sábado, 25 de outubro de 2014

Houve um tempo


Houve um tempo de carência. Quando as pernas bambas e trôpegas já não se sustentavam sem razão. O jeito era aceitar carinhos estranhos, olhares vazios, peitos abarrotados de convites vãos. Houve um tempo em que a poesia se perdeu ou se converteu a alguma religião ortodoxa de ritos estranhos e comportamentos excêntricos. Houve choros silenciosos e soluços histéricos. Porque a carência produz solidão. E solidão mata, porque não se mantém.

Houve um tempo em que o coração corria afoito para qualquer amor, qualquer jeito, qualquer elogio. Era um mero toque de pele para fazer brotar um gostar insano ou uma paixão ensandecida. Era como se o amor não escorresse com calma, não pingasse com precisão, não florescesse sem querer. Era como se todo o peito pudesse ser preenchido de qualquer coisa e isso bastasse. Mendigar sentires, tempo de se enganar.



Houve um tempo, porém, em que os planetas se alinharam. Os recados deixados em bilhetinhos coloridos colados na geladeira reproduziam sons de serenidade. As horas vagas eram agora preenchidas com carbono e giz. O tempo era de fazer a poesia adormecer nas pálpebras para que, quando se pestanejasse, voassem trocadilhos em versos. Era como se a gente sentisse a alma do outro tocando apenas os dedos, trocando todos os medos, alternando os momentos de crença e de total falta de fé. O que é o amor senão essas luzinhas escondidas dentro da sua boca que só aparecem quando você sorri pra mim?

sábado, 9 de agosto de 2014

O bêbado e os equilibristas


Não era um bêbado sentado num restaurante. Era um bêbado sentado num restaurante ao nosso lado, inserido nos nossos cosmos, na nossa sensibilidade de enxergar o mundo. Ele era o porta-voz do nosso silêncio inquieto, da nossa conversa sem-jeito, dos nossos olhares pausados e ainda um tanto tímidos.

Com um copo na mão, ele se anunciou. Os olhos dele transbordavam poesia, o que saía com muita facilidade pela língua embolada em álcool. Poesia não se aguenta. Escorre.

“Vou lhes recitar um poema” – ele disse enquanto ríamos daquilo que parecia ser uma cena de filme. E ele continuou:

“A alma, em seu espaço físico, jamais se limita. O encontro se faz aos arranhões, sob a percepção de uma afinidade patente. A alma é esconderijo das sensibilidades, das mãos que tateiam, dos corações que pulsam, dos olhos que veem muito além. Eu sugiro, pois, que se seu desejo é possuir, agarre nas paredes da alma. Arranhe, unhe, se apegue, agrida. Marque com o seu encanto, ajeitando as quinas irregulares. As almas caminham de mãos dadas porque, ao contrário dos nossos preconceitos, elas se identificam apesar de. E acima de”.

O riso agora foi suspiroso, desatando nossa estranheza e aceitando o convite para deixá-lo vir mais perto, jogando nas nossas caras todas as verdades que ainda não aceitávamos:

“Vocês têm a chance de fazer isso dar certo. É a vez de vocês. Não se preocupem com os que vieram antes, eles já puderam escolher. Arrisquem, se permitam, deixem doer se tiver que doer, mas deixem voar se o peso é leve demais”.

Agora parecia que os nós estavam desatados. Ou, ainda, que havia mais de mim, mais de você (mais de nós). E as percepções, ora fugidias e escondidas, agora se faziam evidentes: era o encontro, era a vontade, era a cumplicidade de uma vida inteira que desembocou ali, naquele lugar.

A noite daquele dia nunca acabou. Estamos lá ainda, recebendo versos diários e rememorando com clareza a cena que parece ter se materializado. Afinal, quem eram os bêbados daquela noite? E onde foi parar o resto do mundo naquele instante?

