quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

A dança


Primeiro saiu Maria de sua casa. Depois João. Depois José. Depois Marta. Todos com um sorriso pendurado no rosto, feito criança quando ganha presente. Juntaram-se numa roda de dez e começaram a dançar.

Ana observava tudo da janela e cochichava com Amélia sobre o absurdo. Carlos balançava a cabeça em desaprovação e Cícero ria da imbecilidade.

- Vamos chamar um médico. – sugeriu Alice. – Estão todos loucos.

Cícero se aproximou da roda. Os homens giravam as mulheres em passos ensaiados como se estivessem apresentando para uma platéia ilustre. Dançavam divinamente.

- Ei! – gritou Cícero. – O que houve com vocês?

- Venha dançar! – convidou Maria. – Dance conforme a música.

- Música? Vocês estão loucos! Não há música alguma!

- Sim, a música! – afirmou Maria sem se ofender com o pejorativo e continuou a dança.

Cícero voltou para perto da multidão que observava os dançarinos sem entender o que estava acontecendo.

- O que houve? – perguntou alguém assim que Cícero se aproximou.

- Eles estão ouvindo alguma música. Por isso dançam. – explicou sem acreditar.

- Não há música. – zombou Angélica.

- Mas vejam como eles dançam. – falou algum observador.

- Eles têm ritmo, dançam sem errar os passos. – completou outro.

- Como podem dançar se não ouvem música alguma? – alguém perguntou.

Virou uma grande algazarra entre os que não ouviam a música. Por fim, Alice começou a suspirar:

- Como será a melodia? Triste de doer o coração ou alegre de estourar o peito?

- Será que a canção tem a suavidade de um violino ou é agitada como um tambor? – perguntou Ana.

- Eles parecem tão felizes! – inconformou-se Angélica. – E se olham nos olhos como velhos amantes.

- Ninguém nunca me olhou assim. – chorou Ana.

- Veja aquela mulher como se entrega. - cochichou Carlos. – Minha mulher não me dá nem a mão com essa segurança de que posso guiá-la.

- Elas têm um brilho que as movimenta. – acrescentou Cícero. – Nunca vi brilho tão intenso.

E todos lamentavam a dança que não podiam dançar, os sorrisos que não podiam sorrir, as mãos que não podiam se entrelaçar, os olhos que não podiam se cruzar, a música que não podiam escutar e o sentimento que só podiam adivinhar.

Enquanto isso, dançavam os ditos loucos. Eles mal sabiam que os de fora não entenderam a poesia porque a alma estava ressequida. E quem tem alma ressequida, sim, precisa de médico.

16 comentários:

Critical Watcher disse...

Que coisa perfeita.
Magnífico texto.
Você me surpreende cada vez mais...
Continue assim, pois você vai longe...
Não tenho palavras nem pra comentar sobre seu texto, a não ser EMOÇÃO!

Jaya Magalhães disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Bárbara Matias disse...

Ei Filipe...

As vezes lamentamos por algo que está a nosso alcance...num é triste?

Gostei mto de ouvir que os de alma ressequida é q precisam de médico... e não os q dançam!

Bjos...

Alberto Vieira disse...

Tenho facilidade de ficar de fora da dança e criticar..

gostei mto do texto

abraços

pp1993 disse...

Filipe, cada vez que leio o que escreves, gosto mais de visitar teu blog. É algo tão encantador, tão sincero e bonito. Gosto demais!
beijão!

Anônimo disse...

Muuito bom!
Os "loucos" são mais felizes.

x)
abç.

Anônimo disse...

aiii que lindo!! lindo lindo lindoo!!

"Como podem dançar se não ouvem música alguma? "

ah, o sinal seguirão aos que crerem..

não só sinais vistos pelos olhos mas os que sentem o coração, só mesmo os filhos de Deus conseguem sorrir enquanto tudo em sua volta está desabando..

beijosss

Anônimo disse...

O que escrever aqui?
Dança significa muito para mim, mesmo com a alma ressequida e o coração dilacerado.
Cada uma das pessoas que não ouviam a música, poderiam ouvi-la, se quisessem se entregar. É mais fácil lamentarmo-nos que agirmos. E, às vezes, o melhor remédio ou médico para uma alma machucada é mesmo uma canção.
Lindo, Filipe!
Parabéns!

