quarta-feira, 16 de abril de 2014

Belo Horizonte, abril chuvoso

                   L,

A gente passa uma vida amando e desamando. E tudo parece mais um jogo de sorte. Ou de azar. Difícil é a sintonia que abre os poros, que encaixa os abraços, que denuncia o sorriso, que arqueia as pernas. Eu pensei que isso não existia, até você.

Ontem eu andava pelos contornos da Praça Sete, aquela multidão desconhecida, indiferente ao meu mundo, com suas pirraças e caprichos. Eu te enxergava em cada rosto. No mexer do cabelo da moça da esquina, na risada escancarada das amigas de colégio, na gentileza do moço que vende flor, na agitação do guarda de trânsito. Eu senti você muito perto, muito dentro de mim.

Foi quando constatei que meus cadarços estavam desamarrados e me lembrei do último domingo, quando sentamos em um banco no Parque das Mangabeiras, uma chuva fininha caía e você não conseguia parar de dizer que adorava estar ao meu lado. No instante em que eu te peguei pelas mãos, foi como se eu ouvisse um ruído longínquo, uma seresta de instrumentos de sopro, como se o mundo festejasse o nosso entrelaçar.

Os cadarços. Você me apontou o pé, dizendo pra dar um jeito naquilo. Que homem da minha idade não usa all star. Perguntei se você me achava velho e você disse que não, embora tivesse constatado vários fios brancos do lado direito da minha cabeça. Contra-argumentei, dizendo que eu usava tênis para aliviar o semblante sério. E você riu. Riu como se aquilo fosse realmente engraçado. Talvez fosse só uma estratégia para eu poder notar seu sorriso mais de perto, bem como as ruguinhas que se formam no canto da sua boca  - que aqui chamamos de covinhas.

Não sei se essa carta chegará a suas mãos. Você não me parece o tipo de mulher que se surpreenderia com flores e por isso pensei em carta. Porque hoje em dia as coisas se resolvem por e-mail, torpedos ou através de alguma rede social. Daí me lembrei de você dizendo que não conseguia viver sem Internet e telefone celular. E pensei se, de repente, um dia, você me dissesse que não conseguiria viver sem mim. Tremi a alma e engoli em seco.

Desconheço seu endereço e o seu trajeto diário. Talvez você resolva ligar no telefone que lhe passei e me diga duas ou três palavras de afeto. Eu te diria que o amor é algo delicado, que ele se apresenta sem muitas preocupações. Que a gente respira e, quando menos se dá conta, já está amando. Que o amor pulsa de um jeito diferente, fazendo o coração se estender por todo o corpo. Que o amor, esse estado de graça, pode muito bem ser você vindo me encontrar no final da tarde. E a gente de mãos dadas, caminhando pela São Paulo, onde as prostitutas mantêm seus bordeis.

Eu não sei se você me sente. Só sei que, nesse instante, pareço muito cativo ao que você fez por mim. E não foi nada de mais. Apenas um abraço, um carinho na nuca e um riso displicente. Que você não notou, mas eu fotografei.

Não existe conselho para um coração que não quer se desapegar, eu sei. Talvez a memória do passado valha mais a pena que a solidão do presente. Por isso te faço aqui perto. Tão perto. Que chega a doer. Só preciso saber que você leria essas palavras, que elas, de certa forma, existissem e fossem destinadas a você. Meu jeito aéreo nesses dias que antecedem minha viagem escancara: meu desejo é você aparecer no aeroporto e dizer que quer ir comigo. O resto todo ficaria para trás. Porque só de amor não se vive. Mas quem consegue viver sem amor?

Com carinho,



F. 

segunda-feira, 14 de abril de 2014

O homem


O homem se une ao asco
O asco da gênese humana
Que o pobre tem e o rico mantém
Que o bonito cospe e o feio abraça
Essa miséria universal; ausência de virtudes
Varão sem lei, mulher sem alma
Poesia que se afunda e se enlameia
Não há outro, não há próximo
Precisão narcisista, egoísta, colérica
Irradia-se o prazer incontrolado
Armadilha é os olhos da impiedade
Nos quais se enleva os interesses
E o apertar de mãos se torna pouco estreito
O abraço em braços soltos
O sorriso em dentes opacos
O amor em delírio de loucos
Amarrem-nos em camisas de força!
Porque o amor é ópio que só faz sofrer
Erga a cabeça, tu que amas
Ande adiante, sem notar ao seu redor
Tua aliança é com a pobreza, de onde vieste
Pó da terra, carne e sangue quente
Sentimento algum: só a adaga da violência
Que pega o outro pela couraça e lhe cospe inconsequências
Reis da mentira! Ladrões da verdade!
Fujam os amantes e apaixonados
Não existe mais lugar para se falar em rimas
Não há mais espaço para sentir o próprio espírito
O lobo é o homem
Que se transveste das próprias misérias
Que se vangloria das próprias imundícies
Que se percebe como merecedor do maior galardão
O homem, esse frívolo ser que sequer tem asas
E acha que a liberdade está fora de si mesmo
Pagãos! Deitarão todos no mesmo leito de terra
E as flores se ocuparão de perfumar o podre das veias
Quando, enfim, o homem mostra quem de fato é:

Chão de se pisar, memória de se esquecer.