E que não haja resposta. Porque não nos interessa saber. 



domingo, 8 de junho de 2014

Belo Horizonte, junho

L,

Eu percebo seu toque sutil de pernas quando tenta sair da cama sem me acordar. Percebo você ir para o banheiro rapidinho porque o xixi te deixa um pouco desesperada. E você deixa a porta do banheiro aberta, senta-se e abaixa a cabeça entre as mãos, soltando um suspiro de alívio que, ao meu ver, foi o mesmo suspiro dado no dia em que eu disse estar apaixonado.

Eu percebo você ir à cozinha e preparar o café. Porque você me conhece e sabe que, antes mesmo de abrir os olhos, eu preciso de uma dose. Me chama pra sentar à mesa enquanto fica de pé, me analisando com olhos paralíticos, pensando em como eu posso dar tanta importância pra um líquido preto, sendo que água é muito melhor. Daí eu pego você pela cintura, sentindo o tecido levinho da sua camisola de sêda e me escoro no seu ventre. Ficamos então abraçadinhos enquanto você reclama do meu hábito de espioná-la enquanto faz xixi. Eu digo apenas que o hábito é seu de deixar a porta sempre aberta.

Eu percebo você arrumar sua bolsa antes de sair e escrever o bilhetinho que irá deixar perto do telefone, contando o quanto você já está ansiosa pra me ver a noite. E eu cheiro o papel que é pra fazer seu perfume impregnar em mim até as seis da tarde, momento em que vou segurar sua cintura outra vez.

Eu percebo que você se cansa de mim e me deixa quieto aos domingos. Percebo que você sente falta e volta reclamando do meu jeito introspectivo. Argumento dizendo que é só um jeito e que isso não significa estar gostando menos. Ao contrário, a curva de ascendência se promove em ritmo desenfreado e eu me pergunto: como posso gostar tanto de alguém?

Sabe, às vezes eu só queria saber o que seria se não fosse você. Se não fosse seu jeitinho miudinho me puxando pra um romance que eu duvidei existir. Eu só queria saber se existe felicidade longe desse espaço entre nós dois.

F.

domingo, 11 de maio de 2014

New York, maio chuvoso

L,

Ontem choveu. E eu caminhava pelo Bryant Park com as sacolas dos seus presentes, olhando para as alamedas como se você fosse aparecer em uma delas, a qualquer momento. Se eu fumasse, talvez acenderia um cigarro para poder pensar nas coisas com mais vagar. Eu sinto que meu coração treme só de pensar num futuro com você. E não é por medo. É que tudo parece muito bem cuidado, bem entoado, como se você tivesse saído dos meus desejos mais internos. Eu gosto de você me puxando pela mão, me falando de saudade e dizendo que nossos filhos serão todos muito lindos, como aqueles da capa da revista.

Eu pensei sobre o que você me disse outro dia: sobre a gente viver em torno do passado, cuidando para que ele passe depressa. E quanto mais rápido a gente quer fazê-lo passar, mais ele se demora. É como um convidado indesejado que vai espichando os pés no sofá, tirando as meias e pedindo mais duas doses de licor. Eu acho que as lembranças do passado ficam, o que vai embora é aquele sentimento único de eternidade. Porque, ali, naquele recente, parece ser tão ideal, tão próprio, tão merecido que a gente deixa de enxergar as possibilidades. Eu perdi meu emprego dos sonhos. Mas eu conheci você. Há sempre algo bom vindo quando a gente tateia coisas boas.

Faltam alguns dias para eu te dar um novo abraço. E tudo será tão novo como aquele dia em que apareci na rodoviária e você me recebeu com um sorriso tímido. Depois me agarrou no meio da rua, me fazendo mudar de cor. Seu perfume ainda me perturba: eu cheiro você. O que me atormenta é o fato de ainda não responder a pergunta que eu me fiz quando do nosso primeiro encontro: onde o mundo se esconde quando você me beija?

Do seu,


F.  

