segunda-feira, 20 de julho de 2009

Ritmo desnorteado


- É porque você acorda todo dia às sete da manhã e me arranca os lençóis sem aquela suavidade que se precisa para não levar um susto, me bota doida pra arrumar seu café, repetindo mil quatrocentos e cinquenta e quatro vezes que está atrasado e que a água do chuveiro anda gelada demais, que eu preciso ir ao salão fazer as unhas, mas você esquece que eu trabalho para uma empresa capitalista que suga todos os meus horários possíveis e me paga a hora extra que garante nossa viagem de fim de ano. Lá do corredor, você vem falando em voz alta que nosso jantar do sábado será cancelado porque você marcou a peteca com os colegas de trabalho e eu deixo seu pão queimar na torradeira porque odeio quando você desmarca as coisas em cima da hora, mas você não me deixa falar das minhas bravezas e já vai contando dos sonhos esquisitos que teve durante a noite, emendando a pergunta frequente: se o ronco tem diminuído. Respondo que não, que você nunca parou de roncar e que, para piorar, você vem adquirindo uma nova mania noturna: empurrar os pés gelados pra cima de mim, me fazendo acordar com o coração aos pulos acreditando piamente estar sendo arrastada por uma avalanche e, depois, caindo dentro de um cubo gigante de gelo. Você come seu pão em silêncio e diz que o almoço vai ser corrido, as crianças precisam estar prontas para que não haja atraso algum, frisa novamente que minhas unhas estão feias e que meu cabelo até que anda legal. Odeio seu sarcasmo matinal e sua insistência em querer me ver linda e bronzeada em cinco minutos, esquecendo dos meus caprichos e da minha demora na maquiagem. Eu o chamo de insensível e você derrama a xícara de café, sempre derrama. Algumas gotas caem na sua camisa branca e você vai trocá-la, esbravejando. Então você segue pelos corredores com pés pesados de quem dança um samba doido e aparece de novo ajeitando a gravata que não combina em nada com a nova camisa. Eu lhe digo e você me pede pra escolher uma melhor. Eu escolho e você xinga, dizendo que eu só gosto daquela, o que é mentira porque todas as suas camisas foi eu que comprei, mas você gosta de me provocar dizendo que algumas foram sua mãe e eu repito: ela não teria tanto bom gosto. Você se troca com cara de quem quer ir trabalhar é com a camisa manchada de café mesmo, que se dane a estética e eu o atraso, sussurrando que você fica ainda mais bonito com a listrada de marrom. Sorrimos juntos e eu o acompanho até a garagem onde nos despedimos num beijo apressado e numa troca de carinhos suados que se misturam com a saudade que já vai apontando no peito. Eu aceno, como todas as vezes, e espero o portão se fechar entre nós dois. Retorno pra cozinha e ponho sua camisa suja na máquina, lavo as louças do café, ligo pro restaurante cancelando a reserva do final de semana, marco horário no salão pra fazer as unhas e penteio os cabelos. Acordo as crianças e peço pra elas ficarem prontas ao meio-dia, me arrumo e saio pro trabalho. Por dentro, estou agitada. Ninguém como você pra me deixar assim. Pronto, acabei. Vai dizer alguma coisa?


- Casa comigo de novo?


domingo, 12 de julho de 2009

Ai, minha coluna


Precisava entregar a coluna pro editor no dia seguinte. A inspiração, porém, não chegava. Buscou nos jornais, nas revistas, na poesia, na música, nas cartas de amor das ex-namoradas. Nada. Não aparecia a palavra ideal, o tema ajustado, o tom adequado. Começava a digitar algumas palavras no computador, mas, na mesma hora, era compelido a apagar tudo. Uma porcaria. O que faria? Diria ao editor que naquela semana não haveria a coluna? Não poderia, o risco de ser demitido era grande. Poderia aproveitar uma crônica velha, talvez.


