sujo, profano.


Aquilo tudo era amor. Não se entende mais assim? Amor sim, de cumplicidade. Ela se permitia a ele. Fazia-se conhecer em todos seus segredos e rituais. Era como conseguia se fazer no dia-a-dia, era como ela procurava agradá-lo. Até o bilhete que ela sempre deixava antes de sair de casa: “Saí para o trabalho, deixo um beijo”. Sempre o mesmo bilhete e a letra redondinha de sempre. Engraçado que ela saía, mas o bilhete ficava como se fosse a presença dela. Saí-um-beijo-fui-ao-trabalho-deixo. Era bonita a forma como ela cuidava das coisas e como escolhia se apresentar ao mundo. Previsível.


- Então diga, meu bem, diga o que tinha a me dizer. – ela implorou com aqueles olhos lindos de sempre, os mais previsíveis de todos.


Ele estava diante dela. O mesmo sorriso. As palavras que ele esperava ouvir. Ele sorriu em retribuição e devolveu a resposta em sussurro:


- É que eu te amo. Hoje mais.


E ela chorou. Imprevisivelmente.