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Belo Horizonte, abril chuvoso

                   L,

A gente passa uma vida amando e desamando. E tudo parece mais um jogo de sorte. Ou de azar. Difícil é a sintonia que abre os poros, que encaixa os abraços, que denuncia o sorriso, que arqueia as pernas. Eu pensei que isso não existia, até você.

Ontem eu andava pelos contornos da Praça Sete, aquela multidão desconhecida, indiferente ao meu mundo, com suas pirraças e caprichos. Eu te enxergava em cada rosto. No mexer do cabelo da moça da esquina, na risada escancarada das amigas de colégio, na gentileza do moço que vende flor, na agitação do guarda de trânsito. Eu senti você muito perto, muito dentro de mim.

Foi quando constatei que meus cadarços estavam desamarrados e me lembrei do último domingo, quando sentamos em um banco no Parque das Mangabeiras, uma chuva fininha caía e você não conseguia parar de dizer que adorava estar ao meu lado. No instante em que eu te peguei pelas mãos, foi como se eu ouvisse um ruído longínquo, uma seresta de instrumentos de sopro, como se o mundo festejasse o nosso entrelaçar.

Os cadarços. Você me apontou o pé, dizendo pra dar um jeito naquilo. Que homem da minha idade não usa all star. Perguntei se você me achava velho e você disse que não, embora tivesse constatado vários fios brancos do lado direito da minha cabeça. Contra-argumentei, dizendo que eu usava tênis para aliviar o semblante sério. E você riu. Riu como se aquilo fosse realmente engraçado. Talvez fosse só uma estratégia para eu poder notar seu sorriso mais de perto, bem como as ruguinhas que se formam no canto da sua boca  - que aqui chamamos de covinhas.

Não sei se essa carta chegará a suas mãos. Você não me parece o tipo de mulher que se surpreenderia com flores e por isso pensei em carta. Porque hoje em dia as coisas se resolvem por e-mail, torpedos ou através de alguma rede social. Daí me lembrei de você dizendo que não conseguia viver sem Internet e telefone celular. E pensei se, de repente, um dia, você me dissesse que não conseguiria viver sem mim. Tremi a alma e engoli em seco.

Desconheço seu endereço e o seu trajeto diário. Talvez você resolva ligar no telefone que lhe passei e me diga duas ou três palavras de afeto. Eu te diria que o amor é algo delicado, que ele se apresenta sem muitas preocupações. Que a gente respira e, quando menos se dá conta, já está amando. Que o amor pulsa de um jeito diferente, fazendo o coração se estender por todo o corpo. Que o amor, esse estado de graça, pode muito bem ser você vindo me encontrar no final da tarde. E a gente de mãos dadas, caminhando pela São Paulo, onde as prostitutas mantêm seus bordeis.

Eu não sei se você me sente. Só sei que, nesse instante, pareço muito cativo ao que você fez por mim. E não foi nada de mais. Apenas um abraço, um carinho na nuca e um riso displicente. Que você não notou, mas eu fotografei.

Não existe conselho para um coração que não quer se desapegar, eu sei. Talvez a memória do passado valha mais a pena que a solidão do presente. Por isso te faço aqui perto. Tão perto. Que chega a doer. Só preciso saber que você leria essas palavras, que elas, de certa forma, existissem e fossem destinadas a você. Meu jeito aéreo nesses dias que antecedem minha viagem escancara: meu desejo é você aparecer no aeroporto e dizer que quer ir comigo. O resto todo ficaria para trás. Porque só de amor não se vive. Mas quem consegue viver sem amor?

