segunda-feira, 14 de setembro de 2009

A carta dela sobre a mesa


Ontem a noite, chegando em casa, encontrei uma carta dela em cima da mesa, como que ali jogada sem outro propósito que não chamar a minha atenção. Lancei um olhar curioso para a letra que caligrafava o envelope tão branco, com meu nome escrito de um jeito que contava história. Minhas mãos apalparam a carta ainda escondida. Colocado contra a luz, o envelope se desnudava, deixando perceber as nuances de uma folha de papel almaço com escritos ainda não passíveis de leitura.


Rasguei a beiradinha do envelope. Ela veio junto em seus perfumes, em seus jeitos inusitados de me assustar em sorrisos brandos, em cócegas sutis. Uma graça criada a dois. Como esses segredinhos de casal, piadinhas internas que fazem qualquer beijo parecer estrela despontando no céu da boca. Assim, retirei a carta dobrada em tantas vezes; e em tamanhos impecavelmente iguais. Desdobrei na mesma paciência que imaginei ter sido dobrada. Nesse instante, segurei-a pela mão e nós cantamos de novo “Close your eyes and I'll kiss you”. E foi como quando nos despedimos naquele setembro incomum de orquídeas incolores. Nossos semblantes eram retratos tortuosos, perdidos em uma mistura de infelicidade que seria prolongada por mais um tempo infinito. Choramos de mãos dadas e nossas lágrimas eram versos que atravessavam a face na pretensão de virar poema.


As palavras escritas em forma pequena, os contornos perfeitos de vogais abertas, evocando sentimentos igualmente imensos, inteiros, propostos em si mesmos, sem aquela intenção de se fechar em círculos. Li o texto com os olhos desapegados de qualquer tristeza nostálgica. Eram letras lindas em menção a sentimentos ainda mais lindos, trazendo uma precisão que me fazia latejar o peito, sem saber direito qual reação dar ao corpo. Foi preciso um suspiro longo e duas ou três piscadelas. Um ar gélido percorreu-me as entranhas e, diante de mim, a carta era um convite a embarcar num navio de mares remansosos. Lembrei de Fernando Pessoa, dizendo ao se vestir de Ricardo Reis que “Inutilmente parecemos grandes”. Ela cresceu em mim. Em proporções que nem mesmo a melhor das cartomantes conheceria. Era como se eu me germinasse, virando brotos que, na verdade, era a presença dela se esparramando em meu colo trêmulo.


Reli. Em voz alta, a impressão era de que ela estava ao meu lado, beijando meus cabelos enquanto afagava meu braço na esperança de eu puxá-la pra um ensaio de dança. Vida era embutida naquelas palavras traçadas a caneta. Fácil foi visualizar qualquer matéria de sonho, qualquer resquício de intensidade ou mesmo um mero sussurrar de avisos outrora ditos ao pé do ouvido. Suspeitei estar acometido de um surto psíquico, tamanha era minha certeza de que ela estava ali, ao lado, em qualquer canto. E ainda ria de mim, da minha saudade estampada e do meu medo em me desvencilhar daquela carta-amante e dos seus imperiosos impactos.


Retornei a folha ao envelope, dobrando-a junto com minhas saudades acumuladas. Vontade eu tinha de enviar ao mesmo endereço de onde veio, fazendo-a retornar às mãos delas para depois voltar às minhas. Deixei sobre a mesa, da mesma forma que encontrei quando cheguei em casa. Saudade doía, percebi. E dói ainda mais quando as palavras são capazes de nos remeter ao antes que já não é. A sala permaneceu como estava. Com exceção da carta que magnetizava meus pulmões. Presença. Ela esteve ali, ontem a noite.


15 comentários:

André Luiz . disse...

Adorei,lindo como todos os outros.
Você escreve maravilhosamente bem e até eu que sou cético as causas amorosas sinto o encanto nesse embalar macio de suas palavras.

Parabéns ;D

André Luiz.

Lucas disse...

Bonito texto =)

Anônimo disse...

você continua bom nisso de levar as pessoas a sentir seu texto na intensidade da progressão, do climax e do desfexo de seu estilo.

parbéns

Lucas Vallim disse...

Simplesmente lindo. Cada vez mais completo, mais detalhado, mais poesia.

Camila disse...

Nossa!
Receber uma carta de alguém importante que está longe é uma felicidade enorme.
Mas com certeza remete saudade, também.

Texto repleto de poesia. Lindo e mágico de se ler.


Um beijO Felipe

Sueli Maia (Mai) disse...

Memórias indeléveis.
Filipe, você está cada dia mais repleto de minúcias, sussurros em letra miúdas. Cada detalhe, cada gesto é vivido devagar. Acho que deve ser isto o degustar devagar que exercita a calma, a paciência e que faz pessoas e coisas durar ou permanecer o tempo que durar...

Afinal o passado está em nossa memória, não é?
O detalhe é tua especialidade.
O detalhe.

Lembrei de que paralelamente a estas, andas escrevendo outra história, então, escreverás assim, detalhes jurídicos?

Beijos,
adoro vc.

Nanda disse...

Lindimais!
All my loving *.* (...tomorrow I'll miss you)
E o meu sorvete?

gabi disse...

que encanto.
ela estará aí, hoje a noite, amanhã a noite?

:)

Fee disse...

Adoro receber cartas, é como receber um presente que não se compra. Você sabe que ali foram dedicados tempo, atenção, sentimento e uma intenção toda particular, voltada só pra você. Escrever cartas, hoje em dia, é pieguisse... amar também! Ainda bem. rs

Flá. disse...

No filme "O Clube de Leitura de Jane Austen" uma das personagens, ao aconselhar um ex-marido ainda apaixonado, diz o seguinte: "Nunca subestime o poder de uma carta". Verdade absoluta confirmada pelos seus escritos. :)

Um abração, Filipe!

Anna Vitória disse...

Que texto mais cheio de sutilezas interessantes. Como sempre, adorei o que li aqui.
beijos!

Caroline Fortunato disse...

Cartas. Palavras. Sentimentos...
São todos parceiros, todos cúmplices. Tudo vira poesia quando na ponta da caneta; tudo tem beleza. Até mesmo a dor, o adeus. Até mesmo os começos. Tudo tem perfeição, até o sinuoso. Tudo.

Abraços...

Luciana Brito disse...

As palavras tem tanto poder, isso ainda me impressiona um tanto.

Teu texto, como sempre, está lindo, Lipe! Assim como a carta nele descrita, nos leva a tantos pensamentos que nem sei contar.

Beijos, moço!

amanda lima disse...

Adoro como tuas palavras, formuladas desse jeito tão sutil, conseguem elevar-me.

=)

Luifel disse...

Guri, esse texto veio de encontro ao que eu tou vivendo!

Eu tou meio desacreditado do amor, mas saudades eu ainda tenho! E faz un tempão que meus amigos nem carta me escrevem.

Abção!