domingo, 30 de março de 2008

O pranto dos anjos


Dentro dos teus olhos maltratados eu enxergo muito mais do que sofrimento. E tu és ainda uma criança que crê em conto de fadas. Parece até que habita uma mulher aí dentro do teu corpo sofrido. Não fique me jogando esse silêncio obeso nas costas, não me faça sentir mais culpado em ver-te assim com essa alma quase saindo pela boca e esse sorriso extinto, caído no chão.

Dentro dos teus olhos, vejo toda a crueldade do mundo. Não falo apenas dessa fome que tu carregas no estômago e escorre na pele mostrando seus ossos finos e frágeis demais. Falo desse pouco caso com as crianças feito tu; desses homens grandes que gastam com guerras e aplicações na bolsa de valores. E desses homens médios que vão ao shopping comprar tênis da moda e uma TV de plasma. Teus olhos imploram por um prato de comida, não é? A sua casa tem banheiro e água encanada? Porque esse cheiro que sai de ti não é teu odor, pequena. É o perfume que todos nós respiramos todos os dias, mas já estamos acostumados.

E quando olho-te pela última vez, percebo as outras crianças que choram contigo. Essas crianças exploradas em sua ingenuidade e inocência. Todas vocês têm olhos que sangram e corpo abatido, alma perturbada. Estão sem esperança, mas ainda assim sonham com o Papai Noel trazendo brinquedo dentro do saco vermelho.

Vem deitar aqui no meu colo, toma tua boneca. Teu lugar é nas nuvens ao lado dos anjos, pequena. Teu lugar não é nessas estradas de perdição. Vem aqui, vou te contar uma história. Vê se dorme um pouco pra esquecer teus pesadelos reais. A vida nos sonhos é mais bonita. Tu és bonita, pequena...

quarta-feira, 26 de março de 2008

Flor dos Acordes



*Em co-autoria com a Jaya


O que você esconde atrás do seu olhar? Duas bolas cintilantes que me ofuscam mesmo quando você está longe e vem andando devagarinho. E eu não falo metaforicamente, embora goste muito dessas coisas de falar por debaixo dos panos. Basta olhar pra você e ver que seus cabelos de caracóis trazem nuvens brancas e serenas. E quando bate o vento neles, você se transforma em fada com varinha de condão e asas. Porque as suas asas não ficam nas costas, eu bem sei. Mas essa sua forma de falar cantando e essa doçura intrínseca no seu olhar me deixam inebriado. Digo que estou apaixonado? Há tantas formas de se apaixonar. E suas palavras fazem isso comigo, como se eu não pudesse domar meu juízo. E quando você me abre esse sorriso de roda gigante e me mostra que seu mundo é tão encantador quanto sua alma, vejo-me contando os cachos seus e brincando de tirar flores dos seus cantos. Diga-me, de uma vez por todas, o que você esconde atrás do seu olhar?

Eu poderia te contar do meu olhar, e de como agora você se esconde no meio das estrelas que eles guardam em si. Mas eu me vejo deveras distraída ao perceber teu mundo manso junto ao meu. Checo teus olhos em flagrante enquanto me aproximo, e eles me sorriem tão lindos, assim. Será que esse também é teu jeito de sempre chegar? Você me conta coisas tão bonitas no meio dessas tuas palavras de lírios, tão coloridos e bem cuidados, que eu não sei evitar lembrar da música de Chico que diz: eu vim com a flor dos acordes que você brotando cantou pra mim. Foi assim que eu vim. Esse perfume pueril que você sabe dosar, me remete a um pensamento que talvez até pareça demasiadamente infante. É que eu enxergo tua alma tão claramente e de uma maneira tão afável que não seria absurdo nenhum pensar que elas já caminhavam de mãos dadas quando ainda não sabíamos que ia acontecer nós dois, um dia. Num tempo onde nossas afinações ainda não existiam, onde nossos sonhos se extraviavam. E agora eu te olho daqui, pousado no mesmo campo que eu pintei pra mim, com esses lábios risonhos, como quem diz que acabou de voltar ao mundo e conhece os tesouros de todas as doces liras dos poetas de outrora. Agora que já ancoramos no mesmo porto, me leva um pouco com você, façamos um passeio gentil por entre esses ares coloridos. Me fala baixinho sobre a tua música.

