quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Décimo andar


Quatro, três, dois, um! E virou-se o ano. Fogos jogados num céu escuro, colorindo uma noite cinzenta. Apitos e barulho. Muito barulho. Podia ouvir os vizinhos do primeiro andar, mesmo ele estando no décimo.


A vida seria bonita dali pra frente. Ano novo, vida nova. Não era esse o clichê de sempre? Fazer caridade, escrever um livro, plantar uma árvore, comprar uma agenda. Um encher de itens, um fôlego de coragem, um gosto de esperança inigualável. O que era aquilo? Ares de um ano que chegava? Poderia muito bem ser o álcool do champanhe.


O mundo era todo festa. Ele, sozinho, no décimo andar. Debruçado na janela, via os fogos. Nunca gostou de fogos. Eram bonitos, mas se estilhaçavam. E coisas que estilhaçam, morrem. Nada mais incoerente. No ano novo, as pessoas tinham que plantar roseiras. Fazer nascer. Eis o espírito.


E os fogos tampavam as estrelas. Que, cá pra nós, sempre tiveram um charme maior nas noites de reveillon. Ele olhava cada ponto luminoso e ás vezes chorava. Estrelas sempre lhe fizeram chorar; e isso soava tão cafona! Se pudesse escolher, brilharia ao invés de ser. Mais simples. Mais belo.


Fechou a janela. O ano nascia lá fora. Dentro dele, ficava. Festejar o que lá? As pessoas se enganam. Ficassem quietas, descobririam que o novo é um velho nascido outra vez. Deitou o corpo no sofá e fechou os olhos. Não quis ver o ano acabar de nascer. Barulho demais o irritava.


Virou pro canto. Dormiu.



* E em janeiro eu volto! Boas festas a todos vocês.


sábado, 13 de dezembro de 2008

Teresa


As pernas de Teresa eram platônicas. Estúpidas, à primeira vista. Depois, um ode ao lirismo. Cantavam passos ao subir qualquer ladeira de pedras enfileiradas, num requebrar de versos soltos. Quem as via, não imaginava a dor pungente que ardia nas batatas. Como agulha, o sofrimento da vida inteira lhe pesava sobre as pernas.


Teresa tinha olhos de quem nasceu em outros milênios. Íris envelhecidas como qualquer fotografia em preto-e-branco. Contavam histórias de sabedoria. E, quem prestasse bem atenção, veria uma lágrima no canto dos olhos, na iminência de um deslize. É que Teresa guardava lembranças e uma saudade gigante que não sabia controlar muito bem.


Por fim, quem conhecesse bem Teresa, veria que ela não era só pernas, não era só olhos. Teresa tinha um quê de poesia inacabada, tinha um jeito de equilibrar segredos sobre os ombros. E esse mistério todo trazia a perdição e um desentendimento sereno, quase cúmplice. Porque Teresa, quando andava, deixava entornar pó de candura. E, nessa hora, o Espírito de Deus voltava a se mover sobre a face das águas.


* Teresa é poesia do Manuel Bandeira. Leia aqui!

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Agentes secretos


Ele viu que a moça parou perto da mureta e acendeu um cigarro. Receoso, ele esperou uns poucos minutos. Aguardou até que ela tragasse até o fim. Não perdeu tempo em observar que se tratava de uma moça bonita. Cabelos negros e longos, olhos amendoados, lábios delicadamente finos. Quando ela tirou um espelhinho da bolsa tira-colo, entendeu que era o sinal.


- É você? – ele pegou a moça desprevenida.


- Oi?! – ela, assustada, numa vozinha de choro, linda.


- Tenho algo para lhe dar. – disse ele, abrindo a pasta e tirando um embrulho.


- Tem certeza? – ela, desconfiadíssima.


Ele segurou o embrulho.


- Você não estava à minha espera? – ele perguntou.


Ela sorriu. Dentes grandes, brancos. Ele sentiu o cheiro da bala de menta que ela chupava.


- O que tem nesse embrulho? – ela perguntou; parecia ansiosa.


- Como assim? Operação 0X88. Entrega sigilosa ao Adamastor.


- Você tá brincando! – ela zombou - Adamastor morreu.


