quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Ruas


Às vezes as ruas ficam desertas dentro da gente. É como se todos estivessem escondidos dentro de suas casas, com medo de um monstro intergaláctico de seis braços e fumaças nas ventas. O vento corta as esquinas, numa pressa de quem quer chegar antes de si mesmo. E o silêncio. O silêncio é o sinal do vazio. Ausência das britadeiras infernais, das senhorinhas fofocando no portão, das crianças soltando pipa e xingando palavrão, do moço do pastel que grita sempre “só um real, só um real”. A lembrança disso tudo faz nascer uma comichão, uma inquietude e insegurança. A rua cheia agora é recordação, foto de álbum, estrofe de trovadores, saudade.


Dentro da gente, as ruas vão sossegando como quando chega a noite. Uma luz apaga na casa de lá. As velas são assopradas na casa daqui. Um filete de esperança trepida e perde as forças, restam cinzas no chão. A dor vem é da incerteza de jamais ter outra vez o sol nascendo e, junto dele, as mães puxando os filhos para a escola, os ônibus zunindo, as bicicletas subindo nas calçadas e os carteiros correndo dos cachorros. A dor vem dessa beleza que se deposita no passado, na crença de que as coisas eram mais bonitas, antes da noite. O agora parece um breu incansável e a necessidade de se caminhar apalpando, querendo qualquer cheiro daquilo que era bom.


Às vezes as ruas ficam desertas dentro da gente. E somos os primeiros a entrar em casa, abandonar o sereno e dormir.



9 comentários:

Luciana Brito disse...

Senti o vazio dessas ruas através do texto.
Existem as lembranças, mas o agora ainda pode deixar de ser breu.

Beijo, Lipe.

Sueli Maia (Mai) disse...

E as vezes os silêncios são ruidosos. E texto retratou o vazio e os ecos do silêncio nas ruas de nós.

beijos, querido.

Asgardiano disse...

lindo texto. As ruas ficam desertas e o monitor fica aceso.

Gabi Pasquale disse...

Como sempre, me identifiquei totalmente com seu texto. E digo que já passei dias assim; no silêncio ruidoso dos corredores de mim mesma. Procurava portas e não achava, tentava entrar a força pelas fechaduras e não conseguia. Foi ai que resolvi entrar pelas janelas. E sabe, o que importa não é por onde entramos, e sim se conseguimos ficar no lugar que resolvemos entrar.

A gente pode criar nossas próprias portas e desbravar nossos corredores internos, sempre.

Vinícius Rodovalho disse...

Essas ruas vazias me lembram os dias de chuva. Não necessariamente porque não haja ninguém nas ruas quando chove, (aqui na minha cidade tem gente que adora tomar banho de chuva), mas porque corre um sentimento generalizado de medo, acho. As pessoas (normais) se escondem, com medo de se molhar.

Dentro da gente, as intermináveis ruas também se mostram assim, às vezes. As ruas vazias, as ruas escuras, as ruas diferentes do que já foram um dia. E aí, vem o sentimento de incompletude que nos faz olhar para nós mesmos. Por vezes, também temos medo do que vemos.

Bom texto, e quanto tempo! rs

PS: A imagem de cima do seu blog me fez perder um bom tmepo, olhando pra ela. Juro que vi um camelo na figura do meio. :)

Filipe Garcia disse...

Vinícius, sempre achei que fosse um camelo. Depois que você disse é que percebi o menino perneta plantando bananeira, rs.

Renato Ziggy disse...

Ainda bem que no último parágrafo você disse o "talvez"... foi a fresta de luz que fulgurou sobre a até então poesia imersa em névoa, traços de melancolia e penumbra. Você é foda, seu viado!

gabi disse...

eu nem posso dizer que sempre abandono as ruas, ou que as ruas estão sempre em mim.
acho que existe um tropeço entre mim e as ruas.

Ana EmíliaYamashita disse...

O hoje amanhã també será ontem.
Beijos