sábado, 14 de março de 2009

O elefante roxo


A idéia de que alguém estaria morrendo de fome em alguma parte do mundo lhe permitiu chorar por alguns instantes. Não que fosse sentimental ou preocupado com as mazelas do mundo. Estava assim naquele dia: um sentimento que não cabia em si mesmo. Um desespero solitário, um amor platônico pelas raízes das árvores, um lirismo silente que pulsava no intestino, pronto para ser evacuado.


Ligou a TV. Era madrugada e uma apresentadora falava de sexo. Não havia surpresa alguma nisso. E o assunto era ridículo. As pessoas não discutem sexo hoje em dia. Desligou a TV e deixou o corpo cair no chão. Derrubou um enfeite trazido pela mãe numa viagem feita à Índia. Era um elefante roxo. “Pra dar sorte”, a mãe disse, supersticiosa. O elefante rolou no assoalho e trincou o nariz. Ou a tromba.


Telefonou pra pizzaria ali mesmo, do chão, com a base do telefone escorada na sua barriga. “Dez pizzas, por favor. Cada uma de um sabor.” Tinha uma fome insaciável, um medo enorme de nunca mais, na vida, comer pizza. Talvez aquela fosse sua última oportunidade. Quem sabe? Além do mais, sempre quisera provar a de sardinha. Julgou ser aquele o momento certo.


O celular tocou no quarto. Correu e atendeu à chamada. “Ei. Sabe quem é?”. “Oi. Claro. Tudo bem?” - ele não fazia a mínima idéia de quem era, mas achou a voz bonita e não queria ser indelicado. “Tudo bem. Eu tava precisando de companhia.”. “Coincidência. Eu também estou.” - ele disse e sorriu da sorte. Uma companhia feminina naquela noite. Nada melhor. “Posso passar aí na sua casa?”. “Pode”. “É o mesmo endereço?”. “Não, me mudei há algum tempo.” - ele estava gostando do jogo. Passou o endereço da sua casa e se despediram. Ela chegaria em breve.


Foi se arrumar. Tomou um banho. Fez espuma com o sabonete e até cantou uma música, daquelas que tocam no rádio o tempo todo. Ficou fazendo a imagem da moça em sua cabeça. Nem bonita nem feia: ideal. Com um charme convincente, uma segurança tímida, um jeito estarrecedor de pegar a xícara e levá-la aos lábios. Assistiriam um filme. Talvez dois. Falariam de coisas banais, piadas, últimas notícias do New York Times. Será que ela lia? Ele nunca leu. Mal sabia inglês. Passou perfume e escovou os dentes. Pôs a camisa nova, o tênis que poupava pras ocasiões especiais. Ajeitou a sala. Pegou o elefante roxo caído no chão e escondeu-o no armário. Tudo pronto. Perfeito. Só faltava ela.


Campainha. Pigarreou. Ajeitou os cabelos e jogou os ombros pra trás. Já amava aquela moça. Sabia. Sentia lá no fundo. Abriu a porta. “As pizzas.” - anunciou o entregador, esticando o braço. Ele pagou e agradeceu o entregador que lembrava muito o Michael Jackson, quando ele era negro. O cheiro das pizzas era tentador. Abriu uma delas e comeu uma azeitona. Nada mal. Aquilo lhe abriu o apetite e ele não resistiu a um pedaço. Dois. A fome não passava. Quetichup, tem? Foi ver na geladeira. Tinha. Colocou na pizza e mordeu. Suspiro. Lembrou da vez que levou uma ex-namorada pra comer churros na praça e o doce de leite sujou a saia dela. Nem gostava daquela namorada. Muito fresca, pronunciava as palavras com “t” e “d” e fazia um biquinho na hora. Quem tinha terminado o namoro, mesmo? Não lembrava. Deve ter sido ela. Sempre foi assim.


Por que será que a moça tava demorando tanto? Teria se arrependido? Pior: teria descoberto a farsa? Vai ver, ao desligar, se deu conta que havia ligado pro número errado. É, vai ver foi isso mesmo. Até melhor. Ele não tava em bom estado. Tanta pizza fazia o estômago arder. Ainda tinham seis embrulhos intocados. Comeria amanhã. O elefante fazia falta na sala. Retirou do armário, colocou de novo em cima da mesinha de centro. Melhor. O elefante sempre lhe dera sorte. Ou quase sempre.


Campainha. Era ela. Então ela veio mesmo? Logo agora que ele começava a desistir da idéia? A camisa suja, a mesa entulhada de pizzas, o hálito de azeitona na boca. Dane-se. Encontros perfeitos não existem e são os menos divertidos. Abriu a porta com um espírito de coragem que desconheceu. “Oi.” – era a ex-namorada, aquela dos churros. Droga. “Oi. Você...sumiu.”- ele disse, sem graça. “Trouxe filmes. Dois. Pode escolher”. – o biquinho, o maldito biquinho. Ela entrou, invasiva. Se apoderou do sofá e retirou os sapatos.


Deixou-a no sofá e foi terminar as pizzas. Comeria até explodir. Elefante da sorte uma ova.


18 comentários:

Vanessa Cristina disse...