Com carinho,



F. 

segunda-feira, 14 de abril de 2014

O homem


O homem se une ao asco
O asco da gênese humana
Que o pobre tem e o rico mantém
Que o bonito cospe e o feio abraça
Essa miséria universal; ausência de virtudes
Varão sem lei, mulher sem alma
Poesia que se afunda e se enlameia
Não há outro, não há próximo
Precisão narcisista, egoísta, colérica
Irradia-se o prazer incontrolado
Armadilha é os olhos da impiedade
Nos quais se enleva os interesses
E o apertar de mãos se torna pouco estreito
O abraço em braços soltos
O sorriso em dentes opacos
O amor em delírio de loucos
Amarrem-nos em camisas de força!
Porque o amor é ópio que só faz sofrer
Erga a cabeça, tu que amas
Ande adiante, sem notar ao seu redor
Tua aliança é com a pobreza, de onde vieste
Pó da terra, carne e sangue quente
Sentimento algum: só a adaga da violência
Que pega o outro pela couraça e lhe cospe inconsequências
Reis da mentira! Ladrões da verdade!
Fujam os amantes e apaixonados
Não existe mais lugar para se falar em rimas
Não há mais espaço para sentir o próprio espírito
O lobo é o homem
Que se transveste das próprias misérias
Que se vangloria das próprias imundícies
Que se percebe como merecedor do maior galardão
O homem, esse frívolo ser que sequer tem asas
E acha que a liberdade está fora de si mesmo
Pagãos! Deitarão todos no mesmo leito de terra
E as flores se ocuparão de perfumar o podre das veias
Quando, enfim, o homem mostra quem de fato é:

Chão de se pisar, memória de se esquecer.       

sexta-feira, 7 de março de 2014

Despedir-se


Ontem as pessoas demonstravam uma felicidade escancarada nas mesas dos bares. As luzes das ruas se acendiam como se ilustrassem a chama viva que ardia em meu peito: o mundo é solidão. Não que eu seja pessimista, nem melancólico. É que nascemos sós, vivemos uma vida inteira a sós e morremos abraçado ao pó da terra. Sós. E a nossa alma, em suplício, cuida de atrair outras almas que amenizam esse sentimento terreno insaciável. Talvez assim o amor nos desperta: quando a conjugação das almas é algo tão intenso, inteiro, imerso, que vira uma só. E a solidão passa a ser entendida a dois.

Ontem a cachaça com duas rodelas de limão me fez companhia até os metrôs fecharem. E você me olhava meio atônita, como se quisesse me descobrir e palmilhar sobre os recônditos do meu espírito. Me fiz de apaixonado, me interessei pelos teus assuntos triviais, rocei na tua perna como se fosse algo sem querer. Minha mente transitava, meus instintos falhavam, minha boca não esboçava poesia. Eu só queria ser analisado, só queria que você me propusesse uma conversa em que eu falaria das minhas pequenas felicidades e das minhas grandes alegrias.

Eu não tenho muitas dúvidas. Certezas tampouco. Mas ontem eu andava muito seguro dos meus passos, muito certo de que o caminho é uma sensatez: nos leva aonde sabemos chegar. Você me segurou as mãos num gesto de afeição serena. Eu sorri e disse que, naquele momento, eu estava sendo genuinamente feliz. Você chorou e respondeu que essas coisas não são para serem ditas; que a felicidade deve ser um segredo muito bem escondido. Eu concordei e mandei o garçom trazer a conta.

Ontem eu carregava sentimentos profundos. Lembranças inefáveis e uma nostalgia inteira de uma cidade que vai se despedindo de mim. Meu Cristo à minha janela; a enseada que me acena duas montanhas de açúcar; a banca de jornal onde eu nunca comprei nenhuma notícia; a madrugada barulhenta; o domingo de sol; o amor pelo céu limpo e pelos olhares amistosos de quem me recebeu. Daqui uns anos, em minhas conversas futuras, minhas remissões serão tão vagas quanto aquelas da minha infância. Mas hoje eu carrego todas as cores da minha felicidade. Hoje eu sou capaz de apontar exatamente os trechos em que eu suspirei de amores. E foram todos. O amor transborda.


