quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Essas coisas de cachorro


Quando pequeno, não era muito fã de animais. Ainda hoje tenho minhas resistências, embora admita peixes em aquários. No meu aniversário de seis anos, meu pai apareceu com um dálmata envolto em um laçarote vermelho. Meu presente. O sorriso amarelo que me brotou dos lábios fez minha mãe entender que aquele não era o presente mais esperado. Aceitei o animal, sem sequer conseguir ficar a dois passos de proximidade dele.

Passei a observá-lo de longe. Quando lambia as patas, quando procurava o próprio rabo, quando corria atrás das andorinhas no quintal, quando virava o prato de ração e rodava três vezes em cima da mantinha de dormir, antes de deitar. Vez ou outra nossos olhos se cruzavam e ele me encarava, sem piscar, com a cabeça tortinha, procurando me decifrar. Peguei carinho por ele.

Do cafuné, passei para as brincadeiras no quintal. Corríamos e rolávamos juntos na grama, feito amigos de longa data. Houve dias em que o fantasiava de pirata, amarrando um lenço entre as suas orelhas e prendendo um tapa-olho que sempre escorregava para o focinho. Outro dia, ensinei-o a catar as bolas de meia, depois de lançá-las o mais longe possível e a roubar as roupas que a vizinha implicante pendurava no varal. Certa vez, julgando-me um exímio nadador, quis jogar o dálmata na piscina para treiná-lo. Qual foi a minha decepção ao descobrir que ele nadava melhor que eu.

Levou um tempo para eu batizá-lo com um nome. Berinjela, por causa de uma mancha no pescoço que tinha esse formato. Como Berinjela é um nome comprido e não muito amistoso, virou Bê. Tamanha foi nossa amizade que à noite, depois que meu pai trancava a porta da varanda, eu pulava a janela e levava o cão para deitar na minha cama. Era nosso segredo. Foi assim até quando Maria começou a estranhar os pêlos branco-preto no meu lençol.

Berinjela se enrabichou com a cadela da esquina. Uma toda empinada que desfilava com a dona todo dia de manhã. Senti-me traído e jurei não dar mais espaço na cama ao dálmata. A partir desse dia, passei a ouvir uns uivos baixinho debaixo da minha janela. Eu tinha pena. Mas não dei o braço a torcer.

Meu pai começou a reclamar do comportamento rebelde do Berinjela. O jardim amanhecia esburacado e as bromélias da minha mãe mordiscadas, quando não arrancadas. Os sapatos sumiam e eram encontrados no quintal três dias depois, cheios de terra. Berinjela passou a implicar com as andorinhas, latindo imprudentemente durante toda a tarde. Por fim, estranhando Maria, rosnava toda vez que ela batia o tapete para tirar o pó.

A velhice de Berinjela nos rendeu muitos incômodos. Já cego e moribundo, resmungava da ração e latia até para os conhecidos da casa. A decisão do meu pai, na época, foi levar o animal para longe, onde poderia morrer em paz. Quando o plano me foi contado, solucei no meu travesseiro, sentindo a perda de um amigo.

Berinjela nunca mais voltou. O silêncio passou a imperar no quintal. E, por muito tempo, confesso, ainda pude ouvir o uivo do dálmata debaixo da minha janela. Ainda hoje, ao fechar os olhos para dormir, vejo a cabeça dele tortinha e as orelhas se mexendo timidamente enquanto me pesquisa. É sua forma eterna de se despedir de mim.


terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Miguelzim

“Miguilim não tinha vontade de crescer,

De ser pessôa grande,

A conversa das pessôas grandes era sempre

As mesmas coisas secas, com aquela necessidade

De ser brutas, coisas assustadas ”.

Manuelzão e Miguilim (Guimarães Rosa)



- Miguelzim?

- Que susto! Por que você está sussurrando?

- Não quero que ninguém me veja aqui.

- O que aconteceu? Não consegue dormir?

- Não. Posso te contar um segredo?

- Pode. Senta aí na beira da cama.

- Miguelzim... você é meu irmão mais velho. O pai diz que eu tenho que ser corajoso feito você.

- Você é corajoso. Você salvou a mãe daquela barata voadora, lembra?

- Eu sei. Mas é que quando chove assim, que nem hoje, me vem um arrepio por dentro. Esse barulho todo é Deus que fica bravo com a gente?

- A vó diz que é. Que quando cai o trovão perto do nosso ouvido, é porque precisamos arrepender dos nossos pecados.

- Eu tenho medo, Miguelzim. Você acredita em assombração?

- Assombração não existe.

- Mas a Martinha já viu. Ela jura que já viu.

- A Martinha é mentirosa. Ela diz isso pra você ficar com medo. Eu não acredito nela.

