quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Memórias de minhas damas tristes

Hoje, se eu pudesse dizer alguma coisa a elas, eu diria. Porque o amor não dá certo sempre, a gente sabe. E, muitas vezes, descobre-se que nem era amor coisa nenhuma. Era paixão, outras vezes carne, outras vezes só vontade, outras ainda, ilusão. Algumas passaram em minha vida feito um feixe de luz, tão rápidas. Outras foram ficando, devagarinho, pegando o melhor lugar da sala. Mas eu diria uma porção de coisas, se pudesse. Só se eu pudesse.

Diria a Ana que ela foi meu primeiro amor beijado. Tive outro primeiro amor, mas era adolescente demais e tímido demais. Com Ana foi o beijo. O primeiro de todos, debaixo de uma árvore e ao som de sei lá qual música. Foi bonito e romântico, tirando a parte que, depois do beijo, me comportei feito um imbecil e danei tudo. Podia ter sido namoro, romance, casamento. Mas eu danei tudo com minha insegurança e com aquela falsa ideia de que beijo era pecado. Pecado era gostar demais e não poder estar perto, foi o que descobri depois. Eu gostava dela. Só que não daria certo, por muitos motivos. Éramos dois corações batendo no mesmo ritmo. Importante é sempre ter um descompassado, pra dar ao outro uma emoção desconhecida. É assim que as coisas ficam completas, penso.

Diria a Bia que ela foi a primeira vadia da minha vida. Linda de morrer, mas totalmente perigosa. Iludia, dizia que gostava, fazia carinho. Depois ia se entrelaçar nos braços de outro. De outros, nem sei mais. Fazia-se de vítima, dizia que era frágil, essas coisas. E eu a recebia, bobo que era. O bom foi que não me envolvi demais. Gostava, mas gostava pouco. Não foi o suficiente para sofrer. Nem foi amor. Foi uma coisa insana, tensa, perigosa. Afastei porque foi melhor. Nos encontramos depois, ela me queria. Eu fiz de difícil e me arrependi. Eu diria a ela que se comportou como a mais perfeita vadia. E mais nada.

Rita foi aquela amizade que virou admiração, depois atração, depois beijo. Eu falei em namoro, ela não quis. E depois fui concordar com ela. Éramos opostos. Eu, naquele meu convencionalismo retilíneo e ela no feminismo tresloucado, quase bêbado. Ela, naquela pose de riponga liberalista, falava de comunismo e andava com camisas com o rosto de Che Guevara. Foi essa energia toda que me puxou pra dentro dela. E toda aquela inteligência misturada a uma candura quase imperceptível e uma sensibilidade que me tocava de longe. Diria a Rita que foi ela quem me provou que é possível sim, ter uma amizade depois de um beijo. Porque conseguimos.

Maria foi o meu amor mais duradouro. Foi uma escolha. Aprendi a amar. Se eu era convencional, ela era dez vezes mais. Emburrava com pensamentos que considerava radicais e propunha um mundo regado de pessoas que fossem como ela. Chatas. Maria seria linda, se não me amarrasse. Se me deixasse leve, eu iria junto dela, sem querer contrariar. Fui querendo ela distante, apesar de ter me dado os melhores beijos, os melhores abraços e os melhores carinhos. Estive muito nela e ela muito em mim. Falamos em casamento (que loucura!) e tivemos um namoro inseguro. Ela insegura. Eu inseguro. Foi meu primeiro sofrimento por amor terminado. A recuperação foi difícil e eu soube, enfim, o que era curtir uma “fossa”. Por causa desse amor que precisava morrer, me tornei o garoto mais estudioso na turma. Diria a ela obrigado, porque, por causa dela, consegui galgar bons caminhos profissionais.

Por último, teve Nádia. Outra vadia, daquelas venenosas. Me aprisionou numa conversinha mole e num charminho barato. Provocou-me até que eu cedesse e ficasse à mercê dos caprichos dela. Fui alvo. Vítima. Eu sabia que ela era completamente errada pra mim, mas fui. Porque precisava, porque queria uns carinhos vagabundos. Porque achava que a gente não poderia desperdiçar as chances assim, sem saber por que. Me lasquei e me arrependi. Dei tchau e sumi. Pra sempre, amém. Diria a Nádia que ela merece um troféu de melhor atriz da nação brasileira. Não me convenceu, mas a encenação foi boa. Muito boa.

Essas damas que compuseram o que hoje sou e tenho criaram um misto de querer-bem e ressentimentos. São as chagas dos relacionamentos, dos seus embaraços e dos seus fins. Mas me resta a certeza de que assim sou porque as tive em alguma parte da minha história. E, em razão delas, desenhei um futuro que pretende ser igual naquilo que foi bom e distante daquilo que não valeu. Resta, ao fim, esse meu coração insistente em amar. Além da certeza quase cega de que o amor tem chance e vez. O amor, essa coisa que ninguém sabe de onde vem, sempre haverá enquanto a esperança insistir. E existir.


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Rute


Algumas vezes, Rute me chamava para conversar. Era uma conversa de sinais, de olhos, bocas, sobrancelhas, pálpebras. O corpo de Rute falava, enquanto me levava para algum lugar muito perto do sol. Naquela época, eu não sabia o que era o amor entre homem-mulher, por isso eu a amava como mãe, como alma. Aquelas mãos que amoleciam meus cabelos e me ofereciam bolo de fubá; aquela voz que enfeitava as histórias mais encantadas e me chamava de meu querido; aqueles pés sempre limpos que pedalavam a parte de baixo do piano: música que eternizava. Quando a gente cresce, as pessoas ficam desinteressantes. Caem da moldura e se mostram covardes para serem lindas. Eu, criança, conheci a sinceridade de Rute. Hoje, ela, envergonhada da minha barba e da minha voz grossa, caminha apressada na rua e me manda um tímido aceno. Ah, que saudade de Rute.