segunda-feira, 29 de março de 2010

Soraya


Era noite de concerto e o salão nobre estava repleto de admiradores de Chopin. O pianista dedilhava o piano como quem faz uma massagem em uma flor. De longe, eu via Soraya que se mantinha boquiaberta, olhando estatelada pro moço que incorporava as notas, os sons, os ritmos e transmitia a música a quem quisesse senti-la.


Soraya, que há dois meses atrás odiava música clássica. Que se perdia nas mesas de bares, buscando um carinho entre as pernas. Moça dos palavrões, da saia justa provocante, dos cabelos em cachos volumosos que, vez ou outra, faziam volta em seu indicador. Conheci-a na minha sala de estar, quando cheguei em casa de madrugada, com a certeza de que a encontraria vazia. Soraya estava nua, tocando meu piano como quem esfrangalha uma galinha.


Como ela não olhou para mim, pigarreei uma. Duas. Três vezes. Ela parou o som arrítmico que produzia, crente de que aquilo era mesmo arte.


- Oi. – eu disse em tom de desaprovação.


- Oh! – ela exclamou, tirando os dedos do teclado, nem se lembrando da sua nudez. – Eu estava apenas brincando, sabe? Gosto do som disso, das coisinhas pretas e brancas. Tem um som bacana. Será que um dia eu aprendo a tocar? Você toca?


- Quem é você?


- Oh! – ela exclamou de novo, como quem se desculpa por uma falta. – Eu sou namorada do Sérgio. Prazer. Estou nua porque não sabia que teria mais alguém na casa, espero que não se importe. Quanto ao piano, me perdoa.


- Onde está o Sérgio?


- Está dormindo. Esperei ele dormir para poder vir tocar. Quer dizer, eu não toco, sabe? Mas eu gostaria muito. Muito mesmo. Você toca?


- Esse piano era do nosso pai, ninguém toca aqui em casa. Olha, eu preciso dormir, me dê licença.


- Sérgio disse que você toca. Tão linda essas coisinhas pretas e brancas, não acha? Parece um monte de zebrinha.


- Se chamam teclas. E zebra não é uma comparação das melhores. Presumo que você esteja bêbada e que não seja namorada do Sérgio.


- Tá, nós nos conhecemos hoje. Mas eu gostei muito dele, viu? Muito mesmo. Será que eu posso voltar outras vezes pra poder tocar as zebrinhas? Eu amei tanto isso: o som, sabe?


- O piano foi vendido. Virão buscá-lo amanhã. – eu menti, imaginando aquela mulher nua na minha casa, toda noite, batucando meu piano.


- Oh! – era mesmo a moça das exclamações. Estava visivelmente chateada. – É muito caro? Eu poderia pagar?


- Mutíssimo caro.


- Mais de um milhão?


- Mais de dois.


- (...) – ela disse um palavrão.


- Eu vou deitar, se me permite. – avisei.


- Você conhece alguém que toca? Eu amaria escutar alguém tocar. Eu acho que sou tão boba, às vezes. – ela riu. E eu achei ela muito boba, todas as vezes. – Imagina só, gostar de piano, devo ser muito boba mesmo.


- Você nunca escutou ninguém tocar piano? – arrisquei.


- Oh! Claro que não. Nunca, nunquinha. Eu juro. Mas eu acho que deve ser uma coisa absurdamente bonita.


- É sim. – tive que concordar.


- Você não me disse se conhece alguém que toca. Acho que estou viciada, se é que me entende.


- Entendo sim. Vai haver um concerto daqui a dois meses. Deixa seu telefone, te separo um convite.


Ela bateu as mãos e os pés em ritmo frenético, ficou entusiasmada com a ideia.


- Você é mesmo um amorzinho. – me abraçou e estalou um beijo na minha bochecha. – Brigada, tá? Brigadíssima.


- Ok, tudo bem. – disse e fui dormir. Mulher louca. Parecia desenho do Sérgio, criação de uma mente perturbada.


Lá do quarto, continuei ouvindo ela insistir nas zebrinhas. O som era mesmo de dar desgosto. Mas era uma entusiasta e eu não tiraria o prazer dela.


Fato é que Soraya, em seu desequilíbrio patente, escutava Chopin sem respirar, sem tirar os olhos do pianista que se apresentava. Tive medo de que ela pulasse no palco e beijasse o artista, assim como me beijou na noite em que nos conhecemos. Mas ela não fez assim.


Ao final do concerto, quando eu tentava sair sem que ela me notasse, escutei meu nome sendo gritado a alguns metros atrás. Era ela. Foi se desvencilhando das pessoas, os olhos eram cegos de tanta música. Ela estava em transe.