Você quer um passeio? Dê-me aqui sua mão, vou mostrar a você onde eu guardo minhas canções. E não se assuste se eu começar a despejar meu coração em prantos. É porque eu sou chorão e não gosto de dormir no escuro. Mas quando sinto sua brisa, eu também percebo o pôr-do-sol que você faz nascer em mim. Você , então, puxa uma cadeira e fica do meu lado, vendo o sol descer. O que fica guardado em mim nem é tanto o momento. É você pintada de ouro, reluzindo como uma estátua de Madri. Aproveito e faço-lhe uma coroa de flores. Você não fica mais bonita. Não, sua beleza não brilha como o diamante. Sua beleza cálida é aquela que percebo quando pego sua mão e tudo ao meu redor se eterniza. Porque você me cativa. Porque, finalmente, entendo o que você esconde no seu olhar. E não é só ternura. É um rio infinito de águas que você tira pra eu beber. E essa água é poesia. É poesia.

Meu livro é decifrado tão facilmente por você, às vezes confundo teus olhos nos olhos meus. Quando nossas mãos se tocaram, não sei se você notou, me fiz cintilante. É tua presença em mim que faz despertar esse brilho maior. Enquanto teus dedos brincavam com as flores em coroa, eu fitava você sentado ao meu lado, observava detalhes desse teu desenho bem traçado. Quem te talhou com tanta delicadeza e salpicou tamanha doçura nessa tua pose de encantado? Ao mesmo tempo em que teu pranto encontra o meu, nossos corações iniciam uma conversa infinda, e só uma coisa me assusta: a possibilidade de nunca terem se conhecido. De onde vem tanta candura que faz tua poesia se misturar com a minha? Você caiu no meio das minhas quimeras mais preciosas, e se encaixou tão bem. Ah, que estrela você é! Repara o céu, a lua está pedindo licença pra chegar com seu afago celeste. Já é noite, e a gente se ilumina tanto! Vamos combinar uma coisa? Quando o escuro aparecer, e você estiver bicudo com suas lágrimas, olha o céu. Ele é o mesmo para nós dois. Lá sempre vai haver uma estrela vestindo um pedaço do meu coração, ela é meu presente para você. Prometo que sempre iluminará outra vez teu fulgor meigo e enternecido.

Vamos caminhar de volta? Tão injusto o tempo chegando como quem impõe suas vontades! Ele quer te roubar daqui. Diz ser hora de fechar os olhos. É que o sol se prepara para despertar sorrindo amanhã, sem nem desconfiar que minha lente já te fotografou comigo.



domingo, 16 de março de 2008

Cem palavras



Não sei se você se lembra de ontem. Foi um dia qualquer. Estava quase chovendo, o céu nublado e uma paisagem triste se pintava na cidade. Era um daqueles dias nostálgicos em que a gente se lembra dos amores passados, da família distante, dos amigos que foram se desvencilhando do nosso labirinto. Você e eu calados, andando um ao lado do outro como dois estranhos. Ficamos assim uns vinte minutos: sem trocar uma palavra sequer. Até que você trombou em alguém ao atravessar a rua e nós dois rimos. Aquilo não foi engraçado, mas houve cumplicidade no nosso riso; parecia até que eu tinha planejado aquilo tudo só pra você saber que eu não falava, mas percebia.

Pensei que depois disso fosse surgir algum assunto. Nada. Um ou dois comentários sobre a cena inusitada e voltamos a nos calar. Não era um dia para conversas, definitivamente. Eu não via seus olhos, mas poderia adivinhar sua aflição e sua vontade de que aquele dia acabasse logo e viesse o próximo quando o céu voltaria a ficar azul. Lamento muito não ter tido duas ou três palavras de conforto ou de esperança. Entenda: eu também tenho o meu lado egoísta e solitário. Ás vezes até quero falar, mas o silêncio parece dizer tudo.

