sábado, 28 de março de 2009

Carne de terceira


Acordou com o coração aos pulos. Um pesadelo. Calma. Apenas um sonho ridículo. Como a mente pode ter tamanha criatividade? Ele, no altar com uma carne de terceira. Sim, um pedaço de carne com pernas, braços, boca, etc. Nisso que dava as conversas com os amigos, aquela insistência em tratar mulheres como um prato pronto a ser devorado.


Entrou debaixo do chuveiro e riu. Riu do sonho, das ironias, da vontade de ligar pra alguém e contar que casar lhe trazia repulsa. E só tinha descoberto isso agora, depois de três anos de noivado. Melhor ficar calado. Se essa história vaza, vai parecer que ficou enrolando a moça. Aliás, já estava parecendo. E isso não era bom.


Trocou de roupa e foi à padaria. Havia uma na esquina, mas, há dois anos, ele ia à padaria do Nestor que ficava a três quadras de sua casa. Não que o pão lá fosse mais gostoso. Era pior, inclusive. É que sempre tivera a esperança de encontrar a mesma menina que, dois anos atrás, encontrou na fila do pão. Deixou-a passar em sua frente por cortesia. Ou interesse, que fosse. O fato é que a moça sorriu agradecida. Riu lindamente e ele guardou aquele sorriso como um sinal. Pensou em pedir o telefone, propor um cinema. Depois olhou pra aliança no dedo. Noivo não faz essas coisas.


O pão tinha acabado. Comprou um chiclete. No caixa, Nestor olhava uma revista de mulheres nuas e deixava escapar sorrisos sacanas. “Essa é das boas, meu amigo. Comprei baratinho ali na banca!”. “Obrigado, Seu Nestor.” – nem pegou troco nem nada. Tinha raiva de velho tarado. Na saída, trombou com uma menina. Ou menino, não sabia. Sempre encontrava aquele ser andrógino na padaria e a cada dia chegava a uma conclusão diferente sobre seu sexo. Tinha trejeito de tudo. Resolveu que não esquentaria mais a cabeça com aquilo. Perguntaria o sexo num dia de extrema coragem, quando ele recebesse a notícia de sua própria morte. Não se pode morrer com uma dúvida dessas. Não mesmo.


A Deise passou de carro e buzinou. Deise bonita, aquela. Estagiaram durante um ano em um escritório de contabilidade. Ela dava mole. Mas era sutil. Daquelas que a gente nunca sabe se quer mesmo ou se faz hora só porque é bonita. O fato é que ela ia tomar cafezinho a cada trinta minutos na sala dele e sempre perguntava se iria à festa tal. Ele nunca arriscou. Já namorava na época. Quando Deise soube do namoro, ele percebeu uma pontada de decepção no rosto da moça. Contou pros amigos. Eles faziam chacota. “Deise, aquele mulherão te dando bola? Se enxerga, rapaz. Muita areia.” – os amigos tinham desses prazeres em detonar a auto-estima um do outro. Mas que Deise dava mole, ah, isso ela dava.


Passou na banca. Lá estava a revista do Seu Nestor. Um e noventa e nove. Grande porcaria. Comprou um jornal. “Tô a fim de ler umas notícias tristes hoje.” – contou pro jornaleiro bigodudo que sorriu de simpatia. Viu uma revista de culinária aos fundos. Na capa, um peru de Natal. Achou graça. Estavam longe de dezembro. Lembrou do sonho e contou pro jornaleiro. “Sonhar com carne é sinal de mau agouro.” – revelou o bigodudo que acreditava nessas bobagens todas que vinham em revista feminina. “Sai de mim, Seu Jânio. Tô com superlotação de azar.” – pegou o jornal, a revista de culinária e voltou pra casa.


Abriu a porta do apartamento e ouviu vozes vindas do quarto. Palmilhou até o cômodo e, no caminho, se apoderou de uma tesoura que estava jogada sobre a mesa. A porta estava só encostada. “...cinco mortos no acidente com o ônibus da viação Ursa Maior...”. Respirou aliviado. Era a TV ligada. Desligou e concluiu que andava muito à flor da pele naqueles últimos dias. Precisava de uma massagem. Como era mesmo o nome daquela moça que atendia em casa? Madalena, Morgana, algo assim. Devia ter no catálogo.


O telefone tocou. Era a noiva. Combinaram o almoço. “O que você quer que eu prepare?” – ela perguntou atenciosa. Ele pensou. “Engraçado, mas hoje eu tô com um desejo estranho de comer carne de pescoço.” – disse, por fim. Ela fez silêncio do outro lado, achou que fosse piada. Piada ou não, sonhos sempre tiveram influência na sua vida.


24 comentários:

Anônimo disse...

pior nem é sonhar com carnes de terceira (usar esse termo paea substituir 'noiva' foi um tanto quanto incomôdo, moço) no altar. pior é continuar com essa farsa. talvez pior, seja dar um fim nessa farsa.

'benzinho, quero terminar nosso noivado.'
'oh, não!! por quê? não me ama mais? o que eu fiz?'
'não, você não fez nada. é que ontem, eu sonhei que estava me casando com uma carne de terceira...'
' o quê?? você está dizendo que eu sou um bife de terceira?'


PÁ! UMA MÃO NA CARA.
oww. viajada legal.

abraço filipe.

Unknown disse...

estar em casa com a boca estourada, mas ficar fascinada ao ler seu blog: nao tem peço

Anônimo disse...

RsRsRs, adorei! Adorei! Uma vez sonhei que estava no altar toda de branco, tal, advinha? Saí correndo! Tentei explicar ao pai do meu filho que mora comigo, e também pedi para morarmos em casas separadas, mas em vão. Mas até que está sendo bem legal. Tenta falar com mais gente em pânico, quem sabe dá até pra gente fazer uma daquelas terapias de grupo.

xaxeila

Sávio Furtado disse...