Beijos.

Renato Ziggy disse...

Lipão, amei a forma como você encaminhou os acontecimentos do texto para nos dizer algo bastanteprofundo e que, pra mim, é de conteúdo evangelístico. Seu texto é uma parábolas das boas que, pra ficar que nem as de Jesus Cristo, só faltou você dizer: "Quem tiver ouvidos, ouça." ou "Quem tiver olhos, leia."
Quem não abrir os olhos e não conseguir entrar na roda vai "rodar", cara. Só acho que, se sua intenção era falar sobre o Reino, precisa tomar cuidado para não passar pras pessoas a impressão de que ele é excludente. Ele não é não, pelo menos enquanto está crescendo aqui na Terra. Na Glória, sim, será muito diferente, pois sequer nos recordaremos dos ímpios.. Bom, talvez você queria falar de outra coisa, mas minha leitura foi essa analogia com o evangelho. Se o SEU subtexto tem a ver com isso, sugiro que tome cuidado pra não passar essa falsa impressão. Do contrário, tá tudo certo. Gostei demais! Abraço.

Renato Ziggy disse...

Lipão, então está esclarecido. Mas sugiro que seja uma boa que você se utilize desse texto para evangelismo, pois ele será uma bênção. Mas aí, sem querer me meter, mas já me metendo (haha!), você deveria se atentar à possibilidade das pessoas caminharem pra tal da "interpretação perigosa", que foi justamente pra onde caminhei, mas consciente de que não necessariamente sua mensagem seria aquela.
E seu texto me deixou um pouco angustiado, confesso, pensado em outras possibilidades de interpretação. Veja bem: não por eu me identificar com as pessoas que não eram da roda, mas por questionar o comportamento das que eram da roda, que sequer convidaram os outros a participar da roda. A sociedade ocidental é exatamente assim: se você não faz parte do padrão pré-estabelecido, ou se, dentro do SEU estilo, as pessoas não te aceitam, você não dança nem aprende a dançar, porque as pessoas não dispõem a te ensinar.
O mundo capitalista nos leva a isso... ao egoismo, à cegueira, à falta de discernimento: dançar sem sequer existir uma música tocando, fato que me sugere a idéia de alienação. E felizes são aqueles que conseguiram perceber a musicalidade daquela dança EM MASSA, ainda que naquele momento estivesse "frustrados" por estarem de fora da roda e não saber dançar aquela dança DA RODA (eles dançaram uma dança diferente também, só que não era de roda, era sem ritmo pré-estabelecido, era descompassada etc).
Cara, confesso que pirei com seu texto, ele falou sobre muitas coisas pra mim... Até.

Unknown disse...

Uau. Essa foi mais que profunda. Ainda sinto algum desconforto, por não ter certeza se sou capaz de entrar na dança. Aliás, uma vez dentro, será possível um dia parar de dançar?
Estou inquieto.
Mas essa é a qualidade dos bons textos. Nunca findam. Você atingiu um nível espantoso. Parabéns.

[me lembrou, inclusive, algo de Saramago]

Clareana Arôxa disse...

Dançar foi uma das formas que eu consegui entender o que significava a palavra liberdade.

dá vontade de entrar no teu texto e rodopiar por aí!

beijo

Victor Viana Clemente disse...

Nossa, hoje é o segundo post que fala sobre loucura. E quanto mais pensa no assunto, mais acho que ser chamado de louco deveria ser a maior das honras.

Li todos os seus posts, me emocionei com todos eles, nossa, você é muito talentoso.
Adorei seu blog, sincerameente, não é só rasgação de seda. Vou linkar você no meu

Bom Final de Semana

Lorena disse...

As pessoas não ouvem a música pq são amargas, quando se é um amargo é impossivel sentir o gosto da vida

Unknown disse...

"E todos lamentavam a dança que não podiam dançar, os sorrisos que não podiam sorrir, as mãos que não podiam se entrelaçar, os olhos que não podiam se cruzar, a música que não podiam escutar e o sentimento que só podiam adivinhar."

Gostei do texto todo, mas esse trecho...lindo demais, Filipe!
Beijo!
Ana

Luis Fernando disse...

muito bom! prende a atenção e o desfecho é bastante didático! palmas!