domingo, 13 de dezembro de 2009

Nosso outro primeiro encontro


Então você chegaria com um sorriso tímido na face e mãos trêmulas que não saberiam onde se esconder. Eu riria de você tentando disfarçar seu nervosismo, mas também lembraria do meu, que pareceria um gigante invisível ao meu lado. Nos olharíamos por quase um minuto antes de nos entregarmos a um abraço longo e demorado com suspiros de alívio e sorrisos – dessa vez não tão tímidos.


Eu pegaria você pelas mãos e te levaria pra algum lugar muito meu a fim de que você conhecesse e passasse a ser muito seu também. Sentaríamos um de frente para o outro e eu olharia dentro de você, usando um binóculo fantasioso que eu tenho. Depois, arrancaria do meu bolso um ramalhete de poesias e ficaríamos horas lendo e comentando cada estrofe, dizendo sobre como aquelas palavras carregam muito de nós dois.


Assim, quando já estivéssemos bem à vontade, embriagados da felicidade de podermos tocar nossos dedos sem o medo irritante de sermos descobertos, eu diria a você algumas frases engasgadas. Aposto como eu ficaria nervoso nesse momento. Talvez eu até começasse a gaguejar e diminuir o tom de voz, desejando um terremoto naquele instante para que a gente tivesse de sair correndo. Mas eu lembraria que você nunca esquece nada e, possivelmente, me ligaria dois minutos após o terremoto e me pediria pra continuar a conversa – aquela interrompida pelo abalo sísmico psicológico.


Mas se não houvesse terremoto – o que é muito provável, considerando que estivéssemos no Brasil – eu pediria que você fechasse os olhos para eu dizer tudo. Só quando você estivesse com as pálpebras cerradinhas e um sorriso torto no corpo inteiro dizendo “Eu não acredito que uma pessoa possa ser assim” – só então eu começaria a falar com segurança.


Eu diria que você é o meu amor e que eu gastei dois anos de versos para falar de você – ainda que indiretamente. Falaria que eu gosto muito do jeito como você me trata, ainda que eu, por vezes, não consiga retribuir. E que sua voz ao telefone parece enviar qualquer tipo de corrente elétrica que passeia por meu corpo todo, acionando mil setecentos e doze notas diferentes. Percebe que eu canto, enquanto falo com você?


Também diria que eu gostava dos seus cachos e de como a poesia combinava muito com eles. Mas também gosto do cabelo liso – porque se eu não dissesse isso você ficaria chateada. Gosto muito dos seus torpedos gayzinhos e do seu mau-humor sarcástico que me mata de rir. E dos seus exageros e dramas, pra me comover. Gosto das suas histórias demoradas, dos detalhes, da forma como você me coloca dentro delas e de como você fica bonita narrando e gesticulando ao mesmo tempo.


Eu diria que nunca quis uma pessoa tão perto. E que, em alguns momentos, me dava raiva não poder ir até sua casa, bater na porta, encontrar você com o rosto marcado de travesseiro, com os olhos pesados e um pijama combinando com as pantufas. E depois de rir da sua cara, entrar para tomarmos o café da manhã. Eu sei que você não toma café da manhã – já até brigamos por isso – mas eu te faria comer, nem que para isso eu tivesse que simular uma estúpida chantagem: “Se não comer, nunca mais falo com você”. E sei que você comeria tudo, com muita pressa.


Diria que eu fico imaginando o dia do meu aniversário de setenta anos. Nós dois velhinhos, com os olhos satisfeitos e os dedos entrelaçados com a mesma força da juventude. Fico imaginando que você, pra me surpreender, prepararia um discurso. Levantaria no meio de toda aquela gente e, com a voz rouca e fraca, leria sua carta com pausas de emoção, enquanto eu entoaria um choro escandaloso, sem vergonha de repetir em cada lágrima: fiz a escolha certa. Penso que suas palavras falariam muito bem de mim e eu iria embora deste mundo com a certeza de ter vivido aquilo que Vinicius chamou de um grande amor.