Carne de pescoço é de primeira!
passando pra deixar um rastro e dizer que está muito bom seu blog...
Sávio

alex e! disse...

...os sonhos e sua simbologia em geral exercem misteriosa influência sobre nós. Mesmo sem ser por uma perspectiva freudiana, é interessante notar como as nossas interpretações de um sonho se pautam no imaginário popular, a partir do qual cada um tem um juízo a emitir. O extrapolar essa "realidade" onírica, através das ações e mesmo inquietações do personagem desse teu texto, Filipe, me faz indagar, novamente, sobre o poder dos símbolos e signos na nossa vivência...

abraço do alex......

Luciana Brito disse...

*-*

Ai que saudade desses textos teus Lipe!!

Os sonhos são influência e influenciam a vida... essa relação é tão legal (e lá venho eu lembrar de Freud e o Iconsciente).

Adorei o texto!! o/


Beijinho pra tu! ^^

Anônimo disse...

Influenciam mesmo.

bom mesmo Filipe.. ;)
Abraço.

Vanessa Cristina disse...

Passando para agradecer o seu estimulante comentário (também ando enjoada de blogs e tal, até já pensava em excluir o meu), quando vejo mais um texto que não conseguir não ler...

Vou passar a prestar mais atenção nos meus sonhos...

Beijo grande.

p.s: Vou cobrar a sua visita!

Vinícius Rodovalho disse...

Ei, ri muito aqui.

Nem sei se era pra rir, mas ri e pronto. Costumo rir sempre. Até quando assisti "O Exorcista", ri. Aquela parte da cama balançando é hilária!

Enfim. Atenhamo-nos ao texto. E à estranheza do sonho. Estranheza irônica, aliás. E se eu senti uma pontinha de crítica aí, que fique registrado. Carnes, apesar do vasto teor proteico, demoram um tanto para ser digeridas. Já o amor desce mais fácil, sempre.

Quanto à noiva, atenção, dúvida e compromisso à parte, a moça da padaria me parece melhor opção. Não aquilo indefinível [e faça o favor de resolver essa dúvida logo, que agora ela também é minha]. Mas eu dizia da moça que mereceu a gentileza do protagonista. Ela me parece a melhor opção. Sem dúvida. Mas o pior, é que não basta ser a melhor. Tem que convir.

Nestores, noivas, pescoços, tesouras e indefinições... Uma vida limitada.

Eu jogaria a aliança fora.

:)

leila saads disse...

Essas tantas opções a mais nos dão a sensação de que a vida está passando enquanto estamos algemados... Mas, no final, é tudo apenas uma questão de escolha, de botar na balança e pesar o que valhe mais.

(Esse conto ficou muito bem escrito, Filipe!)

=*

Fee disse...

Eu sempre tenho medo dos meus sonhos estranhos. Depois de tê-los, fico dias, às vezes semanas, tentando entender alguma mensagem, algum sinal.
No lugar do personagem, eu pararia de enrolar a moça e caíria na gandaia. Rapaz triiiiste!

Beijos

Anônimo disse...

Conhecendo seu mosaico de palavras e rindo, muito bom.Eu gosto de carne de pescoço, dá mais trabalho mas o sabor é incomparável.

Um abraço,

Vilma

A Maya disse...

Ri demais! Repleto de bom humor e bem estruturado!

Engraçado, mas também somos assim com os sonhos.

Beijos!

Alessandra Castro disse...

Adorey e é por isso que muitas das vezes gosto de por a cabeça no travesseiro.

Rodrigues, K. disse...

Oun loucura essa de sonhar.

Gostei de verdade.

Beijo.

entre-caminhos disse...

Sonhos n deixam d influenciar. Pelo menos eu fico viajando qnd sonho com algo q me incomoda.
ótimo texto.


bjs

Raphael Rocha Lopes disse...

O dia do nosso amigo não foi fácil... começou com carne de terceira e terminou com carne de pescoço.
Como não deve ser essa noiva, hein?!
Parabéns pelo texto.

Insolente disse...

Ótimo o que vc escreve. É tão maravilhosamente inusitado.

Bianca Feijó disse...

Fazia tempo que não vinha te visitar...

Muito bom seu texto para um sabado a noite,hilário!

Uma sugestão: coloca o link seguidores, assim podemos ver sempre que atualizar.

B.E.I.J.O.S

Srta. Festa disse...

Ué o texto já acabou? Esse foi tão bom que eu nem queria parar de ler. Mas infelizmente ele acabou ><

Parabens Felipe, seus textos coseguiram melhorar ainda mais ;)

Bjos ^^

Nana disse...

De todos os textos teus que li até agora, esse é o melhor. Fantástico mesmo. Desses que dá gosto de ler, mesmo quando você está em público e solta umas risadas que, pros outros, não tem o menor sentido.
Rapaz, muito, muito bom. Mal posso esperar por um romance seu. Aliás, posso sim. Dá licença. *senta confortavelmente numa poltrona e espera*

P.S.: Te linkei no Intentar.

Juliana Almirante disse...

A vida sempre tem influência nos sonhos....

=)

Solange Maia disse...

Filipe,

Ótimo !!!
Caramba, você é esmo demais garoto....

Tenha uma Páscoa linda...

Um beijo e um sorriso,

Solange

http://eucaliptosnajanela.blogspot.com

Clecia disse...

Oi,Filipe! Tudo bem? Quanto tempo não passo por aqui, né? Mas cá estou para matar a saudade do seu blog e também para desejar que tenha uma Feliz Páscoa!bjos!