quarta-feira, 30 de abril de 2008

O telefone


O telefone parecia zunir dentro da sua orelha. Dentro dos seus sonhos abarrotados, ela se viu indo atender o aparelho, trocando passos trôpegos. Engraçado! Ela tinha atendido, mas o barulho continuava. Abriu os olhos e percebeu que o som era real e ela ainda estava deitada na cama com o gosto de bebida na boca. Apertou o travesseiro contra o ouvido exposto ao barulho e tentou dormir. Mas o barulho era insistente e parecia atravessar todo o corpo, levando uma carga elétrica e despertando cada pedaço de vida que ainda havia dentro dela. Sentou-se à beira da cama com o corpo mole, os olhos apertados de sono, a boca amarga e os cabelos desajeitados. Percebeu que tinha dormido de jeans e com a camiseta nova, a camiseta cara que havia comprado na butique duas semanas atrás. Sentiu o frio entrando pela janela entreaberta e, junto dele, a solidão vindo sorrateiramente para seu peito. Teve uma vontade incontrolável de chorar, mas aquele barulho insuportável não a deixava pensar em mais nada. Caminhou cambaleante pelo quarto, abriu a porta e seguiu o corredor que parecia um caminho infinito. Tudo tão escuro. Seria noite ainda? Desequilibrou-se perto da estante na qual se escorou e acabou derrubando dois ou três livros. Sentia-se morta e com ódio daquele aparelho que insistia em fazer barulho, em irritá-la profundamente e tirá-la do seu precioso sono. Tirou o fone do gancho e percebeu a garganta embrulhada. O choro saiu de repente. Viu-se soluçando e derramando lágrimas sem dizer alô à pessoa insistente do outro lado. Os choros se transformaram em gemidos e seu corpo todo estremeceu. Não largava o telefone, parecia estar grudado em suas mãos. Era sua defesa, sua arma contra aquela tristeza-monstro dentro dela.

- Maria? – a voz veio do outro lado como um despertar para a realidade.

- Alô! – foi o que ela conseguiu falar.

- Maria? É você? Por que está chorando?

- Não sou Maria.

- Onde está a Maria?

- Não tem Maria nenhuma aqui.

- Ah, me desculpe. Devo ter ligado errado. – e desligou.

Que Maria seria aquela que merecia um telefonema tão desesperado de um homem? Voltou para o quarto arrastando o pé. Deitou-se como estava e fechou os olhos e a alma. Lá longe o barulho voltou. Alguma Maria estaria desesperada à espera de um telefonema que não vinha. Deixou o telefone tocar. Embora estivesse irritada, manteve-se fria e tentou dormir. Jamais passaria de novo pela vergonha de chorar para um desconhecido.

28 comentários:

lucas rolim disse...

Forte
Angustiante
Triste

Bárbara Matias disse...

Gosto muito da id�ida de descrever uma cena t�o bem que o leitor pode apreender o personagem, pode compreender o que se passa por ali. � uma cena t�o simples, t�o curta, mas que descrita t�o bem, que vivida t�o fortemente por voc� que nos toma e nos leva junto a montar essa cena e areviver esses sentimentos.

N�o quero v�-la chorar pra um desconhecido de novo.

Renato Ziggy disse...

Essa sua posição de narrador onisciente me conduziu muito bem aonde você queria que eu fosse. Eu fui. E enxerguei com clareza os fatos, ouvi a voz dela chorar, o telefone tocar, senti até o gosto amargo dela na boca. Minha memória sensorial foi absolutamente manipulada por você, portanto tenha consciência da sua tamanha responsabilidade! E parabéns pela narrativa! Fluiu feito água. Amplexos!

Anônimo disse...

Não acho que chorar, para qualquer pessoa que seja, seja vergonha. Chorar lava a alma, e, às vezes, é melhor chorar para um desconhecido, que não sabe a nossa história, que não pode nos apontar os erros. Pode apenas nos consolar, porque não conhece nada de nós. Eu acho assim...

Adorei o texto.

Beijos.

Anônimo disse...

Como você consegue escrever textos assim?
São simplesmente perfeitos.

Esse foi um dos que mais gostei ( eu tenho a leve impressão de que já disse isso...)

;)

Jaya Magalhães disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ni ... disse...

Moço, você tem simplesmente o dom!! Parabéns!! Beijo

Araúja Kodomo disse...

O texto é lindissimo...
Mas nao acho que seja vergonhoso chorar em frente a um desconhecido.
Às vezes sao com pessoas que a gente nao conhece que conseguimos desabafar melhor... ***

leila saads disse...

Quem sabe no segundo telefonama não viria embutido, mais tarde, uma declaração de amor...