Ficamos naquele diálogo tácito durante um bom tempo. E eu me senti mal e o pior amigo do mundo quando eu disse que iria virar á direita. Despedimos-nos com um “até logo” e eu percebi que havíamos conversado durante todo aquele tempo. Não foi um diálogo exterior nem visível demais. Foi um silêncio subentendido de almas– e isso soa mais bonito que descaso.

Não, meu caro. A gente não precisa de palavras. A gente só precisa dessa parceria que nem a falta do diálogo é capaz de romper.


Radinho de Pilha



Ouvindo essa música que toca agora no meu radinho de pilha, descobri que a saudade é o mais bonito e o mais doído dos sentimentos. A canção me lembrou você naquela tarde de primavera quando o sol se escondia e a forma da lua já se desenhava no céu. Então você apareceu com seu vestidinho de menina e me abraçou de repente como se eu pudesse sumir a qualquer momento. Seus olhos brilhavam e eu não entendia o porquê, mas achei a coisa mais bonita do mundo. E ficou grudada no meu pescoço, roçando seus lábios no meu ouvido, inventando sons que eu traduzia pra mim como eu bem queria. Ouvi sua voz desafinadinha cantar Tom Jobim: “Chega de saudade...” e um monte de lá-lá-lá que você colocava nas partes que não sabia cantar. Tão linda você.


Sentamos no chão de gramas não tão verdes e você me contou do seu dia estranho e dos pesadelos da noite. E eu ficava olhando você, rindo como quem admira uma obra de arte. Engraçado que não havia nada de diferente, mas havia o brilho. Eu não me lembro da nossa conversa. Sei que você me disse da sua dificuldade com matemática e me jurou que seria bailarina. Eu disse que não queria me casar com uma bailarina e você ficou triste porque eu não havia entendido sua poesia.


Quando as estrelas começaram a despontar no céu azul escuro - quase negro, percebi que você havia tirado o brilho delas. E eu amei-a ainda mais pelo fato de ter estrela nos olhos. Você não era qualquer uma. Não era apenas uma menininha de vestido. Era a menina da estrela nos olhos e mais um monte de coisas que eu iria descobrir.


Você se levantou apressada e disse que tinha que ir pra casa. Ficamos rindo das folhas presas no seu vestido e que você não me deixou ajudar a tirar porque ia parecer indecoroso demais. Então você me deu um beijo de despedida que não foi tão romântico, mas me encarou com seus olhos de estrela que me arrebataram sabe-se lá para onde.


Ouvindo a música no meu radinho de pilha, só consigo me lembrar dessas coisas. Muitos detalhes foram perdidos e eu lamento não poder descrever com fidelidade os olhos seus. Mas sabe de uma coisa, bailarina? Você nem é tão desafinada assim...

terça-feira, 11 de março de 2008

O mesmo amor, o mesmo pôr-do-sol


Confessou ao marido que estava farta do seu descaso. Vivia inalando aquele ar hostil de quem chega do trabalho, deita de frente à TV e esquece-se da pessoa com quem divide a cama. Ele não entendeu. Achou que era frescura de mulher, falou que voltava sempre cansado porque trabalhava muito – não tinha o direito de se deitar e ver um pouco de TV? A mulher deixou pra lá. Sabia que não ia conseguir resultado algum. Devia ter pensado melhor há cinco anos quando optou casar-se com ele.

Ela resolveu que iria escrever um romance. Ele não namorava a televisão? Pois ela teria o computador como amante. Faria o possível para sentir-se suprida. Levou algum tempo para substituir os carinhos e as palavras dóceis pela companhia dos personagens fictícios que habitavam sua mente. Com o tempo, sentiu-se mais humana, capaz de criar, fazer renascer a arte dentro de si.
O marido foi tomado por um ataque de ciúmes doentio. Chegava em casa perguntando pelo jantar e tinha que se assentar sozinho na mesa porque a mulher, agora, era uma escritora. Começou a brigar, fez ameaças, contou mentiras. Nada deu certo. Ele percebeu o descaso da mulher, percebeu que a havia perdido.

