terça-feira, 7 de julho de 2009

Álbum


Lembro. Lembro bem desse dia. Foi quando começamos a namorar escondido. A festa era do seu primo e você não conseguia esconder seu constrangimento de eu estar ao seu lado na foto. Sim, olha só sua cara de envergonhada. Seus olhos entregavam o medo de ser denunciada, de perceberem nossos dedos se tocando embaixo da mesa, nossos sorrisos marcando encontros suspensos em meio a uma música docemente infernal. Você me pedia discrição e eu só queria carregá-la no colo, buscar seus lábios para um passeio furtivo, colar minha palma na sua cintura amarrada por uma fita de cetim branca. Você estava linda naquela noite.


Essa foto foi onde mesmo? Ah, sim, na casa da sua avó, em Porto Alegre. Nossa primeira viagem juntos, não foi? Seu pai ciumento queria aparecer em todas as fotos, entre mim e você. Estávamos felizes, percebe? Olha pra sua mãe, reprovando a atitude de seu pai. Sua mãe nunca foi de esconder sentimentos, nem nas fotos. Ei, não é pra rir, eu falo sério. Lembro que nesse dia seu pai nos viu beijar. Tínhamos planejado tudo tão certo. Esperaríamos a hora da ceia quando todos sairiam pra sala de jantar e ficaríamos esquecidos por um tempo no sofá. Depois, correríamos pra sacada, de onde a vista pra lua cheia era tal qual uma tela de cinema. E nos beijaríamos sem tempo, sem hora, sem medo. Foi assim, acrescida a parte em que seu pai apareceu gritando nossos nomes. Ele não gritou? Achei que tivesse gritado.


Ah, nosso noivado. Você ainda boba com a surpresa que eu lhe preparei. Não foi o máximo eu ter aparecido à sua porta cantando “Till there was you”? Você nem imagina como eu estava cansado naquela noite, minha voz parecia um sussurro. Mas mesmo assim eu consegui cantar: “Till there was you/ Then there was music and wonderful roses/ They tell me in sweet fragrant meadows of dawn and you.” Então eu vi seus olhinhos se encherem de lágrimas, apesar de você ter me dito que detestava chorar em público. É, eu sabia que você morria de amores pelos Beatles. E por mim.


Essa foto do nosso casamento parece tirada de revista de noiva, não acha? Você escancarando uma beleza helênica que meus olhos nem queriam acreditar. Atrelado a isso, nossas emoções em baldes e nossa disritmia aguda sentida um pelo outro de forma tão pontual. Tenho até hoje o cheiro do seu perfume. Juro. Tenho disso ás vezes: prendo-me a pontos do passado que me acompanham pro resto da vida. Foi assim com seu perfume; sempre quando o sinto em outras pessoas, me remeto àquele nosso dia em que minha felicidade era a mesma do Santos Dumont quando viu seu avião decolar. Sim, meu bem, você nunca me deixou desistir da idéia de amar você. Em mulher alguma eu teria encontrado complemento tão exato pra minha porção que vivia sozinha. Atrás dessas fotos, tem nosso dia-a-dia que eu também não esqueço. Você me beijando quando o sol despontava, num convite sereno pra levantar. Você se despedindo de mim em abraços demorados, toda vez que nos separávamos cada um pro seu trabalho. Ao final da tarde, você me esperando no portão com uma saudade eminente e me beijava como se eu tivesse voltado da Guerra dos Cem anos. Depois, sentados na mesa, tomávamos o café da tarde e você me contava das suas coisas. Tão linda sua forma de me prender a atenção com palavras rápidas, pensamentos acelerados e um olhar entusiasmado de criança. Você: minha criança dileta.


