terça-feira, 13 de outubro de 2009

Os olhos de sempre


Ele sentou-se diante dela e viu os mesmos olhos, o mesmo sorriso, a mesma pose. Há tantos anos ela era sempre igual. Metodicamente igual. Acordava sempre do lado esquerdo da cama às seis horas da manhã. Seguia para o banheiro e se demorava num banho de vinte minutos. Exatos vinte minutos. Saía cheirando o mesmo perfume, os dentes escovados com a mesma pasta de dente. Sentava-se à mesa já preparada pro café e tomava o chá. Duas torradas. Uma passada de olho no jornal em leitura superficial, só pra ficar por dentro das manchetes.


Ela não mudava. Isso o irritava profundamente e parecia que ela agia em provocação. Por que sempre os talheres de cabo azul? Por que sempre o batom rosa? Por que sempre a timidez escondida no canto do olho e um pé a trás a cada passo dado? Previsibilidade. Ele não dava conta disso. Sabia todos os passos dela, todos os pensamentos, tudo o que ela ia dizer. Não que fossem parecidos a tal ponto. Ele estava farto. E estava disposto a romper.


Sabia de todas as reações dela. Primeiro ela entortaria um pouco a boca. Pra direita. O cenho franzido, uma inclinada de leve com a cabeça. Ela tentaria falar qualquer coisa e não conseguiria. A boca se abriria tantas vezes em busca de palavras que não chegariam. Ela desistiria e, nessa hora, as lágrimas viriam. Seria um choro discreto, como ela mesma era. Talvez um soluço fininho em apelo disfarçado. Não diria nada. Só os olhos. Os olhos dela sempre disseram tudo. E ele leria em suas íris: “Como você pode?” e se sentiria mal, sujo, profano.


Aquilo tudo era amor. Não se entende mais assim? Amor sim, de cumplicidade. Ela se permitia a ele. Fazia-se conhecer em todos seus segredos e rituais. Era como conseguia se fazer no dia-a-dia, era como ela procurava agradá-lo. Até o bilhete que ela sempre deixava antes de sair de casa: “Saí para o trabalho, deixo um beijo”. Sempre o mesmo bilhete e a letra redondinha de sempre. Engraçado que ela saía, mas o bilhete ficava como se fosse a presença dela. Saí-um-beijo-fui-ao-trabalho-deixo. Era bonita a forma como ela cuidava das coisas e como escolhia se apresentar ao mundo. Previsível.


- Então diga, meu bem, diga o que tinha a me dizer. – ela implorou com aqueles olhos lindos de sempre, os mais previsíveis de todos.


Ele estava diante dela. O mesmo sorriso. As palavras que ele esperava ouvir. Ele sorriu em retribuição e devolveu a resposta em sussurro:


- É que eu te amo. Hoje mais.


E ela chorou. Imprevisivelmente.


11 comentários:

Adriel disse...

E quando menos espera, vem aperta o peito, e leva um tapa do coração, VOCÊ ESTA AMANDO!, e vem o sorriso, o quente no peito, a cara de bobo!, o falar sozinho, " é eu a Amo! "...

Otimo Texto!
Gosto muito de Ler aqui!
Grande Abraço!

Bê Matos disse...

Ah, Filipe.. Confesso, que a única coisa previsível aqui, é a minha reação de encantamento quando leio teus textos. :)

Meu Beijo, moço-que-sempre-me-surpreende. :*

Luciana Brito disse...

E todas as vezes que venho ler aqui, fico com cara de boba e encantada, pois sempre remexe um pouquinho com os sentimentos cá de dentro.

Beijos, Lipe!
Lindo texto.

Maria disse...

Esse não-surpreender do amor definitivo é o que há de surpreender a cada manhã. Previsivelmente!

Meu beijo

Ana EmíliaYamashita disse...

Emocionante e ponto.
¥

Anônimo disse...

é filipe você me surpreende :*

Gabri Rodrigues disse...

Essa imprevisibilidade do amor e de tudo que o cerca é que deixa a gente assim, nas nuvens!

o modo de amar pode ser previsível, porém o amor jamais o será!

lindo texto!
Parabéns pelo blog!
Beijoos!

http://damasdevermelho.blogspot.com

gabi disse...

e quem diria que a mudança que ele esperava dependia exatamente dele?

Jaya Magalhães disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Juliana Porto disse...

E quem consegue se conter de tanta emoção? Eu, pelo menos, não!
=)
Beijos, moço;.

Fernanda disse...

Eu também chorei.