Debruçou-se na janela do quarto. A vista do seu apartamento dava para a praia movimentada de banhistas. Gente. Muita gente. De todos os tipos. De todas as peles, cabelos, corpos, estilos, modas. Gente em pé. Gente sentada, gente encurvada. Gente sozinha, gente acompanhada. Namorados. Marido e mulher. Crianças. Fotógrafos, manequins, castelos de areia, pranchas de surf, gente pobre, madames, vendedores de tudo: picolé, camarão, relógios, o escambau. O colunista visualizou toda a cena como se fosse um grande quadro pintado por algum artista. Nasceu ali sua inspiração. Enfim, pareceu ter brotado o sentimento certo, as palavras certas, o tema certo. Ficou contente e correu pro computador.


Não se lembrara de ter desligado o computador. Droga. As palavras já lhe escapuliam pelos dedos, precisava digitar algo. E tinha que ser logo. O computador se mantinha inerte. Deve ter pifado alguma coisa. O monitor só ficava ligado. Vai ver queimou. Pegou um caderno e uma caneta. Iria à mão mesmo. Tanto faz. Só não poderia deixar a idéia escapar. Concentrou-se. Que barulho era aquele? Vinha do apartamento de cima. Um rock insuportável. Doíam-lhe os ouvidos, a cabeça. Não dava daquele jeito. Tentou tapar os ouvidos. Mas era impossível tapar e escrever ao mesmo tempo. Pôs algodão. Inútil. Colocou os fones do mp3 com uma música clássica no último volume. O rock persistia ao fundo.


Subiu até o andar de cima e bateu no apartamento do vizinho. Explicou que estava a trabalho, precisava de concentração, aquele barulho estava insuportável. Perguntou se dava pra desligar por uns trinta minutos. O vizinho disse que tudo bem. Ótimo. Voltou pro seu caderno. Caneta na mão. Agradeceu pelo silêncio ter voltado a reinar. Tocou o telefone. Seja quem fosse, não atenderia. Não agora. Precisava escrever. Era urgente e a necessidade gritava mais alto. Um escritor, quando tem algo a dizer, não consegue esperar. Chiado infernal. Insistência era uma coisa que o deixava fora de si. Precisava atender ao chamado. E se fosse a mãe passando mal? Alguém precisando de ajuda?


- Alô!


A pessoa perguntou por Osvaldo. Osvaldo não tinha ali. Engano. Voltou pro caderno. Antes, desligou o celular, o telefone, fechou as portas, janelas. Não estava pra ninguém. Iria escrever, estava resolvido. Começou. Foi colocando as palavras. Caneta ruim, aquela. A tinta falhava. Precisava de outra caneta. Onde? Ah, mataria Elenice que sempre sumia com suas canetas. Lápis, então. Tinha um lápis jogado por ali, outro dia. Pronto. Só precisava apontar. Tudo tão difícil. Onde estava o apontador? Acertaria as contas com Elenice amanhã. Odiava ter que sair procurando as próprias coisas.


Foi até à cozinha. Olhou pra garrafa de café. Despejou o líquido na xícara e sorveu. Havia perdido a idéia original. Não valia a pena escrever mais. Sim, estava rendido. Não tinha como lutar contra tantos infortúnios. Explicaria ao chefe. Diria que as coisas não funcionam bem assim. Não é simplesmente sentar e escrever. Era mais complicado do que ele pensava. Foi ao quarto, trocou sua roupa por um short e uma camiseta. Desceu pra praia e foi se juntar àquela gente que, outrora, lhe servira de inspiração. Foi ser o colunista no meio deles.


terça-feira, 7 de julho de 2009

Álbum


Lembro. Lembro bem desse dia. Foi quando começamos a namorar escondido. A festa era do seu primo e você não conseguia esconder seu constrangimento de eu estar ao seu lado na foto. Sim, olha só sua cara de envergonhada. Seus olhos entregavam o medo de ser denunciada, de perceberem nossos dedos se tocando embaixo da mesa, nossos sorrisos marcando encontros suspensos em meio a uma música docemente infernal. Você me pedia discrição e eu só queria carregá-la no colo, buscar seus lábios para um passeio furtivo, colar minha palma na sua cintura amarrada por uma fita de cetim branca. Você estava linda naquela noite.