- Mas ela é mais velha que você.

- Não acredito e pronto.

- Miguelzim?

- Oi.

- Não conta pro pai que eu vim pro seu quarto?

- Não vou contar.

- Nem se a gente brigar feio um dia e você ficar com muita raiva de mim?

- Isso eu não posso garantir. O que você faria pra gente brigar feio?

- Não sei. Você é meu melhor amigo.

- Então pronto. Seu segredo estará bem guardado.

- Miguelzim?

- Oi.

- Você, quando era assim mais pequeno, que nem eu, tinha medo de trovão?

- Tinha. Eu me cobria todo até o alto da cabeça e ficava encolhidinho na cama, até o barulho passar.

- Você era mais corajoso que eu.

- Não era não. Eu nunca matei uma barata voadora.

- Posso segurar sua mão só um pouco?

- Pode.

- Amanhã o pai vai me dar uns trocados pro lanche. Te compro um refrigerante no recreio.

- Não precisa.

- Você é o melhor irmão, Miguelzim.

- Agora fica quieto. Não há jeito melhor de perder o medo de trovão do que ouvi-lo indo embora. Percebe como o barulho vai ficando cada vez mais raro?

- É verdade.

- Acho que você já pode ir pro seu quarto. Não há mais perigo.

- Tá bom.

- Fecha a porta.

- Miguelzim?

- Oi?

- É tão mais fácil ser corajoso ao seu lado.


sábado, 11 de dezembro de 2010

Essas coisas de primeiro amor


Comecei a escrever aos doze, quando as gotas de chuva na minha janela visitaram meus ouvidos em uníssono. Andava lendo muito romance policial e, naquele momento, muito possivelmente, larguei a Agatha Christie e busquei um papel e uma caneta. Na minha imaturidade, cuspi algumas palavras desajeitadas, uma poesia meio torta e inconvincente. Foi meu primeiro parto.

Depois disso, os versos passaram a me fazer visitas noturnas. Eram espasmos de dor no peito que se transformavam em coceira na palma da mão. Apalpava o bloco de notas que vivia na cabeceira da cama e, ainda em transe por causa do sono, rabiscava minhas rimas adormecidas.

Levava meus papéis às meninas da escola que conheciam bem essas coisas de sentimento. Queria que elas dessem algum sentido para aquelas letras desajeitadas e para aquelas escritas forçadas de quem lia romance policial. Sei que elas amavam. Ou fingiam amar, para me dar qualquer incentivo amador, como eu mesmo era. De todas elas, Fernanda merecia minha melhor atenção. Queria que ela amasse todas as poesias, que sentisse todas elas, que soubesse da minha admiração guardada em cada palavra. Ela foi meu primeiro amor.

Anos depois, sentado em uma cafeteria no centro da cidade, tomava meu expresso enquanto lia Dostoievski e rascunhava algumas ideias inspiradas pelo autor. Espiei por cima do livro e vi Fernanda entrar numa calça jeans surrada e numa blusa de frio listrada. Na mão direita, uma sombrinha molhada que denunciava a tempestade que caía do lado de fora. Na certa, ela entrou ali pra se esconder da chuva. Nossos olhos se encaixaram. Ela sorriu, sem demora. Foi se aproximando. Meus olhos eram só dela.

Perguntou se poderia assentar. Eu fechei o livro, sem me lembrar de marcar a página em que havia parado a leitura, e disse que sim, que poderia se assentar. Ela continuava a mesma. Conversamos sobre os anos passados, sobre o tempo de colégio, sobre os professores e colegas. Depois falamos da faculdade, tempo em que ficamos sem ver um ao outro. Me perguntou dos meus escritos, se eu havia encarado a profissão de escritor. Eu ri, envergonhado. Ela lia meus poemas, lembrei. Lia e fingia amar todos. Menti, respondendo que não continuei a escrever. Ela fez cara de espanto e disse que sempre adorou o que eu escrevia. Que via em mim um futuro brilhante. Eu agradeci e mudamos de assunto.

A chuva ficou mais branda. Ela se levantou e me deu um beijo no rosto. Nossas mãos se tocaram por cima da mesa, quase sem querer. Eu disse que fora bom tê-la visto. Ela sorriu e disse que torcia para um dia ter um livro meu na estante. Depois, pegou a sombrinha e saiu da cafeteria.

Não me concentrei mais na leitura. Meus pensamentos fugiram pra algum lugar distante, de sorte que eu bebi a xícara vazia três vezes, sem me dar conta de que não havia mais café. Depois, rabisquei algumas palavras no meu bloco de notas. O primeiro amor é como um livro fechado desatentamente.

Paguei a conta e enfrentei a chuva durante o meu caminho de volta para casa. Havia um livro a ser colocado na estante.