sábado, 29 de maio de 2010

Nonada


Chovia. Uma chuva fininha e desorganizada que distribuía pingos para todos os cantos, de forma que o guarda-chuva não adiantava de muita coisa. Meus passos eram lentos e arrastados, como se eu quisesse fazer o tempo me acompanhar em um ritmo de eternidade. Guardava comigo as impressões das pessoas que caminhavam às pressas e não queriam se molhar. Apenas uma chuva, pensei. As pessoas têm medo. Evitam a água com medo do resfriado, evitam o amor com medo de decepção. Invejo a coragem dos homens das cavernas. Sim, às vezes sou radical nesse ponto.


Então ela me ultrapassou com uma sombrinha vermelha fluorescente e os pés descalços. Aquilo me chamou a atenção, como aconteceria se uma girafa, solta na avenida principal, fosse motivo de um congestionamento exatamente porque fazia um esforço para mordiscar os fios da rede elétrica pendurados de um poste a outro. Ela tinha passos apressados, mas era descompromissada com o tempo. Caminhava para lugar algum, querendo mesmo aproveitar o chão molhado e as poças de água para fazer afundar os dedos metodicamente pintados de um rosa muito discreto. Pelo trejeito, julguei que ela fosse a personificação de nonada, expressão que Guimarães Rosa empregava muito bem para fazer significar qualquer coisa.


Desacelerei meu ritmo, querendo guardar aquela cena na minha memória já fraca por tanto abarrotamento de informações acadêmicas. Estudar, às vezes, deixa agente alienado da poesia declamada pelo cotidiano. Todo dia ela faz tudo sempre igual, e Chico transformou isso em uma coisa bonita. Pois a moça, com os pés no chão e a sombrinha vermelha fluorescente era a lembrança de que as rimas ainda se operavam debaixo da chuva. Então ela sumiu dentro da multidão que corria dos pingos. Meu coração marchou junto, na certeza de que eu a encontraria dali a alguns dias na praça, comendo pipoca. Ou tocando violão na porta do restaurante cheio de gente granfina. Fato é que ela não fazia tudo sempre igual. E ainda assim era cotidiano. Era nonada, cabendo dentro do tudo que se tem.


terça-feira, 25 de maio de 2010

Na esquina, um amor.



Com ela, a menina do rock.



O amor me apanhou na esquina. Tudo em mim andava distraído, inclusive o cenário à minha volta. A roseira do quintal ao lado parecia ir espreguiçando ao som da água que saía da mangueira. As nuvens, em ar displicente, estalavam os dedos enquanto abriam os olhos ainda pesados de sono. Meu coração pulsava desconfiado, numa marcha esquisita de quem pressente um ruído longínquo de qualquer coisa muito boa. Era assim o sentimento que ziguezagueava no meu peito. Até que quebrei para a esquerda, num despropósito de quem deixa o balão de gás escapar das mãos. Dobrei a esquina e amei. Instantâneo. Não me julgo normal, mas tal fato não foi nenhum indício de demência. Amei com toda a minha razão, com todos meus abraços, beijos e com toda a minha vontade de ser humano. À minha frente, todas as sombras e todos os objetos que surgiam causavam um comichão por dentro. Era o aviso do novo hóspede que, cheio de malas, as abria uma a uma na certeza de que encontraria ali algum presente capaz de me sinalizar para que veio.


E eu aceitei. Aceitei assim como se aceita algo impossível de se recusar. A vida, de fato, estava me presenteando. Não havia como negar, não havia maneira alguma para esquivar. Nossos olhos de caminhos opostos e cheio de fugas acabaram se cruzando. Os pés, por conseqüência do olhar, tomaram um único caminho e se encontraram no mesmo lugar. Parecia, naquele momento, que uma força maior nos movia. Parecia que havia ali, algo que nos impulsionava um para o outro. O universo conspirava ao nosso favor. O destino fazia o seu papel. E a gente, frente a frente, simplesmente mostrava através do mais belo sorriso o que se passava por dentro.


Impossível não ter notado as doze mil borboletas que acompanhavam seus cabelos e que, de forma imprudente, se enfileiravam para adentrar minha boca e fazer caminho no meu estômago. Gestos eram coisas desnecessárias naquele momento. O amor era cena, estado febril dos meus sentires, todos juntos. Eu ia amando como quem rema um barquinho de papel pronto a se esfacelar na água. Tornei-me observador de todo seu brilho, de toda a órbita que te circuncidava como se você fosse uma estrela inaugural. Amar é tão fácil, pensei, enquanto analisava como seria bom tocar seus dedos. Perdi minha desesperança no seu colo e entornei um sorriso bobo para que você amparasse o sentimento que dele escorria. Com os olhos, escrevi algumas cartas simultâneas e deixei que as letras fossem pousar, ousadas, aos seus ouvidos. De tudo, amei seu silêncio. E a forma como ele se portava, tão docemente, dentro de você.


Foi nesse momento que nos conhecíamos mais. O céu, com o sol luminoso e as nuvens que mais pareciam algodão, completava o cenário de um casal apaixonado que não se importava com a rapidez dos fatos e o pouco tempo de contato. De fato, ali, existia algo místico. O encontro de duas almas que, por certo tempo, andaram perdidas pelo caminho da vida. Nosso amor foi pré-mediato, pré-escrito em folha de almaço pela criança mais sonhadora da aula de português. E eu, ali, obedecendo aos desejos da alma mais ingênua, me vi ao seu lado, ouvindo apenas sua respiração. Emoção. Senti, de repente, suas mãos afagando meus cabelos. Olhei para você, bem no fundo dos seus olhos e com os dedos contornei o desenho da sua bela face. Você, notando o que aconteceria na próxima cena, tomou a mesma atitude. Em questão de segundos, o beijo que se anunciava, prenunciava a nossa eterna união, aconteceu. Dividíamos o momento e trocávamos borboletas. Foi assim e sempre será, de janeiro a janeiro. Para o resto de nossas vidas.