Acordou com um sentimento estranho. Como se estivesse convexo. Apalpou o corpo. Tudo certo. Mas a estranheza continuava. Era como se ele fosse dois: parte externa e parte interna. Dentro, uma surpresinha, daquelas de montar. Fora, um grande chocolate temporário. Seria devorado em dois tempos.
Ao lado da cama, a esposa abria os olhos e suspirava numa vozinha melodiosa. Era sua manha. Queria alguma coisa, usava a voz fininha pra pedir. E soava como oração, tão bonita era. A afinação – sim, tinha uma certa afinação – lembrava Almir Sater quando cantava “Lá vai uma chalana, bem longe se vai...”. As palavras saíam como água e, logo, rio manso que pra longe levava a chalana. Havia sugerido a ela, certa vez, que fosse cantora. Que cantasse pelo mundo, coisa que gostava muito. Ela, medrosa, sorria tímida, disse que, quando Deus quer evidenciar o talento que dera a alguém, ELE mesmo dava um jeito.
Mas o fato é que ela abriu os olhos e também o enxergou convexo. E mais: viu um embrulho em volta e um laço amarrando em cima da cabeça. Perguntou, assombrada, o que era aquilo, se ele estava indo a alguma festa. Ele, inconformado, foi até o espelho. Aparentemente normal. A sensação era psíquica, anímica, espiritual, diria. Como faria pra se desvencilhar daquilo? Resolveu que ligaria para o irmão leitor voraz de Freud e Schopenhauer. O irmão atendeu ao telefone num tom de voz anormal. Perguntou se estava tudo bem. Sim, estava. O único problema era que se sentia convexo, côncavo, comestível. O irmão fez um silêncio irônico do outro lado. Na certa, encarava como uma piadinha, daquelas que sempre costumavam fazer um com outro. Mas, inesperadamente, em tom sério, disse que não poderia ajudar. E desligou o telefone.
Foi encontrar a esposa na cozinha. Tomava o chá fumegante com os olhos parados no canto do fogão. Sorvia o líquido, os olhos não piscavam. Ele pediu ajuda com certo desespero. Ela, sem tirar os olhos do lugar, aconselhou que procurasse um psiquiatra, um terapeuta, um pastor. Ele retrucou. Era domingo, ninguém realizava consultas no domingo. A mulher, por fim, deslizou o olhar pro marido. Encontrou-o abatido, um inconformismo estampado no rosto, algo meio alucinógeno lhe brotava nas raízes dos fios de cabelo. Estava estranho, verdade. Pegou-o pelas mãos e o deitou no sofá com carinho. Ele, involuntariamente, chorou. Feito bebê. Lágrimas vinham de todos os cantos. Dos rancores que tinha do pai, das mágoas da infância, do desprezo sofrido, da cobrança no trabalho, do abuso dos familiares, da rispidez das pessoas, da pobreza que acometia o mundo, do consumismo exacerbado, da ausência de Deus nos cantos, da falta de fé de muitos.
Desembrulhou-se. Certo alívio ia tomando conta do peito, da esposa, da casa. Lágrimas eram redenção. Encher-se delas era a certeza de que, um dia, vazariam por qualquer rachadura aparente. Entendeu-se e abraçou a esposa numa gratidão de corpo inteiro. Não havia feito nada, ela disse modesta. Tinha feito sim, ele sabia. Porque não era campo físico ou comportamental. Aquilo se tratava de algo que ela carregava dentro. Feito uma surpresinha. Daquelas de montar.
5 comentários:
Não sei dizer o porquê, mas isso me lembrou Alice (a do país das maravilhas) e com certeza nâo foi pelo coelho branco...
[]'s
Esse texto foi super -q mas achei genial de uma maneira estranha ainda assim. Todo mundo tem uma surpresinha de montar dentro de si, e às vezes a gente precisa comer o ovo pra perceber. Acho. Sinceramente, acho que não entendi 1% do texto. Mas essa idéia do convexo me pegou. :)
...talvez todos nós tenhamos essa "surpresinha", latente, pelo mais de-dentro de nós, e muitas vezes é perigosíssimo tomarmos consciência dela. De certa forma, mais ou menos nos identificamos nos nossos textos, porém vejo o teu com um tom outro: há a possibilidade de entender-se, de um equilíbrio (mesmo que precário e momentâneo, assim como todo equilíbrio...). Lembraram de Alice, em um outro comentário acima. Lembrei-me, pelo insólito e pelo estranho da tua estória, de Gregor Samsa lidando consigo mesmo outro, repentinamente, obrigado ao embate com a metamorfose entranhada em seu ser. Côncavo, convexo, somos um embrulho, Filipe, como cê bem lembrou, e, mesmo que a metáfora, hoje especificamente, lembre-me a ovos de chocolate, o cheiro mais forte é o da Páscoa, o da autorreflexão, o da empatia como forma de chegarmos a uma compreensão mais profunda de nós mesmos, dos outros, do mundo. E isso a gente carrega dentro, "feito uma supresinha. Daquelas de montar"...
abraço do alex...(e boa Páscoa pra ti...)
Cara, eu fiquei super triste na semana que passou. Andei meio 'panicada' levei um susto do meu coraçao que queria se demitir de mim, ai andei meio sumida, em off...
Mas semana que passou tentei te visitar e dizia assim: Este endereço está disponível....
Putz! Fiquei apavorada querendo me comunicar contigo.
Agora fui passeadndo no bloroll e decidi tentar outra vez...
Ai meu sorriso abriu outra vez.
Vou deixar prá ler quando a minha vista estiver bem relaxada.
Porque quero degustar cada palavra.
Beijos, coração.
Fica bem, tá?
Carinho,
Mai
lágrima é dor derretida"" v. mosé
palavras de gosto [bom] as tuas!
abraços
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