No outro dia, chegou com um anel de brilhantes. A mulher deu um sorriso e selou o marido com um beijo de gratidão. Ficou só nisso. Logo ela voltou pro seu mundo fictício, digitando afoitamente o teclado do computador.

No segundo dia, ele veio com uma caixa de bombons de avelã – os prediletos dela. A esposa provou um, disse que era muito bom e pediu ao marido que guardasse a caixa no criado mudo. Depois disso, ela voltou a escrever.

No quarto dia, o marido anunciou que comprara uma viagem para o próximo mês. Iriam a Salvador aproveitar um pouco o verão. Ela reclamou. Disse que no próximo mês não dava porque estaria escrevendo os últimos capítulos do romance.

O marido, por fim, desistiu. Viu que estava de mãos atadas e que a mulher estava absorta em seu novo mundo. Passado alguns dias, começou a lamentar. Lembrou-se do começo do namoro, quando eles iam passear na pracinha e tomavam sorvete até a tarde cair. Viu que perderam todo o romantismo e toda esperança que habita os olhos dos apaixonados.

Decidido, o marido tirou a mulher de frente do computador e agarrou-a pela mão. Disse a ela que tinha algo muito importante para mostrar. Ela foi, resignada. O marido levou-a á praça do primeiro beijo e disse, como da primeira vez, o quanto ela era linda. Depois, arrancou uma maria-sem-vergonha e entregou-lhe jurando amor com os olhos. Ela se rendeu.

E ele finalmente entendeu que não eram as jóias nem os bombons. Era aquela tarde com o seu pôr-do-sol eternizada dentro deles que ficaria latejando por muito tempo, pro resto da vida. As demais coisas se perderiam. Mas isso não fazia a menor diferença.
Tem texto no Encontro de Infinitos. Confira!

quarta-feira, 5 de março de 2008

Sofá velho

Você quer me escutar? Tudo bem. Entre e fique a vontade. Acabei de fazer café. Quer uma xícara? O sofá é meio velho, mas está limpo. Vou abrir a janela, está calor. A noite está bonita. Tem muitas estrelas. Será que somos assim, que nem as estrelas? Pontinhos soltos num espaço escuro? Daqui eu não reconheço nenhuma delas. Todas são iguais. Mas você, perto de mim, eu reconheço. Se você não estivesse aqui na minha sala, tomando meu café, ouvindo minha conversa fiada, talvez não fosse tão importante pra mim. Está vendo aquela foto em cima da mesa? Era um jardim que existia na fazenda dos meus avós. É um belo jardim, você não acha? Meu avô contava que, certa vez, caiu uma tempestade que nunca se viu igual. No entanto, antes de o jardim ser destruído, as borboletas vieram em grupo e o carregaram. Não me olhe com essa cara. Estou falando de sonhos. Você já deixou seu sonho debaixo de uma tempestade? Espero que da próxima vez você o carregue para outro lugar. Parece que estou falando das coisas que vivo. Mas não sou assim não. Falo coisas, penso muitas outras, vivo tudo errado. Não tente me entender pelo meu sorriso porque nem sempre estarei feliz. Sinto-me louco falando essas coisas. Devo estar chateando você. Quer mais café? Todos parecem grandes, talentosos, inteligentes. Você não se sente assim: perdido no meio de tanta gente? Parece até que não tem espaço pra mim, pras minhas coisas. Todos devem ter um espaço, um lugar de refúgio. Se eu pedir pra você voltar outra hora, você não vai me achar rude demais? É que estou com sono e as idéias ficam fervilhando na minha mente. Quanto a você, volte menos literal. Não consigo ser muito claro e por isso falo de estrelas e borboletas. Talvez você tenha me entendido. Faz-me um favor? Feche a porta quando sair e não deixe os gigantes lá fora entrarem. Aqui é o meu lugar.

A Jaya fez uma resposta para esse texto em DEIXA EU BRINCAR DE SER FELIZ?