Ele sabia dela, da menina estranha que usava cabelos sempre em tranças e uma maquiagem discreta no rosto, só pra não ficar muito pálida. Sabia que ela, numa solidão exagerada, ia pro Café Viena às três da tarde, todos os dias, sentava sempre na mesma mesa (perto do balcão), pedia um capuccino com chantili e ficava, até às cinco, escrevendo em um caderno brochurão.
Ele foi tomado de uma amargura grande por ela. Sentimento indesejado e obtuso, verdade. Nada coerente. Desejou uma conversa. Dessas conversas caladas, em que as palavras escapam de uma pupila a outra, numa sincronia assustadoramente complexa. Sabia não existir palavras
Vestiu-se de coragem e passou um perfume, duas borrifadas. Olhou-se no espelho com um desatino admirável. Recitou Bilac, em voz alta: “Tudo ao meu triste olhar se desenrola”. Colocou um trevo no bolso. Não era supersticioso, mas não custava.
Chegou às três em ponto e a viu na mesma mesa. A trança ajeitada no canto direito do ombro, o semblante sério, sempre concentrado. A caneta Bic, quase ao final, trabalhava numa pressa afoita, num ritmo de quem não quer perder um pensamento sequer. Ele sentou-se na cadeira em frente, sem pedir. Ela largou a caneta, fingiu um susto. Olhou-o detidamente. Ele ficou sem ar, sentiu o rubor encapar a face inteira e as pernas tremerem. Ela escrevia dentro dele, impressionante.
O medo que lhe ocupou nos dois primeiros minutos, se esvaiu quando ela, sem perceber, deixou escapar um pequeno sorriso. Começou com uma leve puxadinha no canto dos lábios, pro lado esquerdo. Depois entornou pro lado direito, permitindo o mostrar de dentes impecavelmente brancos, embora não muito uniformes. Nos olhos, um inconformismo com aquela presença inesperada. Uma incoerência notável se fazia perceber nela.
Ele deixou os olhos fugirem pro caderno aberto em frente a ela. Espantou-se por não encontrar nenhuma palavra escrita. Era tudo uma paisagem branca. A amizade com a caneta e o papel não passava de um fingimento amador. De repente se deu conta de que ela era uma armação. Ela toda era aquilo que ele outrora buscava na vida: um ruído. Um mero roçar de presença. Um segredo impróprio que ele queria tomar pra si.
Deixou um sorriso seu escapar,
Na volta, sem conseguir se conter, perguntou o motivo do papel
9 comentários:
que texto lindo...
as vezes as palavras ajudam,nos dão conforto,mas existem sentimentos que elas não sabem descrever.dizem que o medo é um mal conselheiro e eu concordo com isso,fico feliz que ele foi falar com a menina,pois se isso não houvesse acontecido eles jamais viveriam esse filme...
Nossaaa, como são lindas as suas palavras...como é doce sua histórinha, suas personagens e os sentimentos...
Filipe, os sentimentos, às vezes, são tão infindos e indescritíveis que não cabem no papel. Apenas sentimos e fim...
Continuarei lendo-te e se me for possível descrevendo meus sentimentos (apesar de sentir muito mais do q descrevo..)
bjosss,
Lê
http://inverossimilhancadoreal.blogspot.com/
Se não é o papel um mero compartilhador a fazer companhia aos nossos profundos e estranhos sentimentos... Fica bem melhor quando em branco. Reflete a infinitude das idéias não escritas.
Mais um texto maravilhoso, felipe.
Acho que o meu favorito.
Beijo
:*
Para escrever sobre solidão, é papel branco que se usa. A tinta pode ser da mesma cor.
Falar sobre solidão, é em silêncio que se fala.
Nenhuma rima,
nemhum poema....
P A Z !
Tácito
Querido Filipe,
achei lindo seus blogs.
Mais encantadores ainda seus escritos, tão intensos.
Você me parece muito intenso. Muito detalhista.
Eu gosto. E muito.
Beijo grande.
P.S.: Adorei sua visita.
Você faz questão de gritar com suas palavras..e esse seu grito entra, se mistura, ganha força já dentro.. passa do intenso, chega a voar. e volta num suspiro de final.
não sei o quanto de ti transita por essas palavras, mesmo que pouco é lindo.
obrigado.
As palavras também habitam os olhos, sem ser necessário a "escita" formal...
Beijos!
no começo, pensei que essa moça era uma intelectual romântica.
depois das linhas vazias e da caneta que trabalhava de mentira, fiquei sem saber pensar se a moça é uma farsante ou apenas inexperiente no mundo das palavras.
quando li o texto inteiro, resolvi que a moça é uma romântica inexperiente no mundo das palavras. e não muito amiga das canetas.
beijo, filipe.
;*
Gostei, bem interessante a sua composição!
Abraço
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