Minha lucidez oscila. Meu coração parece uma bomba relógio. Meu peito infla de um sentimento incabível, que não sei ser bom ou ruim. Suas palavras ontem me atemorizaram porque me levaram a uma sublimação que jamais provei. Fui escárnio de mim mesmo e me fiz consciente: felicidade não é estado, nem um atalho, nem nada físico. Felicidade é olhar para todas as perdas e ter a certeza: meu coração é um território de rimas. De imãs. Eu atraio o que me faz bem. E assim é possível deitar a cabeça no travesseiro, segurar tuas mãos e dormir. Em paz. 

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Um trago


- Você tem isqueiro?

- Desculpa, eu não fumo.

- Eu também não. Mas eu prefiro encher a boca de fumaça do que de beijos sacanas.

- Você não precisa fazer nem um nem outro. Pode beber comigo.

- Eu aceito, obrigada. Não nasci pro amor.

- Todos nascemos, não venha com essa. Amor é questão de maturidade. A gente vê a pessoa, o olho brilha e depois se convive. Da convivência nasce o amor.

- Você já amou alguém?

- Eu desconfio que sim. Mas não tenho certeza. Não sei medir amor.

- Eu amei um cara que me pegava em casa todos os dias às cinco da tarde. Ele me levava na faculdade e depois me buscava às dez da noite. A gente brigava sempre no carro, mas depois a gente se beijava e ficava tudo bem.

- Amor é isto: é fazer ficar tudo bem.

- Eu não sou uma mulher fácil, sabe? Acho que eu implico demais com as coisas.

- Entendo.

- Minha mãe diz que eu preciso casar com alguém que seja dócil, mas eu acho que esse alguém não existe.

- Você não precisa se casar. Como não precisa fumar ou beijar. É uma questão de escolha.

- A gente escolhe amar, certo? É como se algo lá no fundo apitasse: “essa pessoa é boa de amar; ame; ame muito; faça ela feliz”.

- Não sei dizer. Nunca nada apitou em mim. Eu quase amei uma mulher que me fez enxergar coisas incríveis. Ela não gostava dos meus poemas, mas ela me elogiava o sorriso. Isso me fazia muito bem.

- E por que você não a amou?

- Porque o amor é uma simbiose. Quando se vê, os dois estão amando. Acho que não tínhamos simbiose.

- Simbiose é quando tudo se encaixa?

- Ou quase tudo.

- É sempre bom deixar uma parte de fora. Afogar-se no outro é não ter um salva-vidas.

- Não afogamos. Nem nada. O problema foi esse.

- Ela era bonita?

- Era sim. Uma beleza que mexia comigo de uma forma inusitada. Ela saía pela porta do metrô e meu coração disparava.

- Que bonito. Você gostava dela, isso é suficiente.

- Era bonito e era suficiente.

- Você percebe?

- O que?

- Que estamos falando sobre sentimentos parecidos, dando nomes diferentes?

- Talvez porque sejamos diferentes. O amor não é igual pra todo mundo.

- Talvez seja.

- Você ainda quer fumar?

- Sim.

- Então vamos procurar um cigarro, antes que o amor nos trague.

- Ou antes que eu te trague.

- Ou antes que eu me entregue.


segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Fresta


Te olho pela fresta da porta, seu corpo enfeitando minha cama de solteiro enquanto um lençol branco se ocupa de tapar apenas suas costas nuas. Fecho os olhos pra te imaginar entregue nos meus braços, sua cintura prensada nas minhas digitais e sua boca colada na minha língua. Um frio assanha meu corpo inteiro, enquanto passeio meus olhos pela curvatura da sua silhueta. Percorro a distância entre a porta e a cama, toco devagar sua nudez melancólica, como se seu corpo inteiro chorasse por me ver.