- Morreu?! – ele desapontou-se.


- Sim. A operação furou. Pode ficar com o embrulho. – ela disse, benevolente.


- Eu... não sei o que dizer. – ele, realmente, estava perdido.


- Não se preocupe. Em breve, informarão você da nova chefia.


- Eu agradeço. – e ele guardou o embrulho na pasta. – Você quer tomar um café ali na frente?


- Obrigada. – ela sorriu. – Estou esperando o agente da operação Y1512.


- Então está certo. – e ele se afastou, sorumbático.


Ficou escondido de longe, observado a moça que, dentro de quinze minutos, entrou em um carro preto e sumiu de vista. E ficou chocado com aquela história toda de operação Y1512. Era a primeira vez que aquela cantada não dava certo. Nunca tinha paquerado uma agente de verdade.


Ela, por sua vez, entrou no carro e comentou com a irmã sobre como tinha se safado de uma cantada. A irmã deixou ecoar uma gargalhada. E a falsa agente secreta acendeu um cigarro, sem perder a pose.


sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Motel Leblon


Ela acordou com os olhos cheios dágua. Sentiu o cheiro do desodorante dele impregnado no lençol. As lágrimas, involuntárias, passaram a molhar o travesseiro abarrotado de sonhos.


Não havia mais resquício nenhum dele. O cinzeiro, talvez. Foi o que restou: cinzas de um cigarro depois de uma noite promíscua. Ah, como se sentia mal. Tinha se feito vulgar. Encarnou qualquer dona de bordel e esqueceu de todos os ensinamentos bíblicos ministrados pelo seu pai, quando ela era criança. Não teve pudor algum. Foi animalesca, como nunca imaginara um dia poder ser.


E agora se lembrava dos olhos dele. Olhos ausentes, amando outra que não o queria por um motivo qualquer. Percebera que não havia um gostar correspondido. Ela, apaixonada, fazia truque com os dedos, lábios, línguas. Queria atraí-lo sem saber como.


Restos. Havia restos de um diálogo perdido em sua mente. Ele dizendo que sonhava em conhecer Milão, roubar um beijo da Angelina Jolie. E ela ria, feito boba. Ria pra agradar, pra se oferecer. E jogava os cabelos a cada dez minutos. Trocava as pernas, deixando o decote desenhar as coxas.


Foi até a cozinha ainda sentindo o cheiro dele em todos os cantos da casa. Notou os pés imundos. Tal qual a alma. Ele foi embora sem deixar vestígios. O copo da noite anterior onde ele havia bebido água. Agora estava lavado, no escorredor. Ele mesmo fizera questão de apagar sua presença na casa dela. Como se adivinhasse que ela desejaria isso quando acordasse.


Colocou a água para ferver. Açúcar. Pó de café. Sentiu uma pontada no estômago. Um grito vindo de dentro, um pavor que se transformava em onda de areia que subia pelo seu esôfago e arranhava o céu da garganta. Foi cuspindo os grãos. Cada um era pedaço do seu romance carnal, da sua entrega imperfeita, imprópria.


Deveria ter sido donzela. Provar que havia estudado francês, alemão e espanhol. Sabia tocar piano e cozinhava alguns pratos saborosos. Conhecia um pouco de política, dominava a economia e tinha vontade de ser diplomata. Vestia-se bem, tinha estilo, conhecia pessoas importantes. Namorou filho de prefeito, teve um lance com um senador. Fora virgem até os dezoito anos. Amava os pais, tratava bem dos idosos, adorava crianças. Não gostava de futebol, mas sabia torcer.


Todas suas prendas, suas habilidades, seus talentos. Todo seu brio, sua vaidade, seu louvor. Trocados por uma noite de prazeres inúteis, por uma cama velha em um motel de periferia. Motel Leblon. Conhecido nas redondezas. Agora, era bem ali, na sua casa, dentro dela.


Lá fora, um vento gelado. E um vizinho ligou o som. Bob Marley, como era de se esperar. Despejou o café fumegante na xícara e sorveu. Café, para todos os males, espanta o mal-humor.


E ela chorou.


Porque queria um romance.