sábado, 28 de agosto de 2010

Interior


Vai diminuindo a cidade
Vai aumentando a simpatia
Quanto menor a casinha
Mais sincero o bom dia

(Simplicidade - Pato Fu)



Dona Ana senta nos degraus da varanda para fumar seu primeiro cigarro. A xícara de café fumegante repousa ao lado, como um amuleto. Ela acena para Dona Elvira que sai da casa vizinha com os três cachorros barulhentos para um passeio matinal. Os animais se atropelam numa euforia incontida e Dona Elvira, magrinha, parece que vai ser arrastada. Mas não vai, não.


- Vamo chegar, Dona Elvira! – grita Dona Ana lá da varanda.


- Outra hora, Dona Ana. Vou levar os meninos pra passear.


Dona Elvira é viúva e não tem filhos. Vive sozinha, porque já desistiu de amar. No entanto, guarda certa admiração pelo vigilante da pracinha, Seu Nestor. É pra lá que ela leva a cachorrada.


- Bom dia, Seu Nestor. – ela cumprimenta, um tanto tímida.


- Bom dia, Dona Elvira. – ele responde com a voz grave que causa uns tremeliques nela, toda vez.


Seu Nestor cuida da praça porque, de uns tempos pra cá, a meninada tem pisado no jardim e destruído as plantas. Além disso, tem uns rapazinhos que, na calada da noite, gostam de pichar os bancos. Seu Nestor tem cara de bravo, mas se derrete pelas crianças. Sempre quis ter filhos, mas se julga sem vocação pro casamento.


- Chegou cedo, Seu Domingos. – repara o vigilante, ao ver o jornaleiro abrir sua banca.


- Cedo nada. Esse pessoal da cidade madruga. Se chegam na minha banca e a encontram fechada, vão comprar na banca do Hélio.


Seu Domingos mora na cidade há trinta e cinco anos. É casado com Dona Sebastiana, que faz doces como ninguém. Quem vende os doces é o Toninho, um rapazinho que gosta de ganhar uns trocados para poder jogar na loto. Ele é um menino esperançoso e tem o sonho de se tornar um milionário. O que Seu Nestor nem desconfia é que Toninho é um dos que picham os bancos da praça. Toninho não tem nada na cabeça, não.


- Vai levar o de sempre, Seu Gervásio? – pergunta o jornaleiro.


- O de sempre. – responde Seu Gervásio, conhecido por ser o melhor barbeiro da região.


Seu Gervásio senta em um dos bancos da praça pra ler seu jornal, como de costume. Uma rolinha vem visitar seus pés e ele olha, curioso, com certo carinho. Depois volta a ler o jornal. O sino da igreja toca, anunciando que são sete horas. As janelas das casas começam a se abrir, como que espreguiçando. As mães acordam as crianças para a aula, mas elas resmungam, pedindo mais cinco minutos. O moço do biscoito começa a gritar “Olha o biscoito fresquinho!” e a cidade vai despertando.


Dona Ana se levanta dos degraus, segura a xícara de café vazia nas mãos e entra pra casa. Ela gosta é daquilo: de ver o dia acontecer.


6 comentários:

gabi disse...

Conversas de cidade pequena, de vida mansa, de vida doce...

Maristela Carvalho disse...

Ao ler seu texto, pensei no meu. Interessante essa oposição de manhãs.

brenda matos disse...

Tão simples e tão gostoso de ler.

Tu sumiu, ein moço?
Beijos.

Carla Dias disse...

Na minha velhice quero estar morando numa cidade assim...

Dalton Mesquita Filho disse...

tão encantador, me lembrou certas novelas do Benedito Ruy Barbosa..

Abraço, e parabéns por mais um texto escrito magnificamente!

Ana EmíliaYamashita disse...

Ver o dia acontecer dá paz e a sensação de movimento.
Sempre que posso, paro para reparar nisso também.