Essa foto foi onde mesmo? Ah, sim, na casa da sua avó, em Porto Alegre. Nossa primeira viagem juntos, não foi? Seu pai ciumento queria aparecer em todas as fotos, entre mim e você. Estávamos felizes, percebe? Olha pra sua mãe, reprovando a atitude de seu pai. Sua mãe nunca foi de esconder sentimentos, nem nas fotos. Ei, não é pra rir, eu falo sério. Lembro que nesse dia seu pai nos viu beijar. Tínhamos planejado tudo tão certo. Esperaríamos a hora da ceia quando todos sairiam pra sala de jantar e ficaríamos esquecidos por um tempo no sofá. Depois, correríamos pra sacada, de onde a vista pra lua cheia era tal qual uma tela de cinema. E nos beijaríamos sem tempo, sem hora, sem medo. Foi assim, acrescida a parte em que seu pai apareceu gritando nossos nomes. Ele não gritou? Achei que tivesse gritado.


Ah, nosso noivado. Você ainda boba com a surpresa que eu lhe preparei. Não foi o máximo eu ter aparecido à sua porta cantando “Till there was you”? Você nem imagina como eu estava cansado naquela noite, minha voz parecia um sussurro. Mas mesmo assim eu consegui cantar: “Till there was you/ Then there was music and wonderful roses/ They tell me in sweet fragrant meadows of dawn and you.” Então eu vi seus olhinhos se encherem de lágrimas, apesar de você ter me dito que detestava chorar em público. É, eu sabia que você morria de amores pelos Beatles. E por mim.


Essa foto do nosso casamento parece tirada de revista de noiva, não acha? Você escancarando uma beleza helênica que meus olhos nem queriam acreditar. Atrelado a isso, nossas emoções em baldes e nossa disritmia aguda sentida um pelo outro de forma tão pontual. Tenho até hoje o cheiro do seu perfume. Juro. Tenho disso ás vezes: prendo-me a pontos do passado que me acompanham pro resto da vida. Foi assim com seu perfume; sempre quando o sinto em outras pessoas, me remeto àquele nosso dia em que minha felicidade era a mesma do Santos Dumont quando viu seu avião decolar. Sim, meu bem, você nunca me deixou desistir da idéia de amar você. Em mulher alguma eu teria encontrado complemento tão exato pra minha porção que vivia sozinha. Atrás dessas fotos, tem nosso dia-a-dia que eu também não esqueço. Você me beijando quando o sol despontava, num convite sereno pra levantar. Você se despedindo de mim em abraços demorados, toda vez que nos separávamos cada um pro seu trabalho. Ao final da tarde, você me esperando no portão com uma saudade eminente e me beijava como se eu tivesse voltado da Guerra dos Cem anos. Depois, sentados na mesa, tomávamos o café da tarde e você me contava das suas coisas. Tão linda sua forma de me prender a atenção com palavras rápidas, pensamentos acelerados e um olhar entusiasmado de criança. Você: minha criança dileta.


Nossos filhos. Nosso cão. Veja, aquela vizinha que você tanto odiava. O que essa foto faz aqui? Ah, sim, tem a fachada da nossa antiga casa. Lembra quando vocês tiveram uma briga? Você e a vizinha. Ela jogou terra no nosso quintal ou algo parecido. Nunca vi você tão furiosa na vida. Sim, ela tirava qualquer um do sério. Só que você não esperava que o nosso filho fosse namorar a filha dela. Que ironia, não? Até que o namoro deles durou bastante diante dos conselhos das mães que se opunham. Mas era uma boa garota, aquela, não tinha a petulância da mãe. Olha que bonita você nessa foto. Quantos anos tinha aqui? Uns trinta, não é? Dá banho em muita mocinha de quinze. Meus olhos não perderam de vista sua beleza, sabe? Ainda olho pra você e enxergo seus cabelos lisos formando cachos nas pontas, a maçã do seu rosto rosadinha, suas unhas sempre muito bem cuidadas, seus lábios pequenos e arqueados, quase que desenhados.