Me vi na sala, comendo pizza com ele... Adorei o texto :D

Sueli Maia (Mai) disse...

Oi, querido.
'Um lirismo silente'...
Por vezes é fisiológico mesmo...
'evacuar' 'despejar' parece que é algo assim... Escorre, escorrega...

Adoro ler-te.

E tua escrita, cada dia mais sofisticada, permite a visualização perfeita do semblante, das cenas, do sentimento,mesmo...

Adorei a criatividade do título.

alex e! disse...

...a sorte muitas vezes nos parece tentadora, mas, no fundo no fundo, não deixa de ser apenas mais uma possibilidade de.. de quê? de alguma coisa, que talvez nem nos agrade, no final das contas. Foi exatamente esse pensamento que me invadiu assim que acabei de ler esse teu texto, Filipe, algo que me veio como uma doce ironia que a gente come igual molho agridoce em batata frita. Um gosto familiar e, outro, estranho, que se unem criando uma terceira coisa: um elefante roxo? Me pergunto até que ponto isso é pura divagação besta minha, caro Filipe, mas é de um fato comum, doente de tédio, que se criam as situações mais inusitadas (e me arriscaria dizer até "mais sinceras"). E teus textos sempre me trazem essa impressão de sinceridade, de como se não pudessem dizer de outro modo, a não ser desse. Desculpa, não sei se tô me fazendo entender, tô meio atrapalhado hoje......

grande abraço...

PS: queria aproveitar a oportunidade pra te parabenizar pelo "Viver para contar", uma iniciativa refulgente que só mesmo os talentos teu e de Jaya poderiam dar conta. Já me derramei em elogios pra ela, que pedi fossem transmitidos a ti. Aqui apenas deixo uma pequena parcela. Admiro muito a conexão de vocês dois. Muito mesmo. E que ótimo que cê resolveu postar aqui também....

Jefferson disse...

Olá,

Já leio o seu blog há algum tempo mas acho que nunca te deixei um recado...bom...aqui estou eu.

Parabéns cara...nota-se o seu talento já nas primeiras linhas.

De onde vem essa imaginação? essa criatividade?

Abraços!

*Renata Gianotto disse...

Oi Filipe!

Estava sentindo falta dos seus sofismas.

Como vai longe nossa imaginação, né?! Muitas vezes criamos tantas expectativas e caímos do cavalo. Eu sou assim. Sempre sonhando com certas mudanças, mas na verdade a mudança pode acontecer com algo que está tão perto que não enxergamos.

Estou acompanhando você e a Jaya e fico "viajando" com a inteligência e criatividade de vcs. Parabéns!

Anônimo disse...

seus textos me hipnotizam.. adoro!

beijosss

Flá. disse...

Ahhh muito bom, Filipe! Muito divertido, na realidade :DD

Beijos!
Flá.

Thiago disse...

Lipe, eu gosto dessa idéia do primeiro encontro soar despojado, apesar de na minoria das vezes acontecer assim, a gente se preocupa sempre como que vai acontecer, qual peça de roupar vestir, qual lugar sair! Enfim.

Teus textos sempre me fazem bem.

Jaya Magalhães disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Cara....fantastico...é a primeira vez que venho ao blog.
Simples e surpreendente.
Ahhh....o cootidiano...
As ironias.

Sueli Maia (Mai) disse...

Olha meu esritor-poeta,

as palavras são assim. Por vezes elasse escondem, mesmo. Faltam as palavras mas não vale desistir, sabe?

Alguém qu escreve como tu, jamais 'perde' a mão...

Tem paciência contigo e não nos prives de tua companhia e dos textos maravilhosos que escreves.


Muito, muito carinho,

Mai

Alessandra Castro disse...

Apesar de as vezes me decepcionar, prefiro imaginar que o futuro pode ser melhor.

Anônimo disse...

kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

Amei, amei!E estou rindo descontroladamente!

Muito bom, como sempre.

Beijos, querido.

I.P. Araújo disse...

Há! muito bom! Eu quase acreditei no elefante... rss! =]

Insolente disse...

=)
me fez sorrir.

Renato Ziggy disse...

Hoje eu tava precisando de ler algo leve. Então vim aqui e, claro, deliciei-me. Fiquei muito satisfeito com a fluência das palavras, a leveza e naturalidade delas, o tom de humor e os elementos surpresa muito bem explorados.

Teu texto ficou um brinco, Lipão. Dos melhores que li aqui no blog. De uma qualidade muito bacana, daquelas que dão vontade de ler de novo.

Fico muito feliz com sua evolução na escrita e que tenha voltado à ativa com o blog. Não tem nada de enferrujado aqui. Pelo contrário. Sinto frescor aqui, e do bom.

Abraços,

Ziggy

Madalena disse...

:}

Eu fecho os olhos, as vezes, para visitar os meus queridos.
A matéria fica e alguma coisa intangível viaja. Queria poder levar o corpo também. :~
Ainda assim, é bom!

Outro beijo.

Anônimo disse...

Essa história de pizza me deu uma baita fome...
Nunca acreditei em sorte, Deus ou qualquer coisa que explique o ser humano.
Talvez tudo seja acaso.