Meus olhos, apertadinhos, se inflamam e te percebem de uma forma inusitada: você parece uma flor. E caberia a mim, naquele momento, despetalar seus pudores, te entregando cada sentimento disfarçado de carne. Encosto meu rosto nas suas pernas e dedilho o espaço entre as nádegas e a lombar. Brinco de passear minha mão como se eu estivesse em um trânsito muito ameno e o ir-e-vir fosse uma necessidade urgente.

Como se uma sensação de eternidade me tomasse, subo minhas palmas em direção aos seus seios que se encaixam como duas esferas exatas no meu tato. Seu corpo ainda pende de bruços e é como se eu te abraçasse por trás, me deitando sobre seu corpo que suspira com o meu peso. Passamos a respirar o mesmo ar, de forma que o movimento dos nossos diafragmas ganham o mesmo ritmo. É quando começo a apertar o seu corpo e a movimentá-lo para que você, meio dormindo, meio acordada, pudesse se sentir dentro de um sonho muito bom.

Você abre os olhos em um lampejo, me entrega um sorriso de amor-sacana e me beija a boca com a volúpia de uma paixão sofrida. Arranca a minha roupa num furor animalesco e me arranha as costas como se precisasse se segurar em mim para não se afogar. Afogamos. Seus ruídos intensos me convidam para margear sua nuca, lambendo o rastro do seu perfume ainda incandescente. Minha língua infiltrada na sua orelha, minhas pernas enroscadas no seu quadril, meus indicadores incinerando a ponta dos seus seios sem qualquer gentileza que me é natural.

Seu ardor. Meu desejo. Seu carinho de amor-eterno. Meus sentimentos aflorados em notas. Nossa música sendo sustentada por um ritmo de corpos indiscretos. A fala. O falo. A entrega. Profunda. Internamente precisa. O suor e o sufoco. Os gemidos e o estremecimento. O encontro das almas e o pedido genuíno de casamento. A cumplicidade nos lábios mordidos, nas carnes rasgadas, na pele arranhada.


Não, meu amor. Isso tudo só seria verdadeiro se eu tivesse adentrado à porta ao invés de apenas bisbilhotar pela fresta. Seu sono é irretocável. Mais bonito te ver dormir. O amor é deixar a paz tomar conta e permitir seus olhos enxergarem um caminho melhor. Dou meia volta depois de encostar a porta e checar que o lençol ainda te cobre pela metade. Ninguém precisa ser inteiro. Ninguém precisa de despedida. Ninguém precisa de nós dois.   

sábado, 18 de janeiro de 2014

Chama

O chão não mais samba
O são não mais sente
Nem só não mais rir-se
Nem o rio não mais se insinua
Des’ que o tempo parou atrasado
Secou-se o céu azul metálico
E acizentaram-se as sequoias.
Pois chamem as ordálias!
Costurem-se as chagas!
Chova-se na palma da alma enlameada
Para que o presságio se esvaia
Para que o sol de novo se ascenda
Para que o brilho se dissolva no rosto
E os passos,
Que rompem no reto espaço,
Clamem pelo amor: esse chiado do peito silente
Essa chama que sibila na sombra ardente
E deixa o suplício clemente:
Anestesia-me, ó, seringa da mortalha
(que a dor não é boa de doer).


sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Pleito

Predigo prazer perpétuo
Ao meu peito profano
Que procura espeque no teu passo.
Prevejo um presente polido
Reluzente como peça de porcelana persa
Que reproduz tua pele ao premeditar do por do sol.
Pressinto meu passado 
Permeando teu pensamento
Este que, pendurado feito pingente 
No teu pescoço plácido,
Prende minha pálpebra 
Como um pressentimento passageiro.
Pernoito teus profundos pântanos
Teus passivos prantos
Teus prediletos poemas
Pergunto se posso, talvez um dia,
Publicizar o meu pleito:
Que cada pedaço meu te sirva de leito
Que cada amor eleito te aponte meu peito
Preciso ser teu primeiro. Tua parte inteira.
Teu prenúncio. Teu mais sincero amor.