terça-feira, 25 de outubro de 2011

Passarinho


- Que tem de bão aí, na panela?


- Tem nada não, sai de perto.


- Ih, acordou do avesso, muié. Tá de coisa?


- E eu lá sei o que é coisa?


- Coisa, daquelas que muié sempre tem.


- Não, tenho coisa não. Tô só pensatória mesmo.


- Ainda tá triste com o passarinho? Eu já lhe disse, muié, um passarinho de nada, aquele. Amanhã eu vou lá na venda do Tão e te trago outro.


- Não é isso, home de Deus. O pequenino era que nem filho pra mim. Era dar seis horas, ele começava a cantar pra eu acordar. Então eu dava o de comer pra ele e ele ficava com aquelas asinhas salientes, feito menino endiabrado. Dispois a gente cantava junto, sabe? Ele tinha uma vozinha fraquinha, coitado. E eu acompanhava ele, pro canto ficar bonito.


- Tá doida, é?


- Acontece que me acostumei. Era parte do meu dia parar, dar atenção, dar o de comer, cantar com ele. E quando ele pedia pra dar um voltinha com aqueles olhinho apertado? Eu abria a gaiola e ele ia pintar nos pé de manga do quintal. Ia e voltava, feito filho obediente. Tão bonitinho, o pequeno.


- Muié, para com isso de chorar! É um animalzinho. Como pode ter pegado amor com um bicho que nem sabia seu nome?


- Ah, sabia sim! Sabia sim, viu? Que eu ouvi uma vez ele me chamar e eu até me voltei apavorada, pensando que era coisa de outro mundo. Mas vi que era ele, com aquela vozinha fraquinha, coitado. Veio cantando pro meu lado, dizendo que meu nome era bonito. E repetia: Ma-ri-a.


- Muié do céu, tô ficando é preocupado com cê. Que isso agora de ouvir passarinho falar? Vou ligar pro doutor.


- Carece não, home. É coisa que não explica, de quem inventa de escutar o que não deve por gostar demais. Sentimento faz aparecer algumas coisas do lado de fora também.


- Sentimento que nada. Isso é doidice.


- Me deixa! Vou acabar de fazer o almoço e ocê trata de arrumar alguma coisa pra fazer. Home impertinente, diacho!


- Isso aí de sentimento por fora, é bom? É que nem meu abraço, assim?


- Sai, home. Sai que a panela tá pegando fogo.


- Não ligo. Canta pra mim, canta passarinha.


- Seu bobo! Coisa mais besta. E isso não é hora de namorar. Tô suja.


- Tá é linda.


- Cê acha, mesmo? Mais que a Carmélia?


- Carmélia não canta.


- Eu perguntei isso?


- Não importa. Vai cozinhar, vai. Vou na venda do Tão. Te compro um presente. E você se enfeita pra lua que vai assistir nosso cantar hoje.


- Você não canta.


- Quem disse?


- Eu disse.


- Pois vai ver só.



[Publicado em 03/12/2009]


2 comentários:

Tainá Facó disse...

Tuas palavras foram tomando conta, tomando conta, quando fui ver, já tava no fim do texto. Todas as palavras fluiram docimente aqui dentro, e vez ou outra eu sorria. Um riso de descoberta. De encontro. Coisa mais bonita, Filipe. Saio daqui poetizada. Tu é ótimo.

Alice disse...

Pareceu canto de passarinho teu texto. :)

Um beijo