- Eu amei, cara. Eu amei essa coisa toda. – e me beijou, agradecida.


Antes de ir embora, ela segurou forte as minhas mãos. Percebi que tinha as unhas pintadas de branco e preto. Ri como quem acha graça de uma piada. De uma forma ou outra, ela carregava as teclas nos dedos. Não sabia tocar, mas queria. As coisinhas, como ela mesma disse. Ou zebrinhas, pra quem preferir.


9 comentários:

Gabi Pasquale disse...

Simples e lindo o seu texto. Sempre acreditei que a música tem o grande poder de mudar algo. E Soraya, até nas unhas levava as zebrinhas...

Parabéns.

Vanessa Cristina disse...

A música faz mesmo isso com a gente.


:*

Sylvia Araujo disse...

Maravilhoso... de uma delicadeza que faz suspirar. A beleza é para todos, e pessoas como Soraya, só não a tem em si simplesmente porque nunca tiveram acesso a ela.

Adorei!

Meubeijopravocê

Aline Azevedo disse...

Filipe,

Tenho muitas coisas pra dizer, e espero mesmo que caiba isso tudo aqui. Pra começar: você faz arte com as mãos, leva as palavras nos dedos, como Soraya leva as teclas. A única diferença é que ela não sabe tocar, e você sabe usar as palavras - e como sabe! Seu texto é simples. Leve. Toca na alma da gente com uma rapidez que - quando damos conta - estamos na história. Estive na sala, no concerto... Senti e vi. Nas entrelinhas do que você escreveu, não é díficil perceber o amor. Não só nesse texto, mas em todos. Pedacinhos de amor. Soraya é a doçura em si. Boba, pode até ser, mas é de coração. Inteira de coração. Não se importa o que pensarão dela. Nobre isso. Nobre essa sua construção, tijolo por tijolo de um texto com detalhes impecáveis. Sou sua fã, Filipe. Você tem o dom, de roubar o fôlego dos que te lêm. "Não tem porque interpretar um poema. O poema já é uma interpretação" Mário Quintana disse mais ou menos assim, e é assim que páro de querer interpretar toda essa coisa linda que você escreveu.

Bom, a outra coisa que eu queria dizer, é que, escrevo no meu blog há um ano, e nunca ninguém interpretou da forma exata o que eu queria mostrar como você. Você viu, nas entrelinhas, exatamente o que eu estava gritando nas palavras - e ninguém ouvia. Obrigada, um presente não foi meu texto à você, mas o seu comentário. E esse texto de hoje, que me deixou sentindo cheiro de flores, ouvindo chopin nesse silencio.

Um beijo, Filipe.

Aline Azevedo disse...

paro* lêem*

Letícia disse...

Felipe, delicioso ler tuas palavras..

invado teu mundo todas as manhãs, e sinto falta qdo tua poesia tarda a chegar..

sempre divulgo teu blog (ainda que com um tanto de ciúmes), seja por indicação, seja por recortes de seus textos em meu perfil (devidamente autorado! rsrs)..

tenho um carinho especial por ti =)
e obrigada por isso.. por inspirar visões bonitas em mim ;)

Juliana Porto disse...

Seus textos são sempre tão singelos e nem por isso deixam de ser magníficos como esse. Tenho paixão também pelo piano, mas só meu pai sabe tocar. Acho que farei como Soraya, pedirei à manicure para pintar as minhas unhas na cor das teclas! rs*

Beijão!

Anônimo disse...

Que doce é, Filipe. A menina que não toca e é tocada, que mal sabe de acordes e não entende os porquês. Uma quinta acima, duas oitavas abaixo?! Se a musica for um tanto faz essa liberdade ela pôde, e pode, entender. E ela entende. Arrisco a dizer que carrega nos dedos as cifras e no coração todas as partituras do mundo. Ingenuidade santa da moça. O quanto esse sorriso não é descompromissado, coisa saltada à cara, vivo. Leve.
Ao mesmo tempo em que escuta com os olhos, faz emoção com o tato. Linda. Lindo. Lindos. E sou capaz de apostar contigo que quando ela o beijou o pé direito estava levantado e sua mão segurando teu ombro.

O de sempre, majestoso.

Bárbara Grou. disse...

Filipe, este textoi foi lindo. Tão tão delicado. Que você pega as palavras com os dedos e manuseia. Faz como o pianista da sua hitória, faz a gente sentir as palavras.
Lindo!
Beijos.