Preparou os fios como quem coloca o filho pra dormir. Enrolou-os nos dedos de forma paciente, delicada. Repassava, dava voltas, o volume ia aumentando, ocupando não só os dedos como também o antebraço.
Seus olhos cinzas-mórbidos, de uma tristeza sem tamanho, escorriam por todos os cantos do corpo. Sua cabeça levemente tombada para a esquerda e o sorriso morto no canto do lábio de quem esquece a velha piada contada há alguns minutos. As esperanças adormecidas nos poros, um sintoma prateado de desejos impossíveis de morte sem sofrimento. O medo não é da morte. É da dor.
Os fios agora ocupavam o braço e davam a impressão de que ele estava engessado. Talvez tivesse sofrido uma grande queda. Pode até ser. Os buracos mais profundos são cavados pelo homem em sua mania de colecionar armas cruéis. Palavras são armas. Crueldade se torna apelido em alguns momentos.
Alguma música tocava em qualquer canto do mundo. E as notas remexeram dentro dele, como se, a vida toda, estivessem adormecidas, esperando aquele momento para poderem se espreguiçar. O coração bateu diferente, as pálpebras eram comprimidas por alguma força estranha. O arrepio veio pelo corpo todo, trazendo um calor gélido, um torpor nas entranhas.
Os fios, rapidamente, tomaram todo seu corpo. Um casulo. Havia se encasulado. Ou enclausurado, se preferir. O ritmo de dentro era diferente. A vontade de romper os fios era quase como a necessidade de uma dança embaixo da chuva, desnudo. Havia um pulsar de sangue novo, de fôlego alienígena. Sentia como se outro dele nascesse dentro daqueles fios.
Por fim, num romper desajeitado, arrancando toda sua máscara de fios enrolados, desfazendo toda sua armadura não tão protetora assim, sorriu. Sentiu cócegas nas costas. Uma comichão tomou conta de sua espinha e ele gargalhou. Como há tempos não fazia. Despiu-se dos fios. Tanto trabalho para enrolar-se!
De frente para si mesmo, bateu as asas imaginárias que lhe surgiram no dorso. E fechou os olhos num voo rasante de quem nunca se prendeu ao infinito. Era essencial voar.
22 comentários:
Silêncio...um minuto antes de saír do casulo, tudo é silêncio. Na expectativa de voar.
Filipe, você sempre se supera, dizer isso já é lugar comum.
Abraço! :)
Nossa, Filipe!
Mais uma superação, como disse a moça aí em cima.
Fui lendo e lendo e viajando com o texto!
BEijos.
Creio que todo mundo nessa vida tem um momento em que necessita passar pelo casulo. Se não for assim, pode ser que as asas não venham a surgir. Pode ser que as espinhas não sintam cócegas. Pode ser que não se aprenda a voar.
Por isso acho importante passar por provações, por mares revoltos. É assim que conhecemos nossos limites, e muitas vezes temos de superar a nós mesmos para sairmos fortes e prontos para mais um novo leão.
E comofoi bela a sua forma de falar sobre isso, tratando com poesia e sutileza a beleza e a simplicidade de um casulo. Muito sábio, de sua parte. E eu gostei de ler. Sentia falta desse tom nas suas palavras aqui no blog. Não sei se foi porque andei sumido, mas nas últimas vezes que vim os textos eram mais puxados pro humor. Este já resgata um pouco o poeta com quem tive contato logo quando surgiu o blog. E é isso, moço. Gostei do regresso. Abração!
Na vida a gente passa por várias transformações, pode não ser
agradavéi, mais tudo tem um sentido.
abraço felipe.
Metamorfose... às vezes precisamos mudar, nos trancar um pouco e depois romper todas as correntes em busca de algo maior (e melhor).
Muito bom o texto Lipe.
Esse trechinho marcou mais um pouco: "A vontade de romper os fios era quase como a necessidade de uma dança embaixo da chuva, desnudo."
Aquela vontade sapeca de chegar a algum lugar talvez desconhecido.
Beijos Lipe ^^
Às vezes me vejo enrolando os fios e preparando meu casulo. São momentos em que reflito, sozinha, no meu mundo. Mas, nada como a transformação e a renovação. Prefiro bater asas de borboleta.
Adorei Felipe! Parabéns!
Era essencial voar...
Que bonito isso, cara!
Abraço!
Sempre essencial voar. Sempre essencial mudar e sempre dolorido crescer.
Mas sempre vale a pena.
Bjao
Filipe,
Sim. É essencial voar, sem destino.
Saber quando levantar vôo, mas tendo a consciência de quando deve-se pousar.
O casulo se torna importante, parte necessária da transformação,da aprendizagem... pois o que seria da nossa vida sem essas metamorfoses? Marasmos? Não quero. E tenho certeza que muita gente tb não.
Lindo texto, viu?
Um beijo aqui.
Lindo o texto!
voar é necessário, mas dá um medo...
bjs
passando pra avisar q meu link mudou,mas o blog continua o mesmo:
http://rabiscosealgunsrabiscos.blogspot.com/
bjs
muito lindo.. muito msm!
beijokas
virou borboleta?
...é essencial voar, Filipe, cê tem razão, assim como é essencial embarcar nesse sonho de borboleta, livre, pelos ares. Não me lembro quem disse, nem como disse exatamente, mas é lindo mesmo assim: "borboleta são duas pétalas que voam". E assim, tal como a metáfora, a poesia que brota de teus escritos faz com que a gente ainda acredite que há saída, que há chance para um novo e outro voo...sempre... um grande abraço pra ti...
=D
Ficar preso não é a melhor coisa não. Bom mesmo é podermos voar.
Esse texto poderia ser melhor, mas ficou bom Filipe. Nada mal.
Abraço.
sei nem o que dizer.
e ainda tem a palavrão comichão.
"Alguma música tocava em qualquer canto do mundo."
Que lindo!!
É provável que o objetivo de todos seja "voar", mas agente fica se lamentando muito as perdas originadas pelas transformações, mas infelizmente, ou felizmente, para ser feliz é preciso crescer e mudar, deixando as coisas velhas para trás!
Gostei do seu blog!
Parabéns!
Interessante o título do blog e como nome dos comentários, até porque cada leitor, uma interpretação, qual a verdadeira? todas? a intenção do autor? nenhuma? algumas? Com bons sofismas, todas essas podem ser verdadeitas como falsas? Fazes direito por acaso? ;D
beijos
Ainda bem que seres humanos não são borboletas.
Bom é quando acontece assim, quando vc percebe a transformação.
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