Nossos filhos. Nosso cão. Veja, aquela vizinha que você tanto odiava. O que essa foto faz aqui? Ah, sim, tem a fachada da nossa antiga casa. Lembra quando vocês tiveram uma briga? Você e a vizinha. Ela jogou terra no nosso quintal ou algo parecido. Nunca vi você tão furiosa na vida. Sim, ela tirava qualquer um do sério. Só que você não esperava que o nosso filho fosse namorar a filha dela. Que ironia, não? Até que o namoro deles durou bastante diante dos conselhos das mães que se opunham. Mas era uma boa garota, aquela, não tinha a petulância da mãe. Olha que bonita você nessa foto. Quantos anos tinha aqui? Uns trinta, não é? Dá banho em muita mocinha de quinze. Meus olhos não perderam de vista sua beleza, sabe? Ainda olho pra você e enxergo seus cabelos lisos formando cachos nas pontas, a maçã do seu rosto rosadinha, suas unhas sempre muito bem cuidadas, seus lábios pequenos e arqueados, quase que desenhados.


O tempo não é nosso amigo. Mas ficam as coisas de dentro. Você se manteve intacta e hoje eu não sei separar você daquela que conheci há quarenta anos. Apesar de sua pele enrugadinha, seus cabelos esbranquiçados, seus olhos escondidos atrás de uma armação de óculos. Apesar dessas mudanças tão insignificantes, percebo em você a mesma poesia que me foi atirada em nosso primeiro encontro. E como toda boa poesia se enraíza em lugares amplos do peito, você se entornou sem medida. Ficou. Ficará. Agora guarda esse álbum, vai. Vamos fotografar mais de nós dois.


11 comentários:

Anônimo disse...

e assim falou Filipe.
achei de uma leveza sem tamanho
me vejo em momentos assim

muito bom, sempre.
abraços

Graziela C. Drago K. Zeligara disse...

Lindíssimo!
Fotografias são algo realemnte encantador; é o retrato de nossas vidas!
Cada pedacinho...
Cada flash e lembrança...
Basta dizer que li seu texto sorrindo e que "Till there was you" está sendo executada (que verbo ingrato para falar que a música está tocando!)
Um beijo!

Vanessa Cristina disse...

Me fez acreditar um pouquinho que amores assim ainda são possíveis.


Ando tão desacreditada no amor, sabe?
Suas palavras deram um confortozinho ao meu coração solitário.


Beeijo, Felipe.
:*

C.L. disse...

Suspiros e lágrimas.
Mas se preocupa não, tu que escreve bem demais, eu que tô muito sensível e vislumbrei tudo de tal maneira que vi toda a minha vida desenrolando...
Lindo!

Beijos.

gabi disse...

Que perfeição, Filipe. Bonito, leve. Dá vontade de ter alguém pra sempre.

Ando tão desacreditada no amor, sabe? [2]


Beijo;
P.S.: troquei o link do blog, mas não sei se você visita pelo blogroll ou pelos comentários. De qualquer forma, se for pelo blogroll, a página redireciona.
Beijo. :)

Anônimo disse...

que coisa mais linda.. 40 anos de casa assim até eu quero

aiai

beijosss

Luifel disse...

Confesso que uma fotografia nunca me faria planar em tanta imaginação e num conto como o seu, rapaz! O tempo de fato, nos burila, nos amolda, nos faz melhores, mais fortes, mais encorpados, como o vinho... pena que perdemos a beleza exterior, mas se o coração fica mais bonito, vale a pena num é?

Enfim, voltei a blogosfera...

Abração!

entre-caminhos disse...

ahhh que texto lindo! Simple e tão profundo ao mesmo tempo!

ADOREII!

bjs

Anônimo disse...

*Suspiros*

Leve, gostoso de ler. Consigo imaginar aquele casal de velhinhos, sentados na varanda, olhando este álbum.
Seus textos sempre me dão uma nostalgia danada, sabe?

beijos

Abraão Vitoriano disse...

belo como sempre.

as palavras contigo
dançam.

abraços!

disse...

...
(Suspiros)
...
(Lágrimas)
...
(Pensamentos)
...

Faltam-me palavras para expressar o q senti lendo seu texto..aqui apenas as sensações...

Bjoss no coração (o meu dispara de tanta emoção) :***