O tempo não é nosso amigo. Mas ficam as coisas de dentro. Você se manteve intacta e hoje eu não sei separar você daquela que conheci há quarenta anos. Apesar de sua pele enrugadinha, seus cabelos esbranquiçados, seus olhos escondidos atrás de uma armação de óculos. Apesar dessas mudanças tão insignificantes, percebo em você a mesma poesia que me foi atirada em nosso primeiro encontro. E como toda boa poesia se enraíza em lugares amplos do peito, você se entornou sem medida. Ficou. Ficará. Agora guarda esse álbum, vai. Vamos fotografar mais de nós dois.


quinta-feira, 2 de julho de 2009

Encontro no meio-fio


*Com a Clara.


-Sabe quando você senta sozinha, só pra acender um cigarro, um incenso de jasmim e tomar um bom café? Eu tenho essas manias de parar e me rever por dentro, junto com jasmim, café e cigarro. No meio disso tudo, encontro uma coisa estranha, sem nome, aqui por dentro. Talvez seja um sorriso se formando - sim, por que veja bem, um sorriso não nasce assim do nada, ele se forma durante horas, dias, sai o que transborda, o que já está maduro- talvez seja um sorriso querendo ir embora, não sei.


- Eu tenho disso, às vezes. Um dia, durante a noite, quis chorar. Mas não havia por quê. Pensei numa cena triste de filme. Pensei na África. Chorei uma lágrima doída, forçada. E foi num olho só. Choro é tal qual um sorriso. Só mudam os sintomas, só muda a maneira de fixar os olhos. Mais café?


-Mais café. Sintomas, essa palavra é gostosa de falar, não sei bem o motivo. Enquanto tu falavas, pude te olhar bem nos olhos e perceber a tua poesia. Já reparou que as pessoas são versos? Livres ou não, mas versos. Me encanta isso, me faz cultivar sorrisos, colher choros, fixar os olhos. Acreditas nisso?


- Sim. As pessoas nada mais são que palavras encarnadas. E buscam motivos para usá-las. Quem não as domina, vira escravo literário. Já viu aquela gente que anda com um bloquinho na bolsa? Que lê bula de remédio? Que se exaspera diante de um teclado de computador? Quando se está cheio delas, impossível é retê-las. Há estouro. Viram poesia.


-Engraçado, eu ando com um bloquinho na bolsa, leio bula de remédio e me exaspero diante de um teclado de computador, voas por aqui quando estou imersa em mim? Me sinto cheia de letras, estou-rando. Mas tem vezes que elas travam, ficam guardadinhas aqui dentro, parece que uma se segura na outra com medo de encarar o mundo lá fora, de voar alto demais. Aprendi, durante esse tempo, a cultivar pessoas-versos e palavras. Estão por lá, no jardim, és uma delas. Ah, preciso de outro cigarro, você se incomoda?


- Não gosto quando você fuma. Mas acho bonita a forma como você fala de mim, de jardins, de palavras. Agora entendo porque você falou de um sorriso contido. São palavras escondidas que vão fazendo cócegas, não é? E daí você lembra de um amor, de um afago, de um gesto singelo. Os lábios vão se abrindo. Lembrança de uma felicidade atual que ainda faz morada. Larga o cigarro. More em mim, agora.


-Você e essa sua coisa de achar solução, achar sossego, é lindo. Deixa só esse cigarro acabar, me deixa aproveitá-lo até a última cinza, o último trago. Daí eu moro em você, me jogo em você. Não me olha assim, já largo, já vou. Fica com esse sorriso, meio aberto, meio fechado, essas palavras se contorcendo dentro de ti para chegar até as minhas e rodopiar, esse brilho que sai dos teus olhos e se agarra ao meu. Pronto, o cigarro já foi, estou pronta para me adentrar, de alma, em você.