segunda-feira, 8 de junho de 2009

O conto que esqueci


Ela fumava um cigarro atrás do outro. Essa é a imagem que me vem à mente. Tia Sandra. Usava sempre saias e o cabelo curto, mas não muito. Ficava sempre na porta da biblioteca. Porque dentro não podia fumar.


Éramos amigos. Daqueles que mal se falam, mas que freqüentam o mesmo lugar. De tanto eu ir à biblioteca, nos tornamos comuns um ao outro. Sim, comuns. Era como se ela já soubesse quando eu iria aparecer. Sempre nos intervalos das aulas e no horário da educação física, que eu matava.


Teve um dia. Chovia. Fui à biblioteca e lá estava ela, fumando. Cumprimentei com os olhos só. Ela respondeu com suas fumaças. Sentei à mesa. Ela chegou perto, sem o cigarro.


- Tenho um conto interessante pra você ler. – e colocou um livro grande. Bem grande, à minha frente, com a página aberta no lugar onde estava o conto.


Eu agradeci sem dizer. Sempre fui assim mesmo: mudo de palavras. Dentro, um mundo de palavras. E li o conto. Era bonito. Não me lembro mais da história, sei que era bonita. Daquelas que a gente lê, sorri ao final e guarda em qualquer lugar do peito. Pensei que aquele conto poderia ter sido escrito por ela. Por Tia Sandra. Mas não, havia o nome do autor ali em cima. E eu me desapontei um pouco. Só um pouco.


- Gostou? – ela perguntou quando me viu fechando o livro.


Eu disse que sim, que tinha achado legal. Sempre fui assim, também: uso expressões pobres que não expressam nem um tanto do que eu realmente sinto. Então ela sorriu, sei lá por que. Simpatia, talvez. Eu fiquei na mesa, observando-a de longe. Ela parecia tão atenta a tudo, embora carregasse um certo descuido no jeito de andar e estranhas maneiras que lhe tiravam um pouco dessa coisa humana que temos.


Perguntei se eu poderia levar o livro pra casa. Queria ler de novo. Ela respondeu que aquele livro não podia. E não deu motivos. Eu aceitei a resposta e me despedi. Escutei um ruído que talvez fosse sua forma de despedida.


Nos dias seguintes, eu passei a guardar uma ansiedade. Como se eu esperasse ela vir com outro conto pra eu ler. Não ocorreu. Talvez ela quisesse compartilhar só aquele. Talvez nunca mais ela tivesse lido algo que valesse a pena mostrar a alguém. Talvez ela realmente tivesse escrito aquele conto, e mais nenhum.


Ela fumava um cigarro atrás do outro. Tia Sandra das saias, do cabelo curto. Do conto no dia de chuva. Conto bonito que esqueci.


10 comentários:

Anônimo disse...

contos que nos contam..
gostei.

abraços

gabi disse...

gostou e esqueceu?

devia ter salvo nos favoritos.*

:**

disse...

[suspiros]...'Sempre fui assim mesmo: mudo de palavras. Dentro, um mundo de palavras'...

Simplesmente lindo!!

Bjooosss,


http://inverossimilhancadoreal.blogspot.com/

Vanessa Cristina disse...

Nossa, lembrei de um livro que, uma vez, li, Mas também não lembro sobre o que era, embora a marca tenha ficado. Sempre fica.


Beeijo
:*

C. disse...

lindo, menino. lindo...

Sueli Maia (Mai) disse...

Um mundo de palavras mudas para o mundo exterior... Muitas vezes sinto-me assim...
E todos nós já tivemos alguém como esse personagem do teu conto - 'tias Sandra'... que fumam e marcam nossas vidas,mantendo-se em nossa memória.

beijos, querido.
Saudades de vc.

Junkie Careta disse...

Felipe,
Ainda aprendo a escrever assim com essa delicadeza, essas entrelinhas, esses gritos escondidos nos silêncios das letras(nessas horas, o seu jeito de escrever me lembra a Luana H, adorável).A descrição que vc deu sobre como é ser calado(talvez até tímido...) foi comovente. Me vi mais ainda na parte dos adjetivos pobres(Algumas pessoas às vezes também reclamam isso de mim, dessa minha imensa capacidade de implodir ao invés do contrário). Parece que é desimportante falar às vezes. Eu não os culpo por não me entenderem. Poetas às vezes podem ser seres bem estranhos.

Continuo sempre me deleitando e aprendendo quando venho aqui.

Voltei a vida intelectual depois de um longo e tenebroso inverno de trabalho e estudo. Retornei com um poema para ser apedrejado.

Se tiver um tempinho,apareça.

Grande abraço.

Anônimo disse...

Pessoas são contos, inesquecíveis ou não.

Muito bonito!

Suas descrições psicológicas são incríveis.

Abç!

gabi disse...

ei, moço.
volte;

Flá. disse...

Que bom ler esse texto, tão gostosinho :) Bom voltar aqui, tem tempo que não navego no mundo dos blogs..tenho sentido falta.

Um bjo!

ps.: adoro o jeito como vc termina suas crônicas..mto bom!