:*

Stella disse...

Fiquei triste com o final...
Me fez pensar se devemos sempre ficar à espera de uma chamada que, muitas vezes, nunca acontecerá ou se não seria melhor tirar o telefone do gancho e esquecer a espera infinita.
Pode parecer pessimismo mas a esperança não deve ser confundida com espera. E eu não soube definir se a moça esperava por uma chamada que a arrancasse de sua solidão, ou se esperançava que a chamada que atendera fosse daquela pessoa de quem realmente esperava uma ligação...

Confusa seu texto me deixou. Mas que ele é tocante, ah, isso é...

Bjo pra ti, Filipe, e bom feriado!

Flá. disse...

Ei Filipe!
Mil perdões por não ter vindo aqui antes. Lembra de mim? Sou a gêmea da Fernanda. Mudei de blog...agora não estou no myspace, mas será um prazer recebê-lo no meu blogspot (http://minhasmelodias.blogspot.com)!

Gostei muito do texto, li outras crônicas e no mínimo, são inspiradoras. Voltarei sempre.

Um abraço!
Flá.

Proibida disse...

Creio que seja melhor chorar para um desconhecido do que chorar por uma pessoa que achávamos que conhecíamos.

Relativo.

Esse texto eu achei diferente.

Beijos

Proibida disse...

PS: Diferente, não decepcionante. ^^

Ainda duvido... :)

nj.marabuto disse...

a cada dia melhor, dr. filipe! keep on.

o texto descreve uma situação bem comum até, mas com uma riqueza de detalhes que nos faz sentir na pele a aflição da moça... e quem de nós nunca esperou secretamente telefonemas? rs

abraço

Alessandra Castro disse...

Quanta angustia e doçura ao mesmo tempo, temperos q sempre deixam um texto ainda mais marcante. Duas personagens q nem se conheceram, mas q mesmo assim interligaram-se para sempre.

Clareana Arôxa disse...

às vezes é pior chorar com conhecidos. eles sabem bem quem você é, já os desconhecidos podem acreditar em qualquer personagem que você venha criar.

beijo, moço!

Nando Damázio disse...

Eu entendi a vergonha dela .. Na verdade, a meu ver, o desconhecido foi apenas uma justificativa para a vergonha, mas a vergonha era dela própria, talvez de sua condição, de sua impotência diante do que ela vivia naquele momento e que a atormentava tanto .. Enfim, vergonha de ser apenas uma criatura solitária que sofria no silêncio de um quarto sombrio !!

Me envolvo de verdade quando leio textos dessa categoria ..
Abraço, té + !!

Unknown disse...

As sensações ainda estão aqui... e meu telefone aqui do peito não pára de tocar...
Beijo, Filipe!

Amanda Beatriz disse...

pude sentir o que ela sentiu! quase me vi no lugar dela... triste demais!
beijos!

La Maya disse...

Antes chorar para um desconhecido do que chorar para alguém que não merece sequer saber de nossa dor...

E quem, de vez em quando, não fecha os olhos e a alma...? Aliás, adorei a frase!

Belo texto, Filipe, belo e amargo...

Beijos

Anônimo disse...

Descreveu tão bem a cena, que a idealizei perfeitamente aqui, na minha frente. A Maria chorava de pena de si própria, por se sentir tão sozinha, tão frustrada, tão angustiada, numa noite triste e mórbida.

Camila disse...

Eu tiraria o telefone do gancho...rs

... eu já fui Maria. Tantas e tantas vezes que hoje, ela é um fiapo de mulher dentro de mim...

Gostei do texto


beijos daqui...

Bianca Feijó disse...

Seu conto deixou um gosto de quero mais...

Muito bom!

B.E.I.J.O.S

entre-caminhos disse...

fico imaginando o que estaria passando na mente dela. Bom texto e adorei as descrições.

Unknown disse...

engraçado que aqui em casa acabamos de trocar o telefone. :p

Fernanda Papandrea disse...

forte!

Mafê Probst disse...

Ao menos o desconhecido não faria perguntas ao vê-la, pois jamais saberia o rosto que tem a dona daquelas lágrimas...

alex e! disse...

...oi de novo, Filipe. A angústia que sente essa tua personagem é a mesmíssima de muitos que esperam ansiosamente por uma ligação que nunca acontece, por uma pessoa que nunca chega, por um encontro real sempre abortado. Creio que muitos encontram-se nessa situação nesse exato instante. Quantas pessoas em desespero aguardam um fiapo de voz, de atenção, de querer??? não sei, mas inúmeras são, talvez todos nós. Adorei. Outro abraço...