quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Da janela, um ipê


Daqui da janela da minha copa eu vejo um ipê amarelo. Todo dia de manhã, enquanto a água do café ferve daquele jeito meio lento como de quem desperta e vai estralando dedo por dedo, abrindo cílio por cílio, eu escoro no parapeito e me demoro. As flores, de longe, parecem uma coisa só, enfeitando os galhos altos que erguem as mãos aos céus, numa oração bonita que eu escuto daqui.


O café quente – talvez mais quente que a minha vontade de ter alguém por perto e trocar meia dúzia de dinheiros grandes por um abraço – é um sinal de alerta: hora de acabar com a preguiça que agarra as pernas. Um gole é como um despertador barulhento, numa insistência louca em me chamar para a sanidade. Prefiro os sonhos. O sono, a cama e o corpo horizontal. Prefiro os ipês.


Quando saio de casa, tropeço em três ciganas que imploram minha mão. Eu me esquivo. Futuro é uma coisa que, sabida, se torna patética. É como se acabassem todos os motivos para viver. Mentira. Há motivos maiores, bem sei. Mas é que a vida não é só sentimentos. Bonito seria se fosse. As ciganas sempre andam tão sujas e coloridas. Mas é uma cor desbotada, de mil e tantos anos. Um contraste. Alguém que lê o futuro, parece ter vindo de um passado distante. Minha mãe sempre dizia que o futuro me traria dinheiro. As pobres ciganas não tiveram mães.


Meus passos me levam pros lugares de sempre. O trabalho. A faculdade. O restaurante. Depois a casa. Meus pés parecem doutrinados e não se atrapalham mais. Desconhecem a liberdade de outros cantos. Um dia – decidi agora – os levarei ao ipê, aquele que vejo da minha janela. Será uma mudança drástica. Talvez eu leve meu caderno e minha caneta, também. E dali, debaixo daquele amarelo, escreverei outra carta. E, de alguma forma, quando você me ler, estará comigo ao pé do ipê, porque minhas palavras te remeterão até lá.


Te encontro mais tarde, quando a saudade me trouxer delírios.


11 comentários:

Luciana Brito disse...

Lembrei do Rubem Alves e seus ipês, também amarelos.

Bom quebrar a rotina dos pés doutrinados sempre a irem aos mesmos lugares. E, melhor ainda, se forem ao encontro do novo e de alguém.


Bonito texto, Lipe.
Beijo!

disse...

"Te encontro mais tarde, quando a saudade me trouxer delírios".

Perfeitooo

Bjossss, te encontro mais tarde...

Maria disse...

Ipês são lindos. Para os que tem olhos para sentir.

Beijos, de lírios.

amanda lima disse...

Adoro a sutileza com a qual tu mexes com as palavras.

Pois um beijo. =)

Má B. disse...

Que graça, não só a forma como descreve o ipê, mas as palavras utilizadas. Dá vontade de sentar embaixo e sentir uma brisa gostosa =)

gabi disse...

ipês amarelos são árvores realmente muito bonitas. e - descobri agora - muito literárias também, se bem que quase todas as coisas são coisas literárias, mas isso é assunto pra outra hora...
:)

Sueli Maia (Mai) disse...

Teu blog tá lindo Filipe.
Tem luz como a luz dos ipês.
'Details'. E a minucia é a tua assinatura.

Beijos, querido.
Saudades de ti.
Manda notícias.
Carinho,

Anônimo disse...

aos delírios :*

Ana EmíliaYamashita disse...

Sempre adorei a capacidade que as flores tem de nos inpirar.
Muito bonito o que escreveu.
Beijos
¥

João Romova disse...

Onde moro ipê é coisa comum, mas sempre arrebatador vê-los carregados de amarelo, roxo, rosa...

Anônimo disse...

Ler o que você escreve é sempre bom. Sei lá, traz paz.

;D