Eu diria que você me completa de forma a não deixar nem uma brechinha. Daí eu assumiria acreditar mesmo naquela velha história de partes que se fazem todo. Diria, por fim, para você abrir os olhos. Imagino que, ao abrir, você me faria um carinho implícito. Eu te abraçaria e diria que, sim, tenho mais uma surpresa. Então eu tiraria da minha mochila um presente que deixaria você muito louca, dando gritinhos de satisfação. Você me apertaria e me agradeceria eternamente. E nós comeríamos juntos o seu presente – um pote de sorvete de cajá.


Depois, provavelmente, você me chamaria de meu benzinho e se enroscaria no meu peito, dizendo que só tem um pensamento: ser só minha até morrer. Com o coração se manifestando por meio de sons inapropriadamente audíveis, eu te olharia com olhos mansos, lembrando de como desejei aquilo tudo. De como desejei, a vida toda, você.


quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Passarinho


- Que tem de bão aí, na panela?


- Tem nada não, sai de perto.


- Ih, acordou do avesso, muié. Tá de coisa?


- E eu lá sei o que é coisa?


- Coisa, daquelas que muié sempre tem.


- Não, tenho coisa não. Tô só pensatória mesmo.


- Ainda tá triste com o passarinho? Eu já lhe disse, muié, um passarinho de nada, aquele. Amanhã eu vou lá na venda do Tão e te trago outro.


- Não é isso, home de Deus. O pequenino era que nem filho pra mim. Era dar seis horas, ele começava a cantar pra eu acordar. Então eu dava o de comer pra ele e ele ficava com aquelas asinhas salientes, feito menino endiabrado. Dispois a gente cantava junto, sabe? Ele tinha uma vozinha fraquinha, coitado. E eu acompanhava ele, pro canto ficar bonito.


- Tá doida, é?


- Acontece que me acostumei. Era parte do meu dia parar, dar atenção, dar o de comer, cantar com ele. E quando ele pedia pra dar um voltinha com aqueles olhinho apertado? Eu abria a gaiola e ele ia pintar nos pé de manga do quintal. Ia e voltava, feito filho obediente. Tão bonitinho, o pequeno.


- Muié, para com isso de chorar! É um animalzinho. Como pode ter pegado amor com um bicho que nem sabia seu nome?


- Ah, sabia sim! Sabia sim, viu? Que eu ouvi uma vez ele me chamar e eu até me voltei apavorada, pensando que era coisa de outro mundo. Mas vi que era ele, com aquela vozinha fraquinha, coitado. Veio cantando pro meu lado, dizendo que meu nome era bonito. E repetia: Ma-ri-a.


- Muié do céu, tô ficando é preocupado com cê. Que isso agora de ouvir passarinho falar? Vou ligar pro doutor.


- Carece não, home. É coisa que não explica, de quem inventa de escutar o que não deve por gostar demais. Sentimento faz aparecer algumas coisas do lado de fora também.


- Sentimento que nada. Isso é doidice.


- Me deixa! Vou acabar de fazer o almoço e ocê trata de arrumar alguma coisa pra fazer. Home impertinente, diacho!


- Isso aí de sentimento por fora, é bom? É que nem meu abraço, assim?


- Sai, home. Sai que a panela tá pegando fogo.


- Não ligo. Canta pra mim, canta passarinha.


- Seu bobo! Coisa mais besta. E isso não é hora de namorar. Tô suja.


- Tá é linda.


- Cê acha, mesmo? Mais que a Carmélia?


- Carmélia não canta.


- Eu perguntei isso?


- Não importa. Vai cozinhar, vai. Vou na venda do Tão. Te compro um presente. E você se enfeita pra lua que vai assistir nosso cantar hoje.


- Você não canta.


- Quem disse?


- Eu disse